sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Pescoço




"Uma noite, depois de muito Chianti,
repetiu-me a definição do costume,
e como eu lhe dissesse que
a vida tanto podia ser uma ópera,
como uma viagem de mar ou uma batalha...
"Capítulo IX A Ópera
Machado de Assis


Quando morei em Mauá, trabalhei com meu pai. Ele veio do norte distante, montanhoso, onde faz muito frio. Era conterrâneo de Marco Pólo e tinha muito orgulho disso. Não deu certo. Ele queria que eu fosse responsável pelo negócio. Eu sofria com isso. Não daria certo, não compreendia o negócio, nem as pessoas. Procurei trabalho em uma companhia que me possibilitasse viajar. Faria qualquer tarefa, desde que não fosse responsável por ninguém, apenas por mim mesmo, e pudesse conhecer outros lugares. Consegui trabalho em uma fábrica de interruptores, caixas de luz, tomadas e variadores de luminosidade. Este foi meu escudo diante da vida; eu aguardava o meu manual de instruções. Algo repentino, que abrisse as cortinas de algum lugar secreto e feliz. Eu tocava o meu dia, esperando. Não me lembro de estar parado, pensando em nada de prático. Não me lembro de tentar conhecer o outro. Treinei a vida inteira não estar à vontade, mas parecer à vontade. Adquiri o hábito de subir e descer escadas, para descansar. Percebi que as escadas das igrejas são as mais íngremes; subia e descia com passos firmes e ritmados. “Somente os príncipes têm ritmo”, dizia o meu velho. Ah, Candelária, você fazia meu sangue bater aqui no pescoço. Gostava de dançar. Não apagava o pensamento ao dançar, pelo contrário: dançava para dizer alguma coisa, para acobertar algo. Conheci minha mulher no Cartola Danças. Tudo passou muito rapidamente, casei, tive uma filha: Penélope. Minha filha é um doce. Linda e inteligente. Divertida. Alegre. Adora dançar, mas é diferente; dança pela necessidade do corpo, não como presságio ou pensamento. O corpo é maleável, musculoso, belo e jovem, seios fartos como a mãe, cadeiras largas. Ela não precisava fazer nada, apenas se exibia. Apenas dançava molejo, malemolência, perícia e sensualidade. Fez curso de literatura, para dar aulas e ter a sua própria vida. Mas gostava mesmo era de exibir-se. Casou e teve uma filha. Parecia seguir o mesmo ritmo. Apesar de não conversarmos muito, percebi a sua corrida. Adorava o marido, conterrâneo do meu pai, e se parecia um pouco com ele, nos gestos, nos olhos. Sério, trabalhador, áspero. Ele se envergonhava toda vez que Penélope dançava para ele. Por exibição. Ela guardara trinta alianças de pretendentes e não aceitara nenhum deles, esperava o seu homem, até que o achou: “o melhor homem do universo”. Nenhum pretendente quis receber de volta a aliança de compromisso. Elas ficaram lá em casa, como penhor. Ela dá aulas para o Colegial. Por algum motivo, incompreensível, algumas fotos dela, de biquíni, caíram nas mãos dos alunos, que fizeram a maior folia exibindo a “gostosa” da professora. Fizeram um campeonato de “cuspe” à distância com elas. As fotos caíram nas mãos dos pais e, por fim, do Colégio. Ela perdeu o emprego, foi taxada de vagabunda e corruptora de menores. Deu no jornal. Ela voltou lá para casa, o marido a abandonou, está lidando para segurar a guarda da filha, e eu, que fiquei viúvo, cuido delas – pouco, é verdade. Ela se meteu a fazer filmes. Agora, véspera de ano novo, saí para comprar tênis. Encontrei uma liquidação e acabei comprando dois, um para neta, outro para a filha. Gastei todo o dinheiro da féria. Restaram cinquenta e cinco reais.

Hoje, trabalho com táxi. Dou carona para as pessoas das redondezas e recebo o pagamento pelo trajeto. Agora mesmo levei a dona Therezinha para o médico, lá no largo do Socorro, defronte ao Cartório. Pescoço: dez reais. Passando, atendi ao sinal de um rapaz que saía de lá. Calça azul-marinho, camisa engomada, branco Omo. Disse que queria ir ao centro. Bem, uma corrida longa não é de se desprezar nestas alturas. Dou um corte no pescoço. Quem sabe, com sorte pegaria outra corrida na volta. Não dou sorte, a rifa não gosta de mim. Eu não gosto do centro. Feio, sujo, intransitável. O rapaz entrou e começamos a conversar. Dei o meu nome: Pio. Aliás, esse nome só criou problemas para mim. Quando era garoto, fui chamado de pintinho, piu, piu, galinho e o que mais a imaginação cruel das crianças inventava. Pio também é uma rima fácil para “Brasil” e “pariu”. As minhas respostas eram rimadas e sem educação.

O passageiro pediu licença para fazer uma ligação para o escritório. Coisa mais estranha, uma pessoa educada assim. E na conversa explicou do trânsito (de fato, estava parado), e que seria impossível entregar os documentos no escritório (ainda bem). Recebeu autorização para ir embora. Pediu-me que o levasse para casa, informou-me que morava no Jardim Filhos da Terra (bem longe). Concordei, fiz a volta e nos encaminhamos para lá. No caminho, uma tremenda confusão. Polícia, moradores, carros de assalto, fumaça, fogo e uma multidão. Pessoas desconsoladas olhando para as ruínas descompostas das ruínas onde moravam, dentro de armários e de beliches, tudo amontoado em um terreno da Viação Santa Cruz dos Enforcados, terreno desocupado há vinte anos, sem muros e cheio de carcaças de carros roubados. Correu o boato de que a empresa não pagava mais o imposto, correu o fato de as pessoas não terem onde morar. Os políticos eleitos fizeram passar asfalto fajuto de “cimento” e condução. Os boatos de evacuação corriam soltos, mas eles se acostumaram também com isso. Precário é o sobrenome de cada um deles. Oferta da cidade. Fomos obrigados a parar. Tropa de choque. Tudo quebrado, chorado. Prazo de trinta minutos para dar o fora. Criança perdida. Atearam fogo em seus barracos. Tudo queimado. Fumaça. Tosse. Conversamos com ex-moradores. Impossível não ser solidário. Eles foram até a bica pegar água e passar um café, que nos foi oferecido. Pensei no livro “Pare de Sofrer”, escrito pelo espírito de Silveira Sampaio, que me fez tão bem, poderia também ajudá-los. Eles se mudaram para a calçada. Têm agora a caixa d’água como banheiro e a igreja como pensão.

Fomos liberados. Passei pelo enorme e abandonado parque, entrei em uma rua transversal. Do lado direito, um boteco cheio de gente jogando bilhar. As crianças corriam pela rua, mulheres lavavam suas calçadas e conversavam. Uma cena tranquila, não fosse pelo fato de a rua não ter saída. Do lado esquerdo, três pessoas paradas diante de um Passat antigo. Todos mal encarados. Os rapazes do bilhar saíram à porta, comecei a sentir que algo estava estranho. E ouvi:

– Pio, a casa caiu.

Parei o carro aos poucos, demonstrando uma calma que estava longe de sentir. Os outros se acercaram com armas automáticas, e encostaram o cano de uma delas na minha têmpora. Saí do veículo. O gelo do metal atravessou a minha cabeça, saindo do outro lado, fazendo um cilindro de ponta a ponta. Queriam furar a minha cabeça. O menino que estava atrás saiu. Todos muito nervosos. Um deles pediu ordem para me matar. Foi negada. “Afinal de contas”, disse um deles, “o cara tá na boa, não agitou nada.” “Quedê a grana?” “Está ali no cinzeiro do console. Pode pegar. Tranquilo, tranquilo.” “Me dá a lupa, apontou.” Entreguei. Estava inteiramente dominado pelo terror. Ofereci os tênis que estavam no bagageiro antes que eles revistassem. Consegui explicar onde os comprei. Estava muito barato, ali, atrás do Pão de Açúcar. Apontando para qualquer lugar. A cabeça foi serenando, senti que não estavam atrás de complicações. Aprendi a responder quando perguntado, entender a gíria deles, tornar-me um igual. Pela primeira vez, vivi a minha vida; tive segurança; estava em contato comigo. O que queria me matar desandou a reclamar dos ladrões bacanas que moravam ali por perto. Eles exigiam a saída dos demais e chamavam, a toda hora, a atenção da polícia com esses crimes pés-de-china. Queriam paz e sossego, tinham cobertura. E instalaram uma guerra ali no loteamento. Ele sabia que acabaria com a boca cheia de formiga.

Contei da minha filha, da minha neta, pedi para ficar com o documento do carro, afinal tinha pagado uma nota para conseguir a licença do táxi, o carro estava em bom estado, e conseguir novos documentos é quase impossível, ficaria um tempão sem poder trabalhar. “Você sabe, motorista de praça não pode carregar arma”, disse. “Não queremos dico, nem a caranga, tá ligado?” “Posso sair?” “De fininho, sai sem fazer barulho. Pega seus bagulho e sai” “Será que você pode me deixar uns cinco contos para eu poder faturar a grana do rango?” Cruzaram os olhares. Ficaram calados. O tempo necessário para jogar no barro a nota de cinco.

“Some. Vai.”