quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Cannabis, Cão, Sião, Japão (2o. Capítulo de Exílio)




Aqui, o nosso convívio é ameno e distante. Estou passeado pelo jardim, sinto o cheiro da seiva no bosque, o frenético voar dos pássaros ou o som deles comendo os pedaços de mamão, ouço aquela algaravia de vozes. De repente, uma bolha branca de cambraia inchando aos poucos, realizando a forma redonda de um ventre grávido, para em seguida desaparecer. O sol da manhã brilha impune através do ar límpido e me aquece.  Ela volta a ser a cortina, antes assoprada pela brisa, espalhada pelo balcão. Aproximo-me, furtiva, para fechar a porta, quando encontro a menina, deitada, de costas, com a perna voltada ao sol, nua, em uma posição de entrega às ondas da vida, ébria, de olhos cerrados, recebendo energia, vazia, oca. Nada mais no mundo importa. Ela quer desfrutar a desrazão, o desvario do momento. A sua mão direita está espalmada sobre o ventre. Lá, pelos negros e lisos cruzam-se entre si, fazendo um tufo convidativo como o das plantas carnívoras. Ao lado esquerdo, um bonsai; do lado direito da cama, um livro (Genji Monogarati) aberto no capítulo três, onde há uma gravura mostrando um príncipe encoberto por um biombo, observando pela fresta, curvado, cuidando para não ser visto, as duas princesas jogando Go.  Talvez tenha sido com ele, com aquela história que ela fez amor. Afasto-me, furtiva.

Apesar da tranquilidade e paz do lugar, as pessoas não relaxam, precisam de atividade, repetem os hábitos urbanos. Após o almoço, visitamos o zoológico da cidade. Está na descida do morro, do lado direito da estrada, a poucos quilômetros, local acidentado, imprestável para agricultura, bem organizado, caro e limpo. Assistimos a um filme assim que entramos, informando-nos de que apenas animais da fauna brasileira serão encontrados, todos adquiridos legalmente, provenientes do IBAMA, que os capturou de ambulantes, contrabandistas, circos e particulares. “Geralmente, são animais atropelados, abandonados, famintos, empesteados. Agora, tratados pelo zôo. Os mais populares são o lobo guará (hoje em revisão médica, pinos colocados nas pernas posteriores), as onças e panteras (é comum se esconderem em grutas, pelo calor de quarenta graus e pelos hábitos noturnos), e o tamanduá-bandeira. Não alimentem os animais, por favor, nós fazemos isso.” Servimo-nos de um carro elétrico. A moça que o conduz é uma futura bióloga. Perguntei se ela pretende dar aulas. “Não, para isso é necessário fazer mestrado.” Ela não sabe o que pretende fazer com o seu diploma. Distribuirá seu currículo.

Atravessamos o parque ouvindo os roncos dos bugios com voz de baixo; os papagaios de peito-roxo, caturritas e papagaios-charão em grandes gaiolas; algumas araras-azul-e-amarelas se aproximam curiosas, e são fotografadas; apesar da proibição, os visitantes insistem no contato com os animais. Uma arara despenca do galho, por estar com a asa cortada. Observo a menina oriental pelo canto dos olhos. Passamos pelos pinguins que, alvoroçados, reconhecem a guia. Ela os alimenta individualmente, evitando que os fracos passem fome.  A capivara, enlameada, deitada, nos olha, indolente, indiferente.  Ao pararmos para tomar água, converso com um guarda. Ele me diz que o empreendimento é de propriedade de um casal de médicos geriatras, abandonaram a profissão. Ouço o plano de se colocar um carrinho de pipoca circulando, movido a luz solar. O circuito termina na entrada de uma loja  abarrotada  de bichinhos coloridos de pelúcia.
Voltamos. Hoje, desde a tarde até o término do jantar, receberei alguns familiares dos hóspedes. Acomodaremos as pessoas no jardim, na sala de  estar e no salão de caça. Pretendo preparar uma surpresa: sucos de beterraba.

Chegam os amigos da zoóloga, seus colegas da empresa. Ela está no jardim podando a trepadeira que envolve a araucária, sufocando-a. Corta todos os ramos mais baixos da parasita e faz uma incisão em toda volta, separando as raízes do caule. Entretida na tarefa, não percebe a aproximação, os visitantes percebem o livro de poesias de Yosa Buson, e um haicai está grifado; escrito em ideogramas, no alfabeto fonético e em português:

“veja a brisa matinal
soprando os pelos
da taturana.”

Sorri ao voltar a cabeça. Sentam-se e conversam animadamente. Ela relata a sua vontade de voltar ao Japão. Não quer ser considerada uma exilada, alguém que abandonou os seus. “Porém, não me excita a rígida disciplina, os hotéis-casulos, o gás sarin e a aglomeração constantes.” 

Os pais da médica também se anunciam e encontram a filha na sala de estar. É um ambiente amplo, os raios de luz atacam o ar, atravessando as portas balcões e iluminando as reproduções da Pietá de Paula Rego, de Erik Slutsky e de William Blake, como uma homenagem. Todos aceitam o meu suco. Anciãos magros, descarnados, expressão cansada. Contam-me da miséria durante a guerra, do inchaço do corpo pela falta de vitaminas; da fuga à pé para a Dinamarca; até o reembarque, jogados no porão de um navio cargueiro. Esqueceram sucessivamente do português na Alemanha, do alemão na Dinamarca e de ambos agora de volta.  “Posso oferecer-lhes uma cerveja para amenizar o calor?” “Não”, responde a médica. “Meu pai não vai beber nada.” Ele franze a testa e a boca.  Depois, conversam sobre a impossibilidade de criar um cão labrador com sessenta e cinco quilos em um pequeno apartamento. A mãe abana a cabeça, afirmativa. Mas acabam concordando com a filha após um olhar furioso, através dos óculos retangulares, praticamente sem armação, que refletem toda a luminosidade do sol, fulminando os velhos.

Chegam os filhos do engenheiro. Um casal de seus vinte anos. Conversam andando pelos ambientes, sem se aproximar de ninguém, nem ao menos sentar. Preferem que a conversa fique espalhada. E a ouço, entrecortada. Não aceitam o meu suco, exceto o pai. “A alimentação é muito hostil, uma espécie de terapia de emagrecimento.” Compraram uma passagem de presente para o Pai. Destino: Israel. “Aproveitaremos a passagem do ano e tiraremos umas férias de quinze dias em Eilat, faremos pesca submarina. Praia e sol.” O pai se recusa, obstinado. “Meu pai veio da Rússia, sem nada, e conseguiu tudo aqui. As pessoas são boas, não há nenhum problema. Ele sempre me repetia o ensinamento de um amigo: ‘Os pobres, os fracos, os sensíveis e os exilados precisam ser silenciosos e espertos’. Não, acho que não vou.” “Pai, nós nos sentimos bem aqui, mas não é o nosso lugar. Nosso lugar é outro, e não sei onde é, talvez Utopia”, diz a filha.  As frases que reconstituo aqui são pedras extraídas das águas daquela Babilônia onde se deitavam e lamentavam.

A família do físico é a última. Acomodam-se no Pavilhão de Caça. Esparsos chifres estilizados de animais. Mesas familiares em espaços simétricos. Espelhos nas paredes dão um toque multiplicador. A mãe, o irmão e a esposa anunciam o falecimento do pai. Ele conta a história de Gaúcho, seu cavalo de estimação, castanho como ele, valente, corredor. “Eu sabia fazê-lo andar no ritmo do meu corpo. Sabia como dominá-lo. Caso contrário, ele correria até estourar. Gaúcho não sabia se dosar. Aliás, nenhum cavalo sabe.” O pai era assim, sem dose. Não foi barato ser filho dele. “Cavalo tobiano e castelhano só dá bom por engano.” “Cremaram?” “Não, a burocracia impediu”, disse a mãe. “Eu não deixarei descendentes; Você, meu irmão, escolheu outro caminho. Tem três filhos e três problemas. Aproveite. Estou cansado e empobrecido. Eles estão fazendo conosco o que fizeram no Uruguay, Paraguay, Argentina e Brasil. Seremos os próximos. Não se iluda.” A esposa se dirige para o jardim, a mãe tenta contemporizar, sem sucesso. O irmão responde que ele deve relaxar, não adianta ficar desse jeito. Ele o viu no hospital, o torso erguido sobre os cotovelos, brigando com a enfermeira por não haver lavado a mão. “Relaxe, meu irmão.”

E ofereceu ao irmão um cachimbo de vidro, um vaporizador e um pacote de Cannabis sativa. “É medicinal, evita a dor e melhora sua vida.”

Hoje é o último dia do ano, e temos um estoque de champanhe sem álcool para festejar. Vamos até a cidade para ver as luzes e assistir a um show de um equilibrista que pretende atravessar o céu da cidade, sem rede de segurança.