quinta-feira, 15 de abril de 2010

Mr. Dalloway





Mudou para Ilha Bela. Queria viver feito uma ilha. Rompeu quase todos os laços. Manteve apenas a visita aos amigos da mesa na casa de Artur. Passou a viver a própria vida. Passa por todos que o cercam sem ouvir nada, sem falar nada, apesar do movimento dos músculos da face que garante não ser deliberado: um reflexo instantâneo e automático, não significa nada, apenas condicionamento. Toda a intervenção na vida alheia se frustrara. Toda a intervenção da vida alheia também. Restam danos irreversíveis. Apresenta-se como ectoplasma perambulante, um pedaço de carne, separado dos demais.
Memórias.
Trabalhou em uma fábrica de papel higiênico em Gotemburgo por um ano. Solitário e entediado. Um trabalho mecânico servindo como meditação. Adquiriu o cacoete de coçar sempre o mesmo local, no peito, cantando sempre a mesma canção. Deixou aqui sua mulher. Um amigo da faculdade, Saul, se prontificou para ajudar no que fosse necessário. Ele, a princípio, não confiava nele. Um judeu com um sorriso constante no rosto, sem as pernas: um riso com tronco e braços. Pobre e conversador. Ria do quê? Um ótimo papo. Tita, ao contrário, não gostava de conversar, além de fazer o contrário do que falava. Se indagada, respondia sempre com um clichê, escudo de palavras para defendê-la do ataque. Gostava de cozinhar. Tatuou no antebraço esquerdo as imagens que ensinam o uso do fachi. No direito, a imagem de uma lagosta. E, nas costas, uma balançante Salomé, que ela fazia questão de mostrar, orgulhosa, requebrando-a com o corpo. Adorava dinheiro e sexo. Não quero casar com a miséria, e não sou amiga de ninguém. Oscilava entre o ódio e o desejo. Dizia que só o tratava mal porque o amava. Depois de algum tempo, ficou grávida. Saul, o provável pai da criança, o alertara quando ele estava em Bruxelas, visitando seus parentes; eles noticiaram que seu pai havia cometido suicídio. Professor de uma escola de primeiro grau, temperamento afável, muito tímido, foi alvo da indisciplina dos meninos até o limite do suportável. Ele se desesperara por não conseguir um denominador comum entre os alunos que não fosse a violência. A qualidade de vida por aqui piorou bastante, disseram os parentes. Estavam assolados pelos negros da África e pelos chineses que tomaram conta da praça principal, e, como ela, nosso comércio fracassando aos poucos. Após solucionarmos o nosso problema entre os flamengos e os valões, pensávamos em desfrutar a vida.  O pai não deixou nada escrito. Apenas decidiu.

Alimentos.
Ali mesmo Zé da Ilha comprava dos pescadores o nosso almoço. Geralmente tainha, marimbá, parati guaçu, vermelho, trazidos pela rede de fundeio, algum camarão, lambe-lambe e, às vezes, um polvo solitário. Mistura-os com bananas verdes, tempero, pirão, e pronto. “Estive em Angola também, lá fiz amizade com russos e cubanos, os donos do lugar. Fui convidado para um passeio de helicóptero, que percorreria a região norte, fazendo o reconhecimento da fronteira com a República do Congo. O passeio foi tenso. Além das pesadas nuvens, o auxiliar angolano não conhecia qualquer rudimento de pilotagem ou aeronaves, provocando uma raiva incontida do russo. Todos aqui são assim. A única palavra em português que aprendi para sobreviver é: filhodaputa. Chegamos a Dundo. No local do mapa onde existia uma colina, apenas um imenso buraco, com milhares de pessoas andando, subindo e descendo, armados com pás, picaretas, e balas. O morro desaparecera. Os congoleses descobriram lá uma mina de diamantes e cavaram intensa e rapidamente. Contou que Angola contratava milícias para acompanhar seus comboios. Mesmo assim, nenhum chegou; tampouco voltou qualquer miliciano. O mesmo horror ainda imperava por lá. Gontcharov foi também consultor especial do governo russo nos Bálcãs. E de lá trouxe esta história: ‘Sentado em um barranco próximo de Naissos (Nis), entre a Sérvia e a Bósnia, de costas para uma ampla casa rústica típica, rebocada a partir da metade de um artificial branco, diante da qual, sob a sombra das árvores, via-se a enorme mesa de refeição com dezenas de cadeiras, madeira maciça, coberta de linhos, vinhos, cristais, pratas e louça, tortas gibanica, burek, assados, Kobe beef, T-bones, samovar, joelhos de porco e repolho, fatuches, falafel e kebabs, narguilés. Cervejas, uísques, nalifka. Nela, os convidados, descobriram suas cabeças dos tarbuches, ushankas, barretes, turbantes, castores e coelhos, e discutiam, animados, os preços das mercadorias utilizadas lá embaixo. Os meus sentidos estavam divididos. A audição, às minhas costas, das risadas; a visão absorvida naquele vale extenso, ao sopé das montanhas, formando um palco, onde os atores de atracavam com as armas disponíveis. Um vai e vem de pessoas ora agachadas e protegidas, ora em pé correndo, atirando sem cessar, ocupando posições. Para logo depois voltar, sob fogo cerrado do inimigo em maior número. De cima se podia ver um pelotão atravessando o rio logo adiante, fazendo a outra perna da pinça que aniquilaria a todos à baioneta calada. Os corpos repousando no chão, disformes, em posições desnaturais. E do conflito inicial, restou um ou outro de um lado, e uma pequena maioria do outro. Apenas se pode dizer que houve muito medo e coragem de todos, e sorte para uns. É só. Ao chegar a cal, iniciou-se a cova coletiva e a minha atenção se desviou para o tato. Desde não sei quando, estava com a mão sobre o pescoço de um cão. Fugitivo, correndo e escalando aquela elevação, se postou ao meu lado, olhando como eu, e se aconchegou. Havia uma conexão entre nós. Fome? O aroma que vinha dali de trás, foi o laço. E fomos comer.’”


Cabo Horn.
Aqui posso desfrutar dos meus sentidos. Esquecer os raciocínios. O sol energiza-os todos. A visão fica mais apurada, é sempre surpreendida. O paladar é muito melhor. O tato tem oportunidades, texturas, que jamais teve na cidade. A audição remete ao tempo em que ainda éramos caçadores. E o olfato, que era alimentado pelos perfumes industriais e de comida, agora respira mar e montanha. No mais, estava infestado pelo esgoto que a cidade acumula e oferece. E o melhor: adquiri o direito de contradizer-me. Este é Aécio Pym. Um navegador que conheci por aqui. Ele cometeu a façanha solitária de dobrar o cabo Horn pilotando um barco de sete metros. Fiquei animado com a descrição e com os efeitos da viagem sobre ele; da beleza da amizade entre os pinguins e os albatrozes e da simetria entre seus ninhos. Tentei tempos atrás fazer a rota de Fernão de Magalhães e não consegui. O caminho é cheio de becos sem saída, exigindo do navegador uma resistência sobre humana. O risco de você se arrebentar contra os recifes é tão real que meu barco ficou imprestável. A nova rota fica mais adiante, na divisa entre o Atlântico e o Pacífico. Os inimigos serão outros: as correntes, o tempo, o vento. Eu conheci a região através de histórias de marinheiros.  Penso que estou melhor, aqui à beira-mar, vazio. Apesar dos vários corpos seminus, apesar do sol, dos instintos, consegui refugar.  A lembrança que me persegue: o desfile de modas que as meninas angolanas fizeram quando da nossa visita. Reuniram-se em doze ou quinze, não me lembro, e nos mostraram todos os padrões dos tecidos angolanos. A vila é toda feita de pequenas casas cobertas por colmos, com formato de ogivas, cercando a praça central de terra batida; em cada uma delas, há um odre de barro pendurado no alto da vara, chamando a atenção, enquanto as esperávamos. Colocamos nossa comida ali, para proteção contra as formigas. As meninas eram muito novas, vestidas com as saias longas, as cores muito fortes e contrastantes; belas, com os seios à mostra.

O retorno.
Saí em direção ao sul. Tive o horizonte, as montanhas e o céu por companheiros até chegar ao porto final. Ali, o céu e a terra se fundiram e tudo ficou azul, ondeante, ameaçador. Deixei Aécio em Ushuaia e segui viagem para fazer o mesmo roteiro. Não consegui. Submergi. Fui salvo pela guarda costeira chilena. Perdi o barco dele. Devolverei um novo. No meu peito, formou-se uma ferida e todo dia sai um pouco de seiva, que eu seco com uma gaze branca.