terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Amigo Secreto




Recebi uma carta do asilo em que meu tio viveu seus últimos anos. A dona do lar não cansou de elogiar suas qualidades, seu sorriso sempre aberto, a elegância com que tratava as pessoas, a disposição de ajudar nas tarefas administrativas e tudo mais. A descrição é contrastante com outras que ouvi dele. Lembro de uma história que me contou em nossa última viagem até a tríplice fronteira. A história de uma festa de final de ano na empresa dirigia. ...

Sigam o link acima para encontrar o final da narrativa no Histórias Possíveis de Natal.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Olestra




Hoje revi a cena de um velho tocando acordeão.
Cego, acomodado sobre uma banqueta. Ria ao tocar e pontapeava um cão curioso, Cãs encaracolados nas laterais da cabeça lisa feito um ovo. Balançava o corpo como um pêndulo, sorrindo e chorando naquele fole retrátil.
A cena é distante e evocativa.
Reunia as expressões dos rostos, resumidas nas dobras do bandoneon. A música sobressaía, melodiosa, sem exageros, expressão do vento soprando os lençóis do baldaquino improvisado. Sussurrava.
Era um casamento no campo.
Eu me recordo. Recordei você.
É no sonho que somos felizes.
Bom dia.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Histórias Possíveis n# 54






Devo acrescentar que os cidadãos fugiam uns dos outros

e que ninguém se preocupava com os vizinhos?

As visitas entre parentes, quando aconteciam, eram raras e feitas de longe.

O desastre pusera tanto horror no coração dos homens e das mulheres

que o irmão abandonava o irmão, o tio o sobrinho, a irmã ao irmão,

muitas vezes mesmo a mulher o marido.

E até – o que é ainda mais forte e mais e quase inacreditável

– os pais e as mães evitavam ir ver e auxiliar os filhos,

como se já não lhes pertencessem.

Giovanni Bocaccio,

Decameron,

Primeira Jornada ....(Continua)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Lágrima Retida






A lágrima insiste em sair. Vem das profundezas de um corpo hoje combalido, tenta furar o bloqueio que ele se habituou mostrar (será um orgulho bobo?), talvez para que o outro corpo não se sinta melhor, recompensado, pelo que fez ( para mostrar uma força que não existe? Ou existe apenas como fachada?). Vitrificado, ele segura firme, formando um lago interior composto pela água e pelo sal transformados em lágrimas, acumulado ao ponto de exercer uma pressão intensa no olho, tornando-o liquefeito e translúcido. Um simples assoprar de brisa o desaguaria. Assim, não haveria problema em culpar um cisco ou a polução da cidade. Enquanto ela está presa, coisas interessantes acontecem: uma piada antissemita ou racista ou machista; uma discussão estúpida com alguém, desaguando em uma ofensa; uma lategada no cão; uma briga de empurrões e pontapés, inadmissível sem ela; pode também se transformar na vontade de assistir um filme sobre o funcionamento de um grupo terrorista, como catarse. Tudo para esconder o medo que você está sentiu naquele instante. O medo até então desconhecido. Da conversa com um texto expelido por entre as vértebras de um amigo noticiando a loucura que acomete aqueles que conheceram da morte de deus à leitura do conto Bola de Sebo, pegadas interiores mostraram o caminho que elas percorreram. As fichas foram caindo dentro daquele corpo, transformado pela puxada na alavanca do caça-níqueis. A prostituição é um fato. Todo ódio contra as putas e desclassificadas vem do medo da comparação das mesmas posições, do exercício das mesmas atitudes, das recompensas com as mesmas moedas. Das trinta famosas moedas. Até então, o tratamento dispensado era o de pessoas de bem, daquelas que têm sentimentos nobres, porcos, mundanos e sublimes e, comem da nossa comida, enquanto têm fome. Satisfeita, voltamos ao nosso lugar: a indiferença merecida pelos violadores da hóstia consagrada. Estamos encarcerados, isolados, esperando o próximo cliente. A próxima venda deflagra a represa. O corpo acorda com a rotina do banho de tina. Nela a água suja e servida, que passeou por ele, ainda está lá, e, repentinamente, as mãos com vida própria, juntam-se e jogam punhados d’água suja no rosto, várias e várias vezes, em movimentos automáticos, irresponsáveis; parece que ele tem necessidade de puxar pra fora, com pancadas líquidas, toda a fieira de lágrimas retidas; extrair o tumor, aquela sensação inútil, pois, ficando lá, ficará como água parada, sementeira de vermes. Assim terminado o banho, ele se desfaz do vapor, passa a mão no espelho do banheiro, nunca olhado, e dessa vez serão dois pares se olhando, se confrontando, se aproximando. Aquela porcelana vitrificada se fissura, e se percebe que duas lágrimas pequenas e envergonhadas, escorrem pelos dois lados daquele rosto e se perdem nos pelos brancos do peito. Apressado, ele as enxuga. Que voltem. Que fiquem. Que se danem. A inútil inquisição vinda da noite dos tempos venceu e arrancou dele a confissão. " a fatal desorganização de uma existência solitária cujos sonhos desapareceram; e todos os nossos dias passados iluminaram aos tolos o caminho poeirento da morte”

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Eu faço vídeo.




Caminhamos para um túnel como aqueles que aparecem nos campos de futebol, para proteger juízes e jogadores quando ameaçados pelo tempo, autoridades, dirigentes ou torcida. A entrada é anunciada por um balão espetado no ar. Vários manobristas para guardar os veículos. Um bombeiro civil estava a postos para evitar qualquer dificuldade. Os seguranças paramentados como os participantes da festa: paletó, gravata e máscaras. A lembrança da associação criminosa foi inevitável, pela barba de alguns dias e pelo tamanho dos ‘meninos’. Há momentos em que as pessoas são valiosas.
O local da festa foi uma fábrica de sabão. Os encanamentos e as caldeiras estavam à vista, pintadas de amarelo. Hoje são objetos decorativos. As paredes foram descascadas para mostrar os tijolos de barro. O piso é de carpete. A iluminação vem do chão ou na altura do rodapé, dando um efeito fantástico, para quem olha. Cada participante ao passar pela faixa de luz produz um efeito fantasmagórico, existindo por alguns instantes apenas.
As pessoas, após pegar suas respectivas máscaras, vêm pingando como conta gotas através do túnel e descem à direita ou à esquerda para encontrar suas mesas. Estas são separadas por cores. Estamos no setor amarelo. No ambiente, predomina o vermelho, fios presos ao chão com balões vermelhos se movimentando, parecem corais no recife, monótonos, formando colônias. Mesas são estações de comidas. Um grande prato redondo, dividido pelos signos do zodíaco, em cada porção, o prato correspondente: Áries, grão de bico aretino; Gêmeos, testículos ou rins; Peixes, ruivos. Os doces dos mais variados tamanhos, formas e cores, completariam aquela ambientação marinha, não fosse um enorme bolo de aniversário, réplica coberta do coliseu.
Lá fora ruge o vento, ameaçando tempestade. Dentro, rugem o rap, o ‘funk’ e o samba. As pessoas se divertem, dançam, não conseguem conversar. Não há tempo, tipo ou tema.
“Minha mãe quer que eu estude, meu pai quer eu trabalhe/Minha vó quer que eu me mude, mas eu já fiz o que pude/Já fiz teatro experimental, oficina de poesia marginal/Seminário de meditação transcendental, curso de sanduíche natural/Eu faço vídeo! Vídeo!/Eu faço vídeo!/Vagabundo é a puta que pariu!”
Somos servidos incansavelmente. Telas gigantescas mostram imagem de passeios, viagens, caçadas e safáris. Habitantes de países distantes com aquela fome milenar, crianças fatigadas, deitadas com a cabeça ao chão. Sombreiros, ossos, tatuagens, dentes, olhos, moscas, chagas, tintas, penas.
Em um dos cantos do salão, algumas pessoas estão sentadas no chão, outras em cadeiras, e algumas em cubos. Estão estáticas, nuas. São modelos-vivos. Três homens e três mulheres com idade variada, desde sessenta e oito anos até trinta e um. Acostumadas a ficar parada por uma hora, com direito a dez minutos de descanso, encaram esta tarefa com muita tranquilidade, pois podem se mexer à vontade. “Não ficamos peladas, apenas posamos nuas.” O calor, as máscaras, a indiferença, o ambiente, tudo colabora. “Nós aprendemos a tirar a roupa quando percebemos que ninguém, de fato, nos olha.” Entretanto, falta-lhes naturalidade: elas não se movimentam, saem de uma pose para outra geometricamente.
Os banheiros são cápsulas espaciais. Paredes de vidro em todos os lados, as divisórias são translúcidas. A única parede que reflete o próprio rosto é a do espelho diante do lavatório, um cone em que a água floresce, na temperatura exata, sempre que alguém se aproxima. Ao lado dele, uma caixa com comprimidos. Os legais, para as mais diversas finalidades: enjoo, laxantes, analgésicos, antiácidos, preservativos dos mais provocantes modelos, das mais exóticas procedências; os ilegais, dedicados às viagens da excitação, do medo, da angústia, do tédio, da aceleração, são azuis, brancos, pó, fumo e narguilé. O mais completo paraíso artificial que se pode imaginar. Água, muita água.
As telas formam um nicho natural ao centro. Sob elas, um palco fulminado por jatos de luz que vêm de baixo, faiscantes, borbulhantes. Todos conversam com o corpo. Frenéticos. Compondo também a paisagem marinha, como aqueles peixes-papagaios, ouriços, estrelas e esponjas. Uma energia sobre-humana se condensa naquele ambiente, a eletricidade. O rap penetra o âmago de cada um, os gestos são poucos, díspares e dessincronizados.
Estava no Alto da Boa Vista, a Patamo me parou para uma revista
Queria me levar por vadiagem. Eu disse: "Eu não faço curta-metragem"
Entrar no camburão foi humilhação prum cara com a minha formação
Aquela caçapa tava lotada de vagabundo que não faz nada
Eu faço vídeo! Vídeo! Eu faço vídeo!
Vagabundo é a puta que pariu!
Desço a escada para ver o funcionamento da iluminação. Um ambiente sóbrio, amplo, escadas de ferro, piso nu, janelas grandes e fechadas, jogos de sofás, poltronas largas, com braços dobrados sobre si mesmos, sem encosto, largas como camas, jogadas aqui e ali. O branco dos estofados e o cinza do piso. Encontro uma série de casais. Do mesmo sexo, de sexo diferente, de sexo indefinido, tomando por base as posições. Passeio por lá, até encontrar a casa das máquinas. O bombeiro civil está por lá. Um rapaz magrinho, com um sorriso muito grande, cujos dentes mostram sinceridade. Conversamos um pouco. Ele ficou quatro anos servindo o exército, gostou muito. Mas, infelizmente, deu o seu tempo e foi obrigado a dar baixa. Aeronáutica. Trabalha de bombeiro, “civil, não militar” – explica. Mas sente saudades dos companheiros da tropa. Guarda todo o dinheiro que recebe para fazer um curso de mecânica de aviões. Mecânico especializado. “E as festas, não dá vontade de participar?” – pergunto. “Que nada, já me acostumei, pra mim é um trabalho, paga bem, e é só.”
“Meu pai exige uma definição, quer que eu escolha uma profissão
De preferência em computação, mas eu não crio sob pressão
Todos me chamam de encostado, só como e durmo e fico parado
Ninguém percebe que eu tô concentrado, criando um vídeo pra ser premiado
Botei meu vídeo na mostra da folha, só tinha careta e jurado bolha
Ninguém entendeu minha proposta, Matinas Suzuki achou uma bosta
Eu faço vídeo!”
São quatro horas da manhã quando chega o convidado principal. Cantor de muito sucesso duas décadas atrás. Alto, já foi magro, hoje apenas anima a plateia, e canta dublando a própria voz. O peso não permite fôlego para gingar e cantar. Misto de Elvis Presley com Lindomar Castilho. Deixa a platéia frenética, principalmente a feminina. A dona da festa, afogada em um vestido tulipa vermelho, se despiu dançando à sua volta, como se o ídolo fosse o poste. O repertório variou de Trini Lopez, a Ney Matogrosso, passando por “Menino da Porteira”.
Da plateia surgiu um dançarino. Ágil, de roupa negra e prateada, colada no corpo, com uma elasticidade alucinada, repetia a melodia através do corpo, cantava a letra com os pés e as mãos. Olhos faiscantes. Elevou a temperatura. Diabólico. Assumiu o comando da festa, fez com que os casais parassem de se amar, os banheiros se esvaziaram, homens retocaram a maquiagem e apareceram, alguns esquecidos, com os narizes brancos, garçons e garçonetes se confraternizaram, unindo o mais novo com o mais velho. Ele, de repente, raptou e dominou a patroa, o corpo somente coberto com alguns pedaços de pano. Dançaram até a exaustão. O bolo de aniversário é descoberto, dele voaram rolinhas. Apavoradas, procuram a saída.

Perto do final, uma labareda se acendeu, o cheiro ácido de queimado se espalhou juntamente com o pânico. O bombeiro assumiu o comando e salvou a mulher. Busca o cantor. Corre-corre. Uma modelo nua tratou de arrastar o dançarino e tentava sem sucesso tirar-lhe a máscara. Não era apenas máscara. Era um traje colado no corpo, subia pelo pescoço até o rosto, formando uma peça única. Após deixar a vítima em segurança, ajudou a tirar, rasgando, a máscara do homem. Mais de sessenta anos. Rosto descarnado, fiapos de cabelos brancos colados ao crânio. Dançarino profissional, ele vive da renda da mulher que posava nua por setenta reais a hora, mais comida. Mascarou-se para dançar e viver momentos de glória. Foi o único que não deu gorjeta ao valente soldado do fogo. Ele recebeu gorjeta de todos os presentes que ajudou e conseguiu uma féria bem maior do que previra.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

“Quando o juiz lhe deu a vitória, ele não comemorou.”




Neste final de semana estréia novo texto em Histórias Possíveis # 54. Abordará a final de um campeonato de futebol, com cenas de sexo, nudez explícita, pagode, recortes de jornal, livros, piano, investimentos, drama, medo e ódio. Bom humor com piadas sobre Bocage (apesar de se evitar palavras de baixo calão). Além de modernas descrições de “as mil e uma noites”. A trama é inspirada e dedicada a André de Leones, ao lutador paquistanês Pervez de fala balúchi, e a Giovanni Bocaccio. Para você continuar atualizado até lá sugiro a leitura das seguintes matérias “A mulher que ama crocodilos” e “Cadeirante de 92 anos, flagrada com 4 quilos de coca amarrada nas pernas e torso”

Felipe Alcofibras

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Cólon


Se vocês quiserem conhecer uma história bem brasileira, contada por uma nota de cem reais, aqui está a chance. Eu ficarei muito honrado com a leitura. E mais ainda se conseguir prender sua atenção.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Fall




Volta o amarelo na comemoração, agora do outono, lembrança deste fotógrafo, que vem lá do longínquo norte. Ontem ele estava derramado ao chão, se mostrando ávido e satisfeito.Hoje está impávido, fugindo em direção ao alto, buscando o sol e a solidão.
A cor já se antecipando nos pequenos espaços de pétalas folhas, no vestíbulo do cenário principal. E o título em inglês, traduzido do russo, nos remete ao Ipê do sul, chamando a obra de "fall". Devo agradecer à Graça do Chuabo no Zambeze.

Ipê






O bairro amanheceu forrado de amarelo.

Os ipês fizeram sua comemoração de uma nova velha estação.

Algumas palavras estão desgastadas pelo tremendo e excessivo uso feito delas.

Amor, flor, beleza.

Fica a lembrança de uma quase desconhecida: primavera.

Não sabemos quando começa e quando termina.

Coisa dos trópicos.

Mas ela se jogou no chão, serenamente, para chamar a atenção.

E o cinza se tornou amarelo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Pescoço




"Uma noite, depois de muito Chianti,
repetiu-me a definição do costume,
e como eu lhe dissesse que
a vida tanto podia ser uma ópera,
como uma viagem de mar ou uma batalha...
"Capítulo IX A Ópera
Machado de Assis


Quando morei em Mauá, trabalhei com meu pai. Ele veio do norte distante, montanhoso, onde faz muito frio. Era conterrâneo de Marco Pólo e tinha muito orgulho disso. Não deu certo. Ele queria que eu fosse responsável pelo negócio. Eu sofria com isso. Não daria certo, não compreendia o negócio, nem as pessoas. Procurei trabalho em uma companhia que me possibilitasse viajar. Faria qualquer tarefa, desde que não fosse responsável por ninguém, apenas por mim mesmo, e pudesse conhecer outros lugares. Consegui trabalho em uma fábrica de interruptores, caixas de luz, tomadas e variadores de luminosidade. Este foi meu escudo diante da vida; eu aguardava o meu manual de instruções. Algo repentino, que abrisse as cortinas de algum lugar secreto e feliz. Eu tocava o meu dia, esperando. Não me lembro de estar parado, pensando em nada de prático. Não me lembro de tentar conhecer o outro. Treinei a vida inteira não estar à vontade, mas parecer à vontade. Adquiri o hábito de subir e descer escadas, para descansar. Percebi que as escadas das igrejas são as mais íngremes; subia e descia com passos firmes e ritmados. “Somente os príncipes têm ritmo”, dizia o meu velho. Ah, Candelária, você fazia meu sangue bater aqui no pescoço. Gostava de dançar. Não apagava o pensamento ao dançar, pelo contrário: dançava para dizer alguma coisa, para acobertar algo. Conheci minha mulher no Cartola Danças. Tudo passou muito rapidamente, casei, tive uma filha: Penélope. Minha filha é um doce. Linda e inteligente. Divertida. Alegre. Adora dançar, mas é diferente; dança pela necessidade do corpo, não como presságio ou pensamento. O corpo é maleável, musculoso, belo e jovem, seios fartos como a mãe, cadeiras largas. Ela não precisava fazer nada, apenas se exibia. Apenas dançava molejo, malemolência, perícia e sensualidade. Fez curso de literatura, para dar aulas e ter a sua própria vida. Mas gostava mesmo era de exibir-se. Casou e teve uma filha. Parecia seguir o mesmo ritmo. Apesar de não conversarmos muito, percebi a sua corrida. Adorava o marido, conterrâneo do meu pai, e se parecia um pouco com ele, nos gestos, nos olhos. Sério, trabalhador, áspero. Ele se envergonhava toda vez que Penélope dançava para ele. Por exibição. Ela guardara trinta alianças de pretendentes e não aceitara nenhum deles, esperava o seu homem, até que o achou: “o melhor homem do universo”. Nenhum pretendente quis receber de volta a aliança de compromisso. Elas ficaram lá em casa, como penhor. Ela dá aulas para o Colegial. Por algum motivo, incompreensível, algumas fotos dela, de biquíni, caíram nas mãos dos alunos, que fizeram a maior folia exibindo a “gostosa” da professora. Fizeram um campeonato de “cuspe” à distância com elas. As fotos caíram nas mãos dos pais e, por fim, do Colégio. Ela perdeu o emprego, foi taxada de vagabunda e corruptora de menores. Deu no jornal. Ela voltou lá para casa, o marido a abandonou, está lidando para segurar a guarda da filha, e eu, que fiquei viúvo, cuido delas – pouco, é verdade. Ela se meteu a fazer filmes. Agora, véspera de ano novo, saí para comprar tênis. Encontrei uma liquidação e acabei comprando dois, um para neta, outro para a filha. Gastei todo o dinheiro da féria. Restaram cinquenta e cinco reais.

Hoje, trabalho com táxi. Dou carona para as pessoas das redondezas e recebo o pagamento pelo trajeto. Agora mesmo levei a dona Therezinha para o médico, lá no largo do Socorro, defronte ao Cartório. Pescoço: dez reais. Passando, atendi ao sinal de um rapaz que saía de lá. Calça azul-marinho, camisa engomada, branco Omo. Disse que queria ir ao centro. Bem, uma corrida longa não é de se desprezar nestas alturas. Dou um corte no pescoço. Quem sabe, com sorte pegaria outra corrida na volta. Não dou sorte, a rifa não gosta de mim. Eu não gosto do centro. Feio, sujo, intransitável. O rapaz entrou e começamos a conversar. Dei o meu nome: Pio. Aliás, esse nome só criou problemas para mim. Quando era garoto, fui chamado de pintinho, piu, piu, galinho e o que mais a imaginação cruel das crianças inventava. Pio também é uma rima fácil para “Brasil” e “pariu”. As minhas respostas eram rimadas e sem educação.

O passageiro pediu licença para fazer uma ligação para o escritório. Coisa mais estranha, uma pessoa educada assim. E na conversa explicou do trânsito (de fato, estava parado), e que seria impossível entregar os documentos no escritório (ainda bem). Recebeu autorização para ir embora. Pediu-me que o levasse para casa, informou-me que morava no Jardim Filhos da Terra (bem longe). Concordei, fiz a volta e nos encaminhamos para lá. No caminho, uma tremenda confusão. Polícia, moradores, carros de assalto, fumaça, fogo e uma multidão. Pessoas desconsoladas olhando para as ruínas descompostas das ruínas onde moravam, dentro de armários e de beliches, tudo amontoado em um terreno da Viação Santa Cruz dos Enforcados, terreno desocupado há vinte anos, sem muros e cheio de carcaças de carros roubados. Correu o boato de que a empresa não pagava mais o imposto, correu o fato de as pessoas não terem onde morar. Os políticos eleitos fizeram passar asfalto fajuto de “cimento” e condução. Os boatos de evacuação corriam soltos, mas eles se acostumaram também com isso. Precário é o sobrenome de cada um deles. Oferta da cidade. Fomos obrigados a parar. Tropa de choque. Tudo quebrado, chorado. Prazo de trinta minutos para dar o fora. Criança perdida. Atearam fogo em seus barracos. Tudo queimado. Fumaça. Tosse. Conversamos com ex-moradores. Impossível não ser solidário. Eles foram até a bica pegar água e passar um café, que nos foi oferecido. Pensei no livro “Pare de Sofrer”, escrito pelo espírito de Silveira Sampaio, que me fez tão bem, poderia também ajudá-los. Eles se mudaram para a calçada. Têm agora a caixa d’água como banheiro e a igreja como pensão.

Fomos liberados. Passei pelo enorme e abandonado parque, entrei em uma rua transversal. Do lado direito, um boteco cheio de gente jogando bilhar. As crianças corriam pela rua, mulheres lavavam suas calçadas e conversavam. Uma cena tranquila, não fosse pelo fato de a rua não ter saída. Do lado esquerdo, três pessoas paradas diante de um Passat antigo. Todos mal encarados. Os rapazes do bilhar saíram à porta, comecei a sentir que algo estava estranho. E ouvi:

– Pio, a casa caiu.

Parei o carro aos poucos, demonstrando uma calma que estava longe de sentir. Os outros se acercaram com armas automáticas, e encostaram o cano de uma delas na minha têmpora. Saí do veículo. O gelo do metal atravessou a minha cabeça, saindo do outro lado, fazendo um cilindro de ponta a ponta. Queriam furar a minha cabeça. O menino que estava atrás saiu. Todos muito nervosos. Um deles pediu ordem para me matar. Foi negada. “Afinal de contas”, disse um deles, “o cara tá na boa, não agitou nada.” “Quedê a grana?” “Está ali no cinzeiro do console. Pode pegar. Tranquilo, tranquilo.” “Me dá a lupa, apontou.” Entreguei. Estava inteiramente dominado pelo terror. Ofereci os tênis que estavam no bagageiro antes que eles revistassem. Consegui explicar onde os comprei. Estava muito barato, ali, atrás do Pão de Açúcar. Apontando para qualquer lugar. A cabeça foi serenando, senti que não estavam atrás de complicações. Aprendi a responder quando perguntado, entender a gíria deles, tornar-me um igual. Pela primeira vez, vivi a minha vida; tive segurança; estava em contato comigo. O que queria me matar desandou a reclamar dos ladrões bacanas que moravam ali por perto. Eles exigiam a saída dos demais e chamavam, a toda hora, a atenção da polícia com esses crimes pés-de-china. Queriam paz e sossego, tinham cobertura. E instalaram uma guerra ali no loteamento. Ele sabia que acabaria com a boca cheia de formiga.

Contei da minha filha, da minha neta, pedi para ficar com o documento do carro, afinal tinha pagado uma nota para conseguir a licença do táxi, o carro estava em bom estado, e conseguir novos documentos é quase impossível, ficaria um tempão sem poder trabalhar. “Você sabe, motorista de praça não pode carregar arma”, disse. “Não queremos dico, nem a caranga, tá ligado?” “Posso sair?” “De fininho, sai sem fazer barulho. Pega seus bagulho e sai” “Será que você pode me deixar uns cinco contos para eu poder faturar a grana do rango?” Cruzaram os olhares. Ficaram calados. O tempo necessário para jogar no barro a nota de cinco.

“Some. Vai.”

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O Chaveiro





Faixa de couro debruada nas extremidades, preta, aberta e dividida em três abas. Pelo anverso e no centro, uma barra de metal cravada como cabeçalho dotado de encaixes para receber cada um dos olhais dos seis ganchos ou anzóis. A curvatura deles forma uma garganta de abertura estreita, cuja ponta, não tendo barbela, mas a minúscula glande, elegantemente se volta para fora, dispondo-se como amistosa clave para pescar, penetrando o orifício de cada chave que agora por diante lhe pertence. Já existiram chaves que só abriam por fora, chamadas “lacônicas”, talvez originadas pelo desastre ocasionado pela última porta que esqueceram aberta em Constantinopla, a qual deu acesso às tropas do sultão dominador; e outras que só abriam por dentro, restando delas apenas a mítica imagem do cavalo de Tróia com seus guerreiros aguerridos, embutidos e trancados. Elas têm diversos tamanhos e variados formatos, desde a pequena que abre a mala, ou o cadeado, até a grande, a pantográfica e a eletrônica. Também foi sinônimo de bens imóveis e da fidelidade da mulher. Esta deveria trazer consigo os utensílios e entregá-los quando solicitada, e se entregasse, por desgraça, algum falso, seria repudiada com o mesmo tratamento reservado às putas. Chaves importantes eram guardadas no pescoço, enfiadas em correntes à vista de todos. Hoje, no centro de uma cidade, distante alguns quilômetros de Budapeste, existe um chaveiro com a forma de gradil, afixado no canto entre duas paredes. Nas suas barras, são guardadas chaves perdidas por toda a cidade. O segredo do qual a chave é a cifra e ardil se iniciou com duas argolas, uma em cada painel da porta, e o prego que as selava. Estes vieram limpos do latim clavus, transformando-se com o passar do tempo, tornando-se únicos, a ponto de apenas o proprietário descerrar o segredo. A cabeça se achatou e se arredondou para acomodar o polegar, a ponta recebeu um dente e um corte lateral. Depois o dente se espalhou pela haste e dela cresceram serrilhados. Multiplicando seu mistério. Um inventor inglês, nos tempos do rei George terceiro, filho mais novo dentre cinco, frequentou a escola até os dezesseis anos, aleijou-se em circunstâncias não esclarecidas; passou a estudar em casa, não podia mais trabalhar na fazenda do pai, escolheu mecânica e carpintaria. Colocou a mente para observar e conseguiu produzir o melhor cadeado da época. Vendeu milhares de exemplares e se tornou um homem rico. Oferecia um prêmio de duzentos guinéus àquele que conseguisse violar o segredo do seu invento: a tranca de Bramah, que servia como escudo contra os ladrões, na porta de sua loja, em Londres. Depois de trinta e cinco anos, um gaiato finalmente conseguiu a façanha. Após alguma controvérsia, tanto pelo tempo utilizado quanto pelo método, a promessa foi paga. Anos mais tarde, contraiu um resfriado, transformado em pneumonia, e sua alma inventiva o abandonou. Não sem antes ter inventado a bacia sanitária com descarga hídrica. Época em que outra família emigrada das montanhas de Gales para a planície da republicana americana, em Connecticut, e conhecedora do funcionamento e andamento das coisas, enriqueceu-se concebendo artefatos agrícolas, debulhadoras e fechaduras. Seu filho mais ilustre, Linus Jr., interessou-se pela pintura, mas com a morte do pai tomou para si a administração dos negócios. Após estudar engenharia, apresentou o seu conjunto inexpugnável. O prêmio concedido para o improvável violador era de três mil dólares, à época uma soma respeitável. O seu invento correu o mundo e se metamorfoseou em fábricas (Yale), riqueza e poder. Entretanto, com uma mensagem é possível ir se desvendando segredos, em um quarto, ou biblioteca, um banco, da igreja, da gaveta; ou abrir uma gaiola, exibir sem mostrar a fraqueza humana. Como símbolos de segurança, ofereciam acesso exclusivo àqueles que a penetravam, e suavemente conseguissem uniformizar pelo tamanho ou altura todos os tambores e molas embutidos na tranca após um tranqüilo clique. Outras chaves eram feitas de papel e ficavam à mostra nas paredes. Algumas elaboradas apenas como desenhos ou palavras. Agora, juntas, estão no chaveiro. Ele contém seis chaves e nenhuma delas é mixa ou mestra. A dobra lateral direita se fecha sobre o molho acolhido no metal. Elas estão deitadas em posição paralela, com a face dentada voltada para as costas da outra, afastadas milimetricamente para não se comunicarem entre si. No seu dorso, há uma presilha com uma reentrância. Aguarda a outra, à esquerda. Fechando o conjunto, exibindo outra presilha com a forma pontiaguda com um cone esférico na extremidade, acomodando-se sobre a ranhura, que com uma pressão estala e se fecha. O chaveiro tem o tamanho de um terço da tira, exibindo no exterior um brasão dourado sobre o couro, com um desenho que não se consegue decifrar. O conjunto não faz o barulho característico das chaves se batendo e fica guardado no bolso. Hoje, o conjunto inteiro – exceto uma única chave – é guardado em uma gaveta, que contém, além do chaveiro, a Bíblia, algum dinheiro, jóias, folhas de contrato, bilhetes, inseticida, pomada para dores lombares, atlas históricos e diários. Doravante, ele perdeu o hábito de frequentar lugares que necessitam de chaves para se obter acesso. Nada com a corrente, não luta mais contra ela. Esqueceu como se faz para abrir as bandeiras e portas: apenas entra e sai dos lugares sem segredos. Avulsa, no bolso, fica pendurada no cadeado após ter aberto o viveiro com os tangarás. Deixou a portinhola aberta de par em par e observou a saída. De um em um, como um ritual, colocando a cabeça, vestida com a touca vermelho laranja, para fora, compondo a plumagem azul clara e ajustando as penas compridas da cauda para o vôo. A cerimônia da dança, dos machos se colocando diante das fêmeas, exibindo-se um de cada vez, ao cabo da qual cada um vai para o fim da fila, aguardando sua outra vez, até que a fêmea se decida, não mais será representada para outras testemunhas, nem o som intrincado da voz e do bater das asas não mais despertará a atenção pela originalidade. Ele segue o seu caminho de monótonas paredes. Resta a última chave, e toda vez que ele põe a mão para apanhá-la ela escapa, adiante, mais adiante.

“abre-se o portão gradeado do jardim
com a docilidade da página
que uma freqüente devoção interroga
e lá dentro os olhares
não necessitam fixar-se nos objetos.”

sábado, 15 de agosto de 2009

Histórias Possíveis





"Entrei pisando ora o branco, ora o preto do chão de cerâmica descascada. Do lado esquerdo, uma estante vazada de metal, com diversos tipos de chás, aspirina e outros remédios para constipação, pacotes de “Unha de Gato” e “Baba de Caracol” com nácar. Com nácar, a madrepérola, fabricam botões. Nos fundos, um balcão onde é vendido pão integral, e de onde se retiram as roupas agora embrulhadas, lavadas e passadas, em pacotes uniformes....."

Entrem e se divirtam.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Dora Maar




"Bem, agora que nos vimos, um no outro”,
disse o Unicórnio,
” se acreditar em mim, vou acreditar em você.
Feito?"
Através do Espelho e o que Alice encontrou lá,
Cap VII, Lewis Carrol



Sentado na posição de Lótus, diante da planície, um interminável deserto, não fosse um quase regato, riacho Amele. Diante dele, à beira de uma cacimba, as fieiras de tijolos arranjadas sobre o círculo perfeito, feito à mão livre por Giotto, tempos atrás. Não. Ele não se serve daquela água que caiu, gota após gota, do céu ou das calhas, para beber. Comida e água são aquelas dos viajantes, jamais do rio, que param ao ver a cena, sentam, contemplam e alguns oferecem dividir, e ouvem as histórias do homem.
Emanam do poço gotas translúcidas, subindo no caminho da evaporação por entre o éter. Apesar de microscópicas, quando as observamos com atenção, vemos dentro delas, seres animados e inanimados. Em seguida, descreve uma tela de cristal com páginas de palavras fotografadas. Chama a atenção dele e lê: “Poço. Terra profundamente cavada em redondo, e guarnecida de pedras, donde a água, ainda que manancial, como a de fonte, não corre, e ainda que parada, como a da cisterna, não mendiga dos telhados a gotas que caem, mas na sua própria prisão tem todo o seu cabedal. ... Cavar um poço na margem de um rio, era o adágio com que os Gregos significavam a necessidade de quem faz qualquer obra inútil, e supérflua. Brigar com cães em um poço, era outro adágio, com que também os Gregos significavam o trabalho de quem lida com gente impertinente, de que se não podem desembaraçar, Poço. Puteus.”
Os homens são os que sobem mais rapidamente, quase sem tempo de parar a não ser que vejam aqui algum comerciante e sendo assim, sempre encontrarão tempo para fazer negócios. A parada se chamará, doravante, amizade. As mulheres ao subir giram o pescoço em torno do tronco, buscando alguém e, como os peixes, conseguem controlar melhor a velocidade da subida ou descida, não raro são atraídas por alguém, naquele estranho oásis, pela pose, companhias, aparência ou algo inexplicável. Dizer que o asceta é ouvinte e observador minucioso? As crianças sobem num ritmo errático e frenético, seu percurso lembra o das moscas varejeiras, com súbitas alterações na rota e ao final ficam paradas, imóveis no ar por segundos, sem aviso prévio. Os animais veem de ordinário, seja dia ou noite e são de vários filos. Cordados domésticos ou selvagens. O contato é para os domésticos uma proposta de troca da caça pelo abrigo, e, para os demais, a visita é furtiva, solerte ou parasitária. Passam agentes de toda ordem e inanimados.
Tamás Tomek, esse é seu nome, contou dos viajantes que conheceu. Até hoje nenhum conseguiu ver essas bolhas, nem subindo, nem descendo, muito menos objetos, sequer a cisterna. Ao fazer a descrição da situação, os viajantes parecem se incomodar com aquela insanidade, e, depois da refeição, raramente a história conserva o fôlego para uma segunda rodada, e eles se vão, meneando a cabeça, exibindo um sorriso de canto de boca, mas com uma rapidez sensível aos olhos. Enquanto conversa com os visitantes, ele explica, também faz contato com os que estão naquelas ampolas. Ele prefere os de língua estrangeira, pelo contato duradouro, fruto do tempo que levam para ajustar o diálogo, o fôlego e a compreensão, para além do som e do tom. Em especial aos marroquinos, eles falam árabe, francês, inglês e espanhol. A conversa passeia por todas as línguas. As palavras são escolhidas com a ajuda de uma sintaxe particular do momento, às vezes com simples gestos. Conta histórias dos animais domésticos. São os mais afáveis, sempre nos julgam úteis ou benéficos. (... um deles estava a jogar pôquer, e ganhava sempre do homem. Uma mulher, ao observar a partida, disse: “o cão joga bem, mas não é perfeito, ele balança o rabo quando tem boas cartas”.) Relata de outros organismos agindo como as artimanhas da noite que penetram as artimanhas do dia e após invadir as células do seu corpo, se espalharam feito o fogo original e criador, replicaram-se e alimentaram-se do próprio calor até encerrar seu ciclo; deixaram-no com uma coxa de prata, que não teve ainda oportunidade de mostrar a ninguém.
Ele, o só, apresentou-se como sucessor de Dora Maar, a façanhuda, que conseguiu a proeza de viver dentro de um desses globos por muitos anos, junto com um espanhol, que pintava a dor, e quase não se sentava mais aqui, a não ser por alguns momentos em que a parede de sua partícula de névoa se rompia. Mas, graças a sua habilidade extraordinária, o ambiente se regenerava e ela conseguia entrar e sair repetidas vezes, sem destruir aquele equilíbrio instável, um etéreo labirinto. (Ela conseguira o primeiro ingresso manejando seu canivete aberto e pontiagudo com a mão esquerda, mostrando a lâmina saltitante e rápida, por entre seus dedos abertos da mão direita vestida com a renda da mitene deixando as unhas rubras de fora. Nem sempre acertava a mesa e se magoava. Chorava. O homem que se tornou seu, observava atentamente se aproximou e pediu a luva manchada de sangue como presente, e disse: “Foi uma linda exibição e um belo gesto.”).
Aqueles que falam a sua língua têm um contato mais fácil e eficaz, os assuntos parecem compreendidos com maior clareza. As palavras são jogadas de lado a lado, um jogo que adquire velocidade e fluência, parece ser uma promessa de felicidade ofertada pelo pingue-pongue. A promessa é o convite para dentro da bolha. Lá dentro tudo é mais faiscante, como cristal sob a luz, até o instante em que homem utiliza a palavra proibida. Foi falada. Terminado o impulso daquele ar no pulmão, após ele percorrer a faringe e passar pelas cordas vocais, atravessar a boca e atingir o ar exterior, soando como a palavra de Poe, bate na parede e estoura. A palavra é a ponta que rompe a bolha e cria estrelas e somente estrelas. Ela continuará levando quem, ou o que estava, dentro dela, e o observador voltará ao posto à beira do buraco. O centro daquela cena não pode contê-lo. Foi assim o que ocorreu em determinado dia com Dora.
Depois disso, Tamás quedou-se ali observando, até encontrar a mulher que o possuiu. Passava bem longe, enigmática. Ficava em seu ambiente, calada, não tomava conhecimento dele. Não se aproximava, nem subia ou descia; tampouco conversavam, apenas mostrava seu corpo, seus homens, seus amores. Esqueceu-se de tudo para olhá-la. Encheu o seu peito. Usou uma tesoura para magoar seus dedos, sem sucesso. Lastimou sua mão, a dor causou prazer. Ele forçou sua aproximação, até que um olhar autorizou sua entrada. Sentaram-se frente a frente. Joelho contra joelho. Ela cobriu seu corpo com um tecido fino e ofereceu-se. As mãos de Tamás se aproximaram, hesitantes, e pararam a milímetros de distância da pele, trêmulas, suadas. Não houve propriamente o tato, apenas a impressão, sensação dele. Foi emoção suficiente. A ansiedade para usufruir daquela felicidade o inundou como um vírus e se alastrou arrastando tudo dentro dele, remexendo líquidos, fluídos, acelerou a corrente sanguínea, atingiu uma velocidade alucinante, o calor o queimou até a ebulição e procurou, desesperado, o canal para sair. A corrente se fez fluxo e escapou para o mundo exterior. Borrou; espirrou; empurrou para adiante o oceano, piracemou. Ela percebeu o que havia acontecido e disse: “Amor é isso. Agora você já sabe tudo que deveria saber.” O ambiente se estilhaçou. Ele saiu violentamente. Apenas se lembra que abriu suas veias em uma bacia de água morna.
Conheceu Philippe Petit. Pensa agora em convidar o equilibrista, para ocupar seu posto. Não o quer mais, vai se fundir na areia, desaparecer. Petit não mostra seu pensamento por meio de palavras, mas com atos. Assim como o jogador profissional de cartas, ele não fala, ele apenas joga. Uma nova era será inaugurada. Mostrou o seu equilíbrio sobre um fio, distante quatrocentos metros do chão, e o atravessou oito vezes e se deitou sobre ele. Apesar do vento, do frio, do perigo. Milhares de pessoas avistaram aquela figura sobre uma linha, invisível, entre os dois edifícios que não mais existem, lembrando a cauda de um cometa. Ele emitiu naquele momento o mesmo tom, a mesma irradiação sonora de cada planeta do universo. Ele fez parte da musica das esferas. Tudo estava consigo, não mais havia desencontro, tudo se equilibrou, e foi apenas por um instante. Ele não sabia o porquê, sabia como.
“Calcas, filho de Testor, de longe o melhor dos adivinhos.
Todas as coisas ele sabia, as que são, as que serão e as que já foram.
Guiara até Ílion as naus dos Aqueus, graças aos vaticínios
que lhe tinham sido concedidos por Febo Apolo.”

terça-feira, 14 de julho de 2009

Tartã




Se pudéssemos ver o homem, o entenderíamos


Ascídio desce a escada que ascende do subsolo. Trabalha lá embaixo. Perna esquerda mais curta e braço esquerdo mais longo. Gosta de comer ouriço do mar, sempre diz que são parentes entre si, mas não é canibal, o parentesco é distante, tampouco se considera um marciano, talvez uma deformação de estrela marinha. Queda-se lá, mesa cheia de papéis que passam, param e tomam outro destino. Guarda alguns para suas anotações naqueles sem mais serventia. Dentro do gabinete resta como paisagem, enterrado em uma pedra submersa, apenas aparecendo em festas e reuniões com muitas pessoas. As tarefas do trabalho para o qual foi contratado terminaram, entretanto sua movimentação constante, sua atribulação aparente e seu ar sempre ocupado simulam a sua indispensabilidade.

Em tempos passados usou um boné pensador, chamando a atenção sobre si de maneira inconveniente. Todos o olharam e viam algo que o conduziria à morte. Pessoas desconhecidas, tendo ouvido falar do chapéu, vieram vê-lo; não assim frente a frente, mas, arranjando algo para fazer no departamento, olhavam para ele de soslaio. Ascídio compreendeu, então, o destino dos olhados em demasia. Todo examinado é uma cópia fiel do examinador. É a si próprio que o outro vê. O chapéu é um acumular dos ódios alheios. Teve apenas um amigo no passado, já distante, um boxeador. Depois dele, seus amigos residiam no futuro. Não conheceu, ao longo da vida efêmera, outro alguém que o olhasse para compreendê-lo, para pensar sobre diferenças. Considerava-se um ponto fora da curva, desprezado para efeito de análise ou consideração. Era o raciocínio que lhe dava segurança. E foi assim que deixou de usar o seu chapéu.

Consultou um ortopedista. Queria saber se havia alguma maneira de tratar o crescimento ímpar de seus membros. Sonhava em ter um aspecto normalizado. Foi atendido pelo assistente do Doutor Nicolau Capote, tirou suas roupas e deitou-se na maca do médico. O assistente apalpou, examinou, consultou os reflexos por todo o corpo, perguntou de sua ascendência, de seus hábitos, analisou todos os exames de laboratório pedidos preliminarmente. E, passo a passo, passou suas impressões ao doutor Capote. Este, de repente, levantou-se e fez algumas considerações a respeito daqueles resultados ao residente. Uma pergunta ou outra, e deu o seu diagnóstico. O mestre mandou. E disse bem: coloque um salto maior no pé afetado e mande fazer suas roupas sob medida e ninguém notará.

Mesmo insatisfeito com o resultado, conformou-se e seguiu sua vida. Encontrou um galego residente no Brasil, há muitos anos, alto, gordo, calvo, claro e sardento, um negro faiscante no olhar curioso, um ligeiro tremer de mãos, adorador de tangos, dançarino desde moço, aprendeu a costurar e fez o seu primeiro terno em linho ‘cento e vinte’. Altivo e formal, conheceu aquela com quem se casaria em um baile e se apaixonou. Pediu a ela autorização para ir ao seu último carnaval sozinho. Autorizado, se esbaldou e nunca mais foi boêmio. Só alfaiate. Combinou com ele o preço, a forma de pagamento. Fez provas intermináveis onde contava as gravações do Gardel, do seu acervo de discos de setenta e oito rotações, gabava-se de ter a maior coleção da América, jamais tivera conhecimento de outra que lhe chegasse aos pés. Experimentei o conjunto e percebi que a perna esquerda da calça estava mais longa e o braço esquerdo mais curto. Olhou para o senhor Salvador e disse: “Está fora das medidas, senhor Salvador.” “ É, mando fazer a calça em um calceiro e o paletó é costurado pela minha mulher. Talvez ambos pensaram que eu me enganei nas medidas. Deve ser isso.”

Ele amarra e desamarra seus sapatos pelo menos uma vez, todos os dias. Os cadarços não chamam a atenção, auxiliam e atacam seus furos, sem reclamo, exigência, eles estão sempre lá no seu lugar, semiprontos para o dia seguinte. Certo dia, o ourelo se racha, o do pé esquerdo. O capuz cônico e brilhante dia após dia vai se desfazendo. Logo pensa em trocá-lo, por outro, mais novo, ele passa a requerer mais atenção. Deve juntar primeiro os fios da ponta, agora soltos, numa forma afilada, para penetrar o buraco do ilhó da aba esquerda que cobre a lingüeta, e preparar o laço final. Ao mesmo tempo passa a olhá-lo com desvelo, concluindo não ser justo atirá-lo fora pelo problema no cabeço. Ele ainda serve. Além de não jogar fora o outro, do par. (A compra é sempre feita aos pares.) Amarrar os sapatos é agora uma tarefa cuidadosa e demorada, não mais automática. Faz uma escultura instantânea e fugaz dos fios. Existem fios longitudinais e transversais, cada um forma uma estrutura, o urdume ou urdidura, este último a trama, eles se juntam em duas pontas agudas e passam perfeitamente para o outro lado e se encontram no laço final. Olha cuidadosamente para o calçado, e descobre a alma dele, assim como o atacador também. Ele é uma síntese. Durante um bom tempo, ele esculpe todas as manhãs. Um dia, um dos fios fica mais comprido que os demais, ele se estica à frente colocando o pescoço de fora, talvez um ato de rebeldia, pela torção constante que passou a sofrer. Ele o puxa para fora, e corta com as unhas. No dia seguinte, andava por uma calçada, quando alguém que o acompanhava, parou se abaixou e puxou um fio que aparecia e se arrastava sob a barra da calça, fazendo-lhe o favor. Chegando a casa, Ascídio percebeu. A trama se desfez até metade do cadarço, ele agora se resume numa rama de fios soltos até a metade. Antes de jogá-lo fora, amarro o meu pé esquerdo com ele pela última vez, apenas até o penúltimo dos ilhoses.

Folheando o jornal, uma notícia de falecimento trouxe à lembrança, a presença quase física do amigo, depois de vinte anos de sua morte. Um escritor que se exilara de sua terra natal, viveu grande parte de sua vida em uma remota ilha na Ásia. Escrevia apenas sobre o futuro, o passado servindo para mostrar as várias probabilidades dele. O presente ele vivia apenas para o mergulho e as crianças. Essa ilha e sua Grande Barreira de Coral davam-lhe beleza, o mar tirava-lhe a força da gravidade e ele flutuava, olhava as semelhanças, as diferenças, no silêncio absoluto das eras anteriores ao próprio homem. Via e compreendia como funcionava a natureza, sem intermediários. Acreditava que o mar e o espaço se confundiam. Costumava dizer que deveríamos não acrescentar anos na vida humana, mas, vidas nos anos que faltavam. Nós já vivíamos o suficiente.

Nesta noite sonhou com corais, cores, profundezas, azuis. No dia seguinte, ao se aproximar do trabalho, deu uma esmola a um velho, e ouviu a pergunta: “O senhor é inglês ou americano?” “Por que?” ”É o seu paletó.”

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Dança Ritual Urbana, III








Wabi Sabi, terceiro movimento

Ezê descobriu na dança a maneira mais sutil e eficiente para compartilhar sentimentos. O gesto trai menos que a palavra: vago, mas definitivo, aberto para a interpretação de que você precisar. Após assistir ao espetáculo, saía flutuando, esperando encontrar os seus amores e lhes contar.
Acabara de ver Susana Yamauchi no teatro da Dança e saiu dali, ainda sobre as nuvens, andando, pela avenida São Luís:

“Ao nascer, ele entra no reino dos sonhos apenas para despertar para a realidade na morte. Tempera o próprio brilho de modo a se fundir na obscuridade alheia. Ele “reluta como quem cruza um riacho no inverno; hesita como quem teme a vizinhança; é respeitoso como um convidado; trêmulo como gelo prestes a derreter; despretensioso como um pedaço de madeira por entalhar; vazio como um vale; disforme como águas revoltas”. Para ele, as três jóias da vida são piedade, parcimônia e modéstia. Kakuzo OKakura”

(...os tempos que correm ensinam a mirar o próximo. Jamais temos tempo ou disposição para mirar a nós próprios. Perdemos a capacidade de nos extasiarmos com os nossos sentidos. Capacidade despertada em mim ao ver centenas de pétalas vermelhas derrubadas no palco, caídas da cerejeira da minha mente. A imagem do outono veio súbita. Surgiu a chegada do inverno através da mudança da luz, tornando o vermelho em prata, algo imperceptível, mas revelador. Lembrei de hoje pela manhã, ao sair de casa, daquela árvore tomada pelo mesmo tom de vermelho. A árvore me acudiu como amiga, explicando o wabi-sabi. Mas essas reminiscências não estavam solitárias. Incluiu as mãos e os gestos da artista e a complexa interação da permanência e da impermanência tornando-a dramática pela súbita transformação de um corpo em dois. Sobre os ombros, as máscaras ocupando um só corpo, todo feito de frente, sem as costas. Um de face alva, outro de face rubra, nos confundindo, fazendo-nos esquecer o eu, e se comportavam de forma a indagar em qual rosto deveríamos nos reconhecer. Talvez fossem a mesma pessoa, segundo a tradição do Noh. O monge de face bárbara indicando um roteiro para a imóvel, branca face do ser.
Do palco, esvaía uma névoa, nos convidando para um mergulho naquela água em partículas, e mergulhados observaríamos. Os elementos naturais do vento feito gestos me estremeciam, como se eu estivesse sendo golpeado. O frio, a caçada aos animais, o rio, todos mostrados com brevidade e leveza, entremeados com a cerimônia do chá. O rico quimono branco ritual, deixando à mostra as mangas, davam um tom erótico ao movimento, os cabelos que jamais foram cortados da cortesã, enfeixados por uma faixa vermelha, sinais que viajaram através de mil anos e me transportaram ao período Heian, ao tempo em que se respondia uma poesia com outra completando e ampliando o seu significado, ao tempo em que não se olhava nos olhos de ninguém do sexo oposto, e as mulheres estavam protegidas pelos pequenos biombos. O suave movimento das mãos mostrava como se raspava a pedra de chá. Tudo preparando o espírito, para a culminância do ato de amor, praticado com ductilidade, centenas de vezes, com uma harmonia e um senso do frágil que eu pensava perdida para sempre. Relegada ao código genético do Dodô, e ela ressurgiu no palco, com um entrelaçar de mãos que jamais esquecerei. Um traje negro poderia ser o fim trágico daquela história, mas isso não importa. Eu passeei por todas as sensações inexploradas, percebi apenas esquecidas. Elas me revelaram. Para se entrar no recinto onde o chá é preparado, toma-se um caminho levemente tortuoso, preparando o espírito. A roupa flamejante de preto e vermelho, me alertou, durante a cerimônia, para que eu me preparasse para ver. A impermanência que torna tudo mais belo. Fugidio. Sei. Não consegui compreender tudo, mas sei também que consegui saber mais de mim do que em muitas e muitas leituras. Onde o nada me tocou, marcou.).

A avenida está deserta. Ando com um pé na calçada, outro no leito, para meditar.

Nono dia do mês de Av, finale

David caminhava pela Avenida São Luis, próximo ao teatro. Passou por um bar e ouviu:

Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir prá não chorar
Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar...

Chegou ao máximo do desprezo por si mesmo. Acarinhava a arma a todo instante, como se estivesse testando a possibilidade dela também o abandonar. Queria encontrar algum caminhante solitário. Precisava dar fim àquele sofrimento. Sempre achou o samba um tédio, aquela poesia daquela música, chamou sua atenção agarrando seu casaco como se tivesse braços.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Dança Ritual Urbana II



Dança de rua, segundo movimento

David formou-se em jornalismo a pedido dos pais. Não sabia, ao se matricular, sua vocação. Até hoje não a encontrou. Homem de poucas palavras, ensimesmado. Passou curso todo, dez semestres, sem fazer amigos. Os contatos cordiais, diários, não conseguiam representar nada, ele não agradava ninguém. Simplesmente não compreendia aquela alegria toda, a vantagem de viver a vida sorrindo, estourando emoções esfuziantes, batendo nas costas dos outros, jogando bola e contando piadas. Não via a menor graça nisso. Foi considerado esnobe. “Rico não gosta das pessoas, sente-se superior.” Uma ilha sentimental. Em casa, discutia-se muito o valor do dinheiro. Ele, não. Ele apenas ouvia. Orçamento baixo e contado. “Economia é a base da prosperidade.” Economia sempre. E a prosperidade? Jamais. Os pais não conversavam entre si, se excluirmos as conversas utilitárias; ambos trabalhavam. David não conseguia dar valor ao dinheiro, não tinha ambição alguma. Pouco era suficiente; tentou trabalhar em diversos lugares, sempre o ambiente lhe parecia hostil e degradante. Odor insuportável de azoto. Gás mostarda; em baixa concentração, vazando em algum lugar. Todas as relações entre as pessoas eram tóxicas, mediadas pelo dinheiro. Alguém queria algo de alguém, fazia amizade para conseguir. Via apenas valor de troca. Agora: estava adernado em um jornal. Só fazia pesquisa. Não conseguia ganhar a rua. Fazer uma reportagem? Não, não era esse um anseio, o escrever. O desejo era mesmo de ganhar a rua. Sair daquele cheiro insuportável. Como na faculdade, tampouco lá fez amigos na redação. Sentia-se só. Usava constantemente um boné, com a pala baixa, cobrindo os olhos e metade do rosto. Olhava com asco os carrões dos chefes na garagem. Sua vida era ler (odiava) e pesquisar (também). Guardava praticamente o salário inteiro. A sua história poderia ser resumida em dois grandes momentos: dois assaltos. O primeiro ocorrera ainda criança, saindo da escola, tênis novo. Dois meninos o ameaçaram com facas e levaram seu tênis e toda a roupa. No segundo, anos depois, estava em um ponto de ônibus, voltando da faculdade, teve o dinheiro do bolso levado, uma arma apontada por dentro da jaqueta. “Sou trabalhador como você”, lembra de ter dito. Fora ultrajado. Sentia humilhação ao passar por isto, e uma tremenda raiva. Sentia medo, e vergonha, não conseguia reagir. Afinal de contas, tinha tamanho para isso. Mas sua autoconfiança esvaia-se pelo ralo da sua vida. Passou sua existência para satisfazer os pais, não queria satisfazer mais ninguém. Esquecera-se de si próprio. Tinha apenas a posse da sua raiva. O cinismo crescia dia após dia. Era o emblema que o segurava à beira daquele ralo. Não queria ver lá por dentro. Olhava apenas para fora, apesar do tédio, enganava a dor. Doía muito. Lembrava-se também do último ano da faculdade. Fora assistir aos jogos universitários, com alguns amigos do tempo do colegial, hoje advogados, administradores, todos trabalhando e fazendo carreira. Uma agitação extraordinária para ele, não estava acostumado. Tomou muita cerveja e apagou. Lembrava-se de algumas meninas, toalhas molhadas, corpos nus, mas a lembrança era vaga. Apagou por dois dias. Acordou com muita dor de cabeça, um gosto de chumbo na boca. Um colega de classe perguntou se ele queria outra mais, para arrebentar na festa. “Não, obrigado.” Percebeu que tinha tomado alguma coisa. O cinismo explodiu em pânico. Voltou o mais rápido que pôde. Sabia agora que todos, sem exceção, eram cúmplices. Transavam drogas, ele participou de um ensaio geral. Seria abduzido. Fez ligações entre as conversas ouvidas na sala, na festa, lembrava dos gestos, dos sinais. Havia um complô. Comunicou aos pais e ficou uma semana sem sair de casa. Apenas se prevenindo para o golpe que havia de sair, não sabia de onde. “Você sabe o que é esperar algo, sem saber de quem, de onde, quando? Você tem a menor idéia do que é isso?” Lembrava que lhe perguntavam onde morava, qual o andar. Seria um assalto, viriam roubar novamente. Levou suas coisas para a casa de um parente próximo e de confiança. Não precisava explicar nada. Pediu um lugar para guardar algumas coisas no depósito da casa, levou um cadeado e trancou tudo. E esperou. Nada. Esperou um flagrante de estupro. Ou uma acusação de uso, consumo e tráfico de drogas. A dor aumentando, a culpa por freqüentar uma festa como aquela. Não ganhou nada, sempre estivera certo. Não gostara de ninguém e muito menos de si. Pensou na irrelevância de tudo. Nada mais fazia sentido. Largou o emprego também. Comprou uma arma. Pensava em emanar por lugares onde não era conhecido, encontrar pessoas solitárias, em lugares ermos, e matá-las. Uma por uma. Não havia erro. Sem nenhuma lógica, a esmo. Não queria ser alvo dos policiais. Um dia aqui. Outro dia ali. Não pretendia justiça. Não procurava bandidos. Procurava por solitários. Gente como ele. Conhecia uma jornalista que escrevia sobre personagens dos bairros da cidade. Dava nomes, narrava coisas pitorescas. Iria num bairro daqueles, um dia, escolhia a esmo, sem testemunha, um tiro só. Para isso fez um curso de tiro. Tinha uma boa visão e mão firme. Foi aprovado com louvor. Casa Verde, Santo Amaro, Freguesia do Ó, Vila Olímpia, Jaguaré, Capão Redondo, Jardim Europa, Vila Carrão, Vila Matilde, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes e Centro. Aos poucos, a raiva daria lugar à confiança. Não sentia nada por ninguém. Tudo o que sentia era raiva. Raiva e mais nada. Uma raiva difusa, sem direção, contra o seu semelhante, contra si. A dor, quem sabe, se extinguiria. Não mais o incomodaria, não teria mais que freqüentar o médico psiquiatra. Afinal, aquele imbecil não falava nada mesmo. Dava um remédio. “Sossega leão, doutor?”. Transferência. Que nada. Mandar todos para o inferno. Viveria junto com os pais, para sempre. Pronto. Passava as noites imaginando o roteiro, os cuidados que teria que tomar, para não ser visto. Passeou pelos bairros todos. Lia a crônica e vagava pelo bairro. De manhã. Outro dia, à tarde. Ou à noite.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Dança Ritual Urbana



Caboclinho, primeiro movimento

Ezequiel era assíduo em um bordel onde as meninas se vestiam de comissárias de bordo, o uniforme justo e moldado ao corpo era embalagem a vácuo e os homens enlouqueciam com os trajes, trejeitos ou rejeitos. Formidava um cliente cego, que exigia o conjunto da Alitália, para atingir o máximo de prazer. Corria o boato que ele possuía onze penes.
Dali veio a idéia: colocar rapazes trajados de comandantes para vender cortes de cambraia, tweed, lã e linho. Escolhia um determinado tipo de cliente. Estudava seu comportamento, fazendo as primeiras vendas. Selecionava tecidos baratos, adicionava uma história triste da vida do vendedor e vendia tecido e história, como se os tivesse trazido da última escala. As rotas: Milão - São Paulo, Berlim - Rio e Paris - São Paulo. Condoído pela história, vendo a oportunidade de fazer um bom negócio, o cliente ocupado, cobiça à solta, missão cumprida, venda feita. Explorar esse sentimento é muito lucrativo, e é fundamental ser um bom ator. Teatro do Comércio.

Depois passou a vender imóveis perdidos pela cidade. Conseguiu contato na prefeitura para obter informações sobre terrenos com dois proprietários pagando impostos. Comprava documentos de identidade de pessoas homônimas a um dos donos e, pronto: colocava à venda por um preço entre trinta e quarenta por cento abaixo do mercado. Choviam compradores. Revelava pessoas e criava propriedades.

Para os clientes das feiras da cidade, possuía artigos de menor valor e de muita qualidade. Tijolos com dinheiro, bilhetes de loteria, ou alianças. O tijolão era o fascínio e tinha a maior aceitação. Colocava uma nota de um dólar por cima, outra por baixo, e um maço de papéis cortados no meio. Tamanho e peso calculados. Pacote fechado, amarrado fazendo marca, desanimando a abertura.

Para venda do bilhete é indispensável o jornal do sorteio. Comprovava-se que o prêmio se extinguia naquele mesmo dia, coisa urgente, fácil e rápida. Não requer prática ou habilidade. Lógica pura.

A aliança era o produto predileto. Com o certificado de garantia feito em gráfica de confiança, mostrava-se a peça pesadíssima, de ferro, revestida com verniz dourado a prova de unha. Atingia sempre o melhor preço: cem reais (custo: dois). Nas feiras são contadas as melhores histórias, de amor, traição, morte, perseguição, cobiça e castigo. Maior a desgraça, maior o prêmio. Mediante um bom lucro, a história condói a todos que têm algum dinheiro no bolso e alguma necessidade imediata.

Montou uma equipe amiga e profissional ao longo do tempo. Todos atuando sob cerrada supervisão. Ele era muito detalhista. O requisito principal para o trabalho era o rosto. Ferramenta de trabalho, confiável, amistoso. Do resultado bruto, ele ficava com quarenta por cento e custeava todas as despesas. O vendedor ficava com quarenta por cento e vinte por cento eram destinados ao departamento jurídico.

Ezê pertencia a uma antiga tribo de judeus caraítas, da sua crença ancestral guardava no peito, apenas o horário de Jerusalém; estivesse onde estivesse aquele era o seu. A aversão pela idolatria o transformara num ateu. Não teve sorte com as mulheres; escolheu duas esposas. A primeira sentia orgasmos apenas quando escovava os dentes, independentemente do tamanho da escova. Era um mistério. A outra, pela força do pensamento e durante o dia. À noite, estava cansada demais para tentar pela via tradicional. Diante do duplo fracasso, resolveu viver só. Recolhia as crianças doentes, em estado terminal, com até três anos de idade, abandonadas. Recolhia também os idosos no final da vida, retirados da rua. Acolhia também os cães famélicos, sarnentos.

Formou equipe para ajudá-lo e com ela consumia o seu rendimento. Foi a sua maneira de encontrar o amor. Tanto nas crianças, que amam sem qualquer condição, extravasando amor da maneira mais grácil que se pode imaginar, como nos idosos, ele as via como crianças engelhadas. Os vizinhos próximos criavam sempre problemas, alegando que os cães latiam e atraíam outros animais, também a algazarra que faziam as crianças e o mau cheiro dos velhos, cães e talvez dele mesmo.

(continua...)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

“Convém aos felizes ficar em casa.”




Enrique Vila-Matas em ‘Suicídios exemplares’.

Cultivo algumas plantas, flores e arbustos nos fundos de casa, capim barba de bode (por dois motivos: sem capim não poderá subsistir a espécie humana; cuido, assim, da minha cota, e pelas flores que são lindas), lobélia (suas flores miúdas e intensas de azul), estévia (posso adoçar o chá preto com um galhinho seco) e a minha predileta, a orquídea borboleta (cuja flor atrai borboletas e pássaros). Todo dia coloco algumas frutas para alimentar as aves. É o meu espaço verde e amistoso.

O dia é fresco e agradável, o sol está apontando lá na linha do horizonte. Quando me perco admirando as plantas, ele aparece como uma gema.

Sou corretor. Pesquei um grande negócio. Recebi o nome de uma pessoa interessada na compra de uma grande casa. O presidente da companhia encarregou a secretária da tarefa. Ela me perguntou, gentil e afável, qual o valor a ser recebido em caso de sucesso. Concordamos. Encontrei algumas opções e as ofereci. Estávamos prestes a fazer o negócio quando recebi o telefonema de um antigo amigo. A amizade sólida exigia que saíssemos para jantar regularmente. Ele se colocou à disposição para me ajudar no atendimento ao executivo. Ele também é presidente de empresa, com conexões internacionais. O pai dele, banqueiro, homem de muitas relações, deixou como herança, além de uma bela fazenda e outros bens, essa rede de suporte social que antes se chamava rol de amigos. Os filhos deles frequentavam a mesma escola. É uma operação triangular de amigos. Ele, amigo do meu cliente e meu amigo, poderia perfeitamente ajustar tudo. São os dois catetos. Eu, a hipotenusa. Ele me pediu para informá-lo do preço de mercado de vários imóveis, para comparação. Felizmente, o melhor de todos foi o que apresentei. Essas compras são demoradas, as negociações são complexas, as pessoas envolvidas titubeiam, ficam inseguras, o valor envolvido é fruto de economia de muitos anos, muitos riscos envolvidos, mas acabamos por negociar um preço ainda menor. Essa redução final só foi conseguida após um abatimento no valor do meu cheque. Geralmente, para fazer uma redução de preço, o cliente exige a minha solidariedade. Eu não consigo recusar.

Hoje, devo me preparar para levar os documentos aos advogados. Meu amigo faz questão de levar e vai ao meu escritório para pegá-los. Durante a conversa, falou em dinheiro. Quanto ele receberia por ter me ajudado tanto? “Bem”, eu titubeei, “não posso pagar muito, já paguei pela indicação do nome dele e já reduzi o valor da comissão, você sabe como é, não?” “Sei, sim, mas cada um sabe do seu problema. Eu quero a metade do valor para mim, também tenho meus compromissos, e não posso trabalhar de graça.” E de nada adiantou qualquer ponderação, ele “preferia” que o negócio fosse realizado por alguém mais “compreensivo”.

Meu vira-latas se chama Giggio. Ele adora companhia, e talvez por esse motivo seja afastado do nosso convívio pela minha mulher. Ela detesta o cheiro do animal, que segundo ela se espalha pela casa. Sendo assim, ele fica confinado nos fundos. Ele é muito expressivo, o seu latido tem diversas variações, é quase uma fala, dependendo do ouvido disponível. Existe nele um dispositivo que dispara de vez em quando. Isolado e sem que ninguém lhe dê atenção, algo se enche dentro dele. A partir das seis horas da manhã, começa a ganir, latir, grunhir e gemer em diversos tons, sem muita altura, mas com a intensidade suficiente para demonstrar sua insatisfação, sem incomodar. E lá ficam ele e suas fungadas prolongadas que passam pelo vão debaixo da porta. Gera uma compaixão enorme, mas a casa continua no ritmo normal de toda manhã. Eu abro a porta, deixo que ele morda um pouco meu calcanhar, sorria pelo rabo, dê alguns pulos, divido como ele parte da minha fatia de mamão. E vou trabalhar. Deixo a casa em silêncio.
Um faxineiro trabalha comigo por um salário mínimo. Uma figura pequena, escura, os olhos ávidos numa face mal barbeada, coberta de cerdas cerradas, grossas e lutando uma contra a outra, cerdas que, partindo em direções contrárias, cobrem todo rosto, como se o defendessem de algum ataque, até abaixo dos olhos. Calças cambaias de muito uso, com vários vincos horizontais em leque nos joelhos e virilha, cobrem suas pernas encolhidas e tortas. A camisa perdeu a cor original, o padrão parece ter sido um xadrez, resultante da briga entre o marrom e o negro. Um pequeno chapéu amassado coroa a cabeça, com uma aba minúscula, cobrindo, envergonhado, o monturo. Sua imagem lembra um torrão. Vive só com a mulher. Do seu salário, não gasta quase nada. Mora de favor, come pouco e acha boa a comida da companheira. Empresta a juros tudo o que ganha. Seus colegas vivem a sua felicidade no dia-a-dia. Ele, não. Ele guarda, coleciona seu dinheiro. Só o faz para os colegas próximos, para poder receber. Tem muito medo de perder suas notas. No dia do pagamento, faz a coleta. E guarda. Abriu uma conta no banco, venceu a vergonha de não saber escrever, a não ser desenhar o nome. A poupança rende algo mais sem precisar trabalhar. Um dia passou mal. Dor aguda, tontura. Levaram-no para o pronto socorro. Apendicite. Foi marcada cirurgia para dali a três meses. Fui avisado do caso e da história dele e pedi ao sistema de saúde uma antecipação, pois o caso era urgente.

Ao telefone, o advogado do comprador pergunta se eu conheço aquele nome de vendedor. “Sim, conheci na negociação. Ele vende o imóvel para receber o dinheiro gasto na educação dos sobrinhos. Ele é o tutor do casal.” “Pois, então. A moça matou o próprio pai, que era o dono da casa. Você não lê jornal?” ”Sinto muito, mas não liguei o nome à pessoa. Afinal, isso não tem muita importância. A casa está em perfeitas condições, foi revisada e analisada com muito cuidado. A casa não é da filha, é do tio dela. O seu cliente é estrangeiro, morou no exterior, e não se preocupará com isso. Estou certo disso.”

Almoço com meu filho, depois de muito tempo sem o ver. Tentamos nos aproximar, falamos banalidades, a comida não é boa. Ao sair, sou abordado por um homem, parecendo bêbado, que me diz: “Estou com fome. Quero comer, porra!” “Não tenho trocado.” “Como não tem?” “Não tenho. Cai fora.” Cheiro ódio saindo pelos poros.

Recebo, ao final do dia, o telefonema da secretária dizendo-se muito decepcionada com o meu comportamento. Eu deveria saber que a casa é impossível de ser vendida. Ela não permitirá que o patrão more em um local daqueles, com esse estigma. “Mas a casa não é ... “

Volto à tarde, quase noite. O sol desaparece. Preguiçoso, sento numa poltrona. Diante de mim, duas vias de estrada, mais além o terreno sem acidentes de um amarelo profundo e ondulante, sem nenhuma planta para refrescar a visão. Asfalto, pedra e areia.
Primeiro, o sax executa todas as linhas melódicas doces, através de um arranjo repetitivo com ritmo rápido e amolecado, cantando as sílabas pronunciadas com o clarinete, e agora as cordas, fazendo trio, rascam ao fundo as palhetas sobre os pratos da bateria; depois da primeira declamação, entra a segunda com a voz dela: Billie.

Clara, terna, adorável, refrescando o entardecer, tirando aquele calor excessivo e cansado (With each word your tenderness grows,/Tearing my fear apart.../And that laugh that wrinkles your nose,/It touches my foolish heart), tornando o cenário digno de filmes antigos, onde tudo acabava bem, para não expulsar os vivos medrosos através das janelas de primeiro andar.

Sopra um vento empurrando uma esfera vegetal e voante, a salsola, uma planta que, ao contrário do humano, o vento não enlouquece, passa e fica em um banco à minha frente, indiferente ao melhor olhar.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Anatomia


Coloco um barrete para aprender a escrever melhor. Para o sorriso se espalhar para meu interior e a tristeza para os ricos e bem aventurados e pobres em o espírito. Quem sabe? Quem sabe, dará certo e aquele buraco na agulha bastará para aconchegar o camelo com compaixão e dignidade, e ouviremos o seu blaterar com os demais, para se alinharem em cáfila. Em Bordéis, Bordéus ou Bornéu. Quem sabe?
Histórias Possíveis n.45. Com mais uma tentativa, agora na Índia, em um esforço de reportagem.

terça-feira, 26 de maio de 2009

O amor








Se, contudo, amardes e precisardes ter desejos,
Sejam estes os vossos desejos:
De vos diluirdes no amor e serdes como um riacho
Que canta sua melodia para a noite;
De conhecerdes a dor de sentir ternura demasiada;
De ficardes feridos por vossa própria compreensão do amor
E de sangrardes de boa vontade e com alegria;
De acordardes na aurora com o coração alado
E agradecerdes por um novo dia de amor;
De descansardes ao meio-dia
E meditardes sobre o êxtase do amor;
De voltardes para casa à noite com gratidão;
E de adormecerdes com uma prece no coração para o bem-amado,
E nos lábios uma canção de bem-aventurança.

Gibran Kahlil Gibran

Jacqueline nascera sob o signo da independência e da alegria. Vivia só, cuidava bem de sua vida. Morava em um cômodo pequeno e arrumado na periferia da cidade. Separara-se da família, muito religiosa e vivendo numa seriedade e tristeza sem par. Não. Ela nascera alegre. Gostava de andar, de acompanhar a sua sombra, para certificar-se que era real. Brincava muito. Apreciava dar o que deu para dar-se a natureza. Enchia de prazer e dança a sua vida. Amava o canto dos pássaros. Devaneava. Seus orgasmos múltiplos eram um vendaval que a agitava para depois, aos poucos, voltar à paz, apaziguado o coração. Esta a sua ambição. Tinha, sim, seus momentos de melancolia, pelos quais passava sozinha. Guardava-os numa caixinha de jóias. Não queria homem para lhe dar suporte. Solitária. Gostava deles, porém muito mais da sua própria independência. Quanto mais admirava o seu parceiro eventual, mais ela se recolhia dentro de si. Tornava-se misteriosa e prendia a curiosidade e o coração do companheiro. Era aventureira do amor. Não admitia rodeio em seus desejos. Conheceu outro dia, um rapaz, permitiu que ele a acompanhasse até sua casa e ali mesmo se despediu. Talvez fosse tímido e precisasse de incentivo. Mandou sua foto deitada nua, fazendo um convite expresso, sem palavras.

Viveram intensamente muitos momentos. Ele também – percebera - se ajustava inteiro em sua sombra.

Um homem decidido, moreno, atarracado, de cabelos encaracolados, pele muito branca, olhos castanhos ensolarados, alguém poderia chamá-lo de italiano, os gestos intempestivos eram desmentidos pela delicadeza das palavras. Possuía um dom natural para escolher palavras, falava várias línguas, recebera uma boa quantidade de dinheiro do seu pai e fora aconselhado a sair, viajar para conhecer o mundo, ter mais experiência e poder, um dia, mais tarde, tocar os negócios da família. Apaixonou-se por ela. Não queria outra coisa senão estar com ela. Depois de aceitar o convite da foto, ela o atendeu nos pedidos mais extravagantes. Tudo era prazer, delícia, entrega e proximidade até o ponto de fusão. Entretanto, jamais moravam juntos, precisava de distância. O ciúme o corroia, passou a persegui-la, sorrateiro, em sua rotina, chegou a vê-la com outros parceiros, velhos, novos, dois ou três, ao sabor dos ventos, como ela dizia. Não conseguia encontrar a maneira de prendê-la. Foi embora por algum tempo, por não encontrar nenhuma solução viável, e para atender ao chamado do pai.
Na viagem, leu no jornal: “Pai assassina filha com tiro à queima-roupa”. O religioso (nome, idade) invadiu estabelecimento comercial onde trabalhava a filha (nome, idade) e depois de uma breve discussão, acusando-a de prostituição e de envergonhar o bom nome da família, sacou da cintura o revólver com o qual a fulminou ali mesmo.

Deixou de ler as demais informações. Estava estarrecido. Não conseguia compreender o que havia acontecido.

Encontrou seu pai. Ouviu dele um sermão daqueles, que o dinheiro que ele confiara fora desperdiçado, da forma mais vil, com pessoas de má índole. Mulheres, passeios, jogos, bebidas. Como era possível uma explicação? O que ele pensava da vida? Isso tudo leva a quê? “Eu quero que você se prepare para a vida, construa o seu futuro. Meu pai não me deu isso”.

O filho bem que tentava ouvir, não conseguia tirar Jackie da cabeça. Quanto mais pensava nela, mais se excitava e não conseguia compreender o rugido do pai. Estava excitado, lembrava da expressão angelical, da boca carnuda, do corpo pequeno, proporcional, da carne rija, dos seios empinados, sôfrego a ponto de tirar o pênis para fora e, antes que o estupor do pai se transformasse em ato, atacou rijo e se masturbou rápida, doce e languidamente. Com a mão servindo de concha, aparou e entregou o resultado ao pai.

“Aqui. Não lhe devo mais nada. Estamos quites.”

terça-feira, 19 de maio de 2009

Amazônia



Amazônia

Cada rua escancara-se como uma porta,

mas ninguém as explora. Aquele homem sentado

nem sequer se dá conta, tal como um mendigo,

das pessoas que vêm e que vão na manhã.

Cesare Pavese, em Trabalhar Cansa.

Acompanho um casal, meus patrões, em um passeio. Algo neles é diferente, certa bilateralidade cruzada. Ela tem um comportamento masculino, ríspido, brusco, e ele exerce o feminino, curioso, delicado.

A mulher nasceu para ficar parada. Odeia fazer passeios ao léu. Quer sair de um lugar e chegar a outro. Direta, sem rodeios. Descontrola-se a qualquer sinal de desorientação. Para, pede informações e as recebe contraditórias, mas não se importa de andar de um ponto a outro. A indicação alheia a tranqüiliza, até chegar ao ponto indicado, que não é o pretendido. Infantil, recomeça o processo do início, até o próximo ponto. Fica perdida, exasperada ao encontrar um sinal de ‘contramão’. Vou pela direita ou pela esquerda? Será que existe retorno? E agora? Ele nunca responde. Limita-se a olhar.

O homem não se importa. Parece gostar de errar por aí. Pergunta, qual é a pressa? Temos tempo, ninguém nos espera. Caminhemos e encontremos o lugar, vamos passear, observar. Não há necessidade de planejar nada. Ao encontrarmos algo interessante, paramos, vemos e pronto. Inicia-se uma discussão, interrompida por um silêncio espesso como neblina.

Obtém um dispositivo que traça o trajeto pedido, indica as ruas e o itinerário. Mostrando no mapa, com uma voz indicando o percurso, o tempo de viagem, a hora estimada da chegada. É mais um pacificador de casais que não conseguem se entender. Cessam as discussões. O objeto, é uma espécie de divindade, segue dando suas indicações.

Depois dele, não nos perdemos mais. Vamos de um lugar para o outro, com uma precisão matemática.

A cidade está coberta de boas estradas, aliás, está construída sobre boas estradas. Elas são subterrâneas, sinalizadas com regularidade. No teto a indicação de velocidade máxima. A iluminação é eficiente e dá a impressão de uma linha contínua, nas paredes laterais, côncavas, ameaçadoras, túneis infinitos, pintados até meia altura, com telefones de emergência gritando em amarelo cada quinhentos metros. A visão e a velocidade são de um jogo eletrônico, sempre as mesmas, fase após fase. Monótono e artificial. Não há tempo a perder.

De repente saímos dele e estamos ao ar livre. O outono com suas cores variadas nas árvores, situadas numa larga avenida, feito duas fronteira uma de cada lado. Lá adiante, olhamos no horizonte e duas linhas paralelas de árvores formam um corredor e, ao final, uma brusca montanha nevada aparece, dando um basta. Agressiva, com pico nevado, mostrando sua altura e eternidade. A terra é arenosa, cor de pedra, tufos verdes de moitas rareando aqui e ali. As folhas têm cores que passam do verde para o amarelo chegando ao vermelho, elas se penteiam ao sabor do vento que lhes dá direção. Um tapete de folhas marrom também se move ao sabor do mesmo vento, cobrindo espaços cinzentos de asfalto, fazendo um arranjo quase humano na paisagem. Observo uma folha presa em um bueiro, parecendo resistir ao vento, por pouco tempo, logo se reúne ao tecido. A cena está encoberta por um céu incerto, um teto escondido pela névoa espessa, parece que podemos tomá-la com as mãos, deixando tudo indefinido, após certa altura.

O primeiro sinal de humanidade está no longínquo mercado de pulgas, onde a calçada serve de banca de mercadorias. Nele não se mostra as babuchas marroquinas, ou imitações baratas chinesas, mas roupas usadas ainda impregnadas do último trabalho, livros, fascículos, móveis alquebrados, tudo separado meticulosamente em fileiras como aqueles fios de cordas com nós que os antepassados usavam para cálculo. A lógica da utilização até o final da vida útil, como se passasse do irmão mais velho para o mais novo ainda vigorava. Os proprietários das mercadorias ficam à distância cuidando dos filhos, fazendo suas tarefas e lembrando o tempo do Inca, quando os pobres recebiam as roupas para que não existissem mendicantes.

Olho rapidamente. Eles querem voltar para a casa onde estão hospedados, têm medo de assalto. A arquitetura dos bairros próximos ao centro é a mesma de Los Angeles, Xangai, São Paulo, Kuala Lumpur. Prédios espelhados refletem seus vizinhos e são repetidos sonolentamente. Tudo bem construído e sem qualquer vestígio de originalidade. A única construção que ousa chamar a atenção é chamada “Amazonía”. Está à venda e, aparentemente, ainda não encontrou compradores. Seus funcionários estão conversando ao sol do meio dia.

Pousada dos Ingleses: esse é o nome da casa que foi alugada apenas para o casal. Uma construção colonial espanhola, ampla, limpa, com lençóis trocados diariamente. Uma parede de vidro mostra a cordilheira cortando o céu como um serrote com dentes gigantescos, alguns brancos. Estamos cercados de jardins com rosas de pedras e coníferas.

A camareira Rosário vem ao nosso encontro. Simpática, falante, redonda, alegre. É colombiana, viveu durante quinze anos na Holanda, foi casada com um indonésio e tiveram três filhos, todos estudando em Amsterdã. Está separada e morava em Houston até perder o emprego. Procurava trabalho de tradutora. Fala holandês, espanhol, português e inglês. Encontrou nas vindimas em Santa Cruz e agora este. “Dou graças a Deus, por ter trabalho”, diz sem perder o sorriso. Viveu também por algum tempo no Maranhão, adora dançar e namorar. Lembra da Dança do Coco, Dança do Caroço e Dança de São Gonçalo. Lugar quente e de gente bonita. Rosário me ensinou a literatura dos leques, utilizadas pelas mulheres de Cádiz. Não havendo liberdade de se exprimir, as mulheres compunham suas obras utilizando-se dos leques e seus movimentos como mensagens. O leque aberto cobrindo o rosto: “Eu o amo”. O leque fechado empunhado com a mão esquerda e apoiado no lábio inferior da boca cerrada: “É tudo mentira”.

O seu namorado atual é chileno estuda engenharia de alimentos, enquanto cuida das folhas caídas e de regar o jardim. Parece determinado a se engajar nas Falanges Imortais, recrutadas por Pizarro, para treinar na América Central e combater no Oriente Médio.

“Para sus sacrifícios solemnes hacian pan de maiz, que llaman zancu. Y para su comer, no de ordinário sino de cuando em cuando por vía de regalo, hacian El mismo pan, que llamn huminta. Diferenciábase em los nombre no porque El pan fuese diferente sino porque uno era para sacrifícios y el outro para su comer simple”. Inca Garcilaso de la Vega.

Convidam-me para almoçar. Comemos “pan amasado”, um pão tradicional, feito com farinha e banha, cozido lentamente no calor da lenha. Servem também alguns deliciosos pastéis com as bordas rendilhadas. Queijo e porco completam a refeição. Bebemos um belo vinho, mas o patrão teima em dizer: “É bem feito, mas apenas uma cópia muito bem feita”.

No meu quarto as torneiras possuem um jato duplo, o quente e o frio. Eles não se misturam. A mão queima ou congela. Não há meio termo. As tomadas têm três furos paralelos esperando receber os cilindros que eu não levei. São as excentricidades do lugar.

Pessoas surgem da escada rolante como autômatos. Elas brotam do chão ou descem de cima. Cada pessoa parece um sinal ou letra. Cada letra é parte de uma palavra. Cada palavra forma uma sentença. O conjunto de períodos forma uma página, e o de páginas faz um livro, que é arquivado por tempo determinado na biblioteca de Babel. A leitura parece impossível. A construção dela e de seus labirintos apaixonam. Lembro que cadeia básica do ácido nucléico de uma célula ocupa um milhão de páginas. Desisto de ficar observando. Antes de sair, encontro um cavalheiro vetusto, com uma barba pontiaguda cinza, magríssimo, veste um costume antiquado e muito bem conservado. Um ar digno de superioridade. Utiliza um castão. Não fita ninguém, olha o infinito. Está só. Parece sonhar moinhos de vento.

Gastei todas as minhas economias na compra de uma manta de Mohair (Cabra Angorá). De peso quase inexistente, elaborada com fibra de vinte quatro ou vinte e cinco micros de diâmetro, capaz de reter o calor, resistente ao extremo, e de um toque extraordinariamente suave. Afaga e acaricia o corpo como nenhum outro toque é capaz. Um oásis e um alívio para pessoas cercadas de rigidez e frieza. Ela dá a noção exata de como o mundo deveria ser e não é.