segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Aviso aos navegantes

http://www.pbase.com/asianodyssey/image/18826435



Recebi um convite irrecusável: pescar pérolas. Um aventureiro prestes a se aposentar me convidou para fazer uma viagem em busca daqueles seres que, a partir de um grão de areia, produzem essa excrescência fascinante, possuidora de luminosidade opaca, que ofusca a imaginação – e o bolso – de muita gente. 

E comigo não foi diferente: pedi licença ao patrão, à família, e agora peço a vocês para me jogar nessa aventura. O aventureiro descreveu o mergulho de alguns de seus contratados. Fiquei espantado com o fato de eles ficarem até sete minutos no fundo do mar entre as pedras; com o susto que ainda tomam quando, ao levantar alguma rocha, repentinamente surgir moluscos, peixes ou crustáceos que avançam, ameaçadores. Venenos, garras, dentes, aguilhões.

Um detalhe mais: não tenho interesse nas jóias, mas, sim, no processo. Alerto que não levarei minhas garrafas para enfiar e enviar  e receber minhas mensagens, mas em qualquer porto encontrarei pessoas dispostas a alugá-las por um preço módico. É pelas minhas mensagens que vocês saberão de mim.

Tenho um amigo que conheceu a fossa oceânica, no Ceilão, que fascinou Arthur C. Clarke. Ele me prometeu levar até lá e ensinar a arte do mergulho submarino. No entanto, devo primeiro aprender a olhar, e depois a submergir e colher algo; e, por fim, quem sabe?






"Porque é o único homem que não nega seus sonhos. Deumamor revive sua amada porque crê nos seus sonhos e é feliz pois confia na eternidade dos amantes." Macedonio Fernández

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Interlúdio: “arrasto emocional”





Dias atrás você me disse que eu sou enigmático. Ou dividido entre duas pessoas. Talvez até mais, eu poderia dizer agora. Sim, é verdade. Essas impressões que você obteve ao ver o meu lugar (o meu blog, e meus escritos) também são enigmáticas. Pessoas com uma grande sensibilidade também são e causam essa impressão, para que tudo e todos fiquem mais enigmáticos ainda. 

Não vejo nenhum problema nisso. Percebo, ao contrário, que os enigmas aumentam à medida que vivemos.
Outro dia, você pediu que eu mandasse um resumo de minha vida. Juntei uma série de fatos, cronológicos apenas. Deles se extrai o quê? Que posso dizer de mim? Aprecio o gesto de estender um tapete, escolhido com muito cuidado, a dedo mesmo, e nele, cabendo nós dois, desfiarmos um papo, mesmo fiado, sem importância, relativo a essas duas pessoas que têm disposição para conversar. E isso é o que importará. “Viver a vida em voz alta.”

E, assim, o gesto se torna natural, mais belo, confortável, e melhor que explicações, ou mesmo que eu retribuir e lhe pedir explicações ou notas sobre a sua vida. Por maior que seja a boa vontade, e ela existe, eu sinto, eu sei; explicar não explica, serve apenas serve para propagandear, ou algo semelhante. E seríamos publicitários. Vendedores.  Isso acontece pela nossa natureza, da qual não nos afastamos jamais. Afinal, quem gosta de falar dos seus defeitos? Das suas doenças e fraquezas? Eu tenho tantos e tantas, e sua descrição e motivação tornariam esse texto interminável. Monótono. 

Essa sensação de que sou um quarto arrumado, é a minha também. Narrativas e fotos.  Algo que acontece comigo regularmente. E não sei explicá-la. Talvez seja para compensar a minha bagunça mental, onde tudo está tão desarranjado que preciso de uma ordem aparente, em algum lugar, para ficar mais tranquilo. Talvez seja o medo da morte, que exige que eu deixe tudo arrumadinho, compensando as consequências dessa surpreendente e inevitável visita, e não me encontre deitado e descomposto. Poderia, também, ser apenas uma falha de caráter, um exibicionismo valorizando a razão. E já que é para valorizá-la, continuando um pouco por essa vereda, concluiremos que ela não nos serve para muita coisa, além da sobrevivência. Se é que isso é importante.

Disse um poeta, um dia, tempo atrás, que o homem jamais deveria interrogar os deuses e as mulheres sobre seus segredos. E essa frase é muito linda de esperta. Emocional. Sensível. E fui aprendendo, com os dias, a deixar a razão de lado na maior parte do tempo e curtir meus (nossos) sentimentos. Proponho, então, quedarmo-nos sentadinhos aqui. Falando de cozinhar, de música, de poesia, de livros (sim, eu tenho uma versão digital do meu livro e tenho uma versão impressa – que posso enviar para alguma caixa postal, caso você queira, com o maior prazer.). E, ao falar desses assuntos, encontraremos um pouco da beleza que está espalhada por esse mundo vasto, e dela tirar alegria algumas vezes por dia. Ela, a beleza, não se deixa apreender por muito tempo. Ela é fugaz e se esconde depois desses instantes. Eu e minha obsessão a perseguimos. E tenho (temos?) a vaidade de tentar prendê-la por um bom tempo.

Outra coisa que me prende: o carinho. Sou viciado nele. E faço todo o possível para obtê-lo. Todo mesmo. Assim, pessoas como você, preenchidas desse mesmo sentimento, me atraem. Me chamam para perto de si. E não tenho a menor dúvida, a menor vergonha, o que é raro, e me aproximo e converso e troco, rio, me emociono e me deixo prender.

Não conseguiremos encontrar as causas que perturbam os seres. Elas estão juntas, misturadas, em um verdadeiro novelo. Não encontraremos também nenhuma surpresa, a não ser as nossas próprias, que nos fazem rir ou ficar perplexos. Apenas nos quedaremos sentados no tapete de vez em quando, e, distraídos, perceberemos algum traço, algum desenho nele. Saberemos que nada é nossa propriedade, apenas desfrutaremos do passar do tempo. Sentando nossas bundinhas nele, concluiremos que ele é macio e confortável para tomar um café, e trocaremos um olhar enigmático, simpático e festivo. Falaremos, além dos pratos, do nosso paladar, do nosso toque, da nossa visão, curtiremos os odores, e oferecerei uma semente de cardamomo, para curtir o seu sabor.

Quero respeitar a sua vontade para comentar, bagunçar, tirar do lugar alguma peça. Esse momento é nosso e de ninguém mais. Ainda que, depois, você se arrependa e coloque tudo de volta no lugar.  Não há problema. Mesmo que eu arrume novamente, quando você sair. Não há problema. Ou mesmo que ele fique assim, também não há problema. Quando você voltar aqui, tudo estará em outro tempo. Proponho que procuremos apenas beleza nas coisas, utilizando o carinho como câmbio; tudo ficará melhor assim. O mundo já é suficientemente feio sem a nossa ajuda, então não precisamos ajudá-lo nessa tarefa horrível.
Sem expectativas, sem desejos, e sem sofrimento. Curtir a forma magnífica dos objetos pela mão ou pela expressão dos artistas.  As letras ou a melodia das canções que você escolheu ou cantou, como interpretar a beleza de uma foto.

Em outra mensagem, você menciona que sentiu falta das minhas fotos diárias. Hoje, ao abrir esse computador e antes de escrever, passeando, encontrei e mecanicamente publiquei uma foto. Composta, quebrada em duas imagens. A primeira, à esquerda, retrata o lugar onde a criança dorme, e a segunda, de corpo inteiro, mostra a criança no seu dia-a-dia. Pronto. Está lá.  Encontrei nela algo de sagrado, de etéreo, de eterno. Ela abre e apresenta aos nossos olhares um lugar, um lago distante, muito além da nossa compreensão, místico. E, sem nenhuma dessas palavras, mostrou tudo o que eu pretendia dizer. O sentimento que me invadiu foi o de destruir essa mensagem, por inútil. Apenas por desrespeito à beleza de que falei acima, por uma questão de redundância ou presunção é que não faço isso e a envio. Fique sentada aqui comigo. Basta isso.


terça-feira, 9 de agosto de 2011

“Tudo aqui é tão terno que é como se pisássemos no ar, e não em chão firme.”





“Na reverberação do sol, a planície parecia uma lagoa transparente,
desfeita em vapores por onde se transluzia um horizonte acidentado.
E mais além uma linha de montanhas.
E mais além ainda, a mais remota lonjura.”
- Juan Rulfo




Sol: o sol intenso como jamais o havia sentido. Ele abria os desvãos, eliminava as sombras, destacava todos os detalhes; os azulejos rachavam, trincando seus desenhos, os trincos das portas ardiam, as pedras do chão martirizavam os pés descalços, os muros refletiam seu calor, tudo parecia arder nas retinas. Ele desceu alguns degraus com bastante dificuldade. Praticamente fora obrigado a fazê-lo, a não ser que considerasse a alternativa de voltar pela linha de asfalto que o trouxera por mais de três horas e meia, entre palos verdes e saguaros, de escassos verdes e imensos cinzas, vulcões extintos, minas desativadas de cobre e parques nacionais (Altar). Três mulheres, de aspecto viril, irromperam saídas da construção, a pele com a cor do pão torrado, tomando água em pequenas garrafas. Despreocupadas, avisaram aos viajantes que a casa estava arrumada, conforme as ordens do señor... (pronunciaram um nome que ninguém compreendeu), alertaram também que havia um pequeno problema de falta de água durante o dia. Entretanto, dizem com um esboço de sorriso, não há motivo para preocupação, durante a noite a água volta em abundância.


A casa se revelou fresca. Para tanto bastou abrir as janelas, descortinando o mar, que saudou os viajantes com suas boas-vindas ventadas e rugidas desde sempre, e se revelou imenso, aberto, azul-escuro, verde e azul-celeste no juntar-se com o céu sem nuvens. Fazia lembrança do dia perdido em que alguém ou algo os separara. Olharam para a direita e para a esquerda, acompanharam a estreita e sinuosa faixa de areia que se alongava até onde a vista alcançava. Ela recebia o mar, suas ondas, o beliscar do brilho do sol, o remanso desfeito em dedos e espumas brancas, rastejantes e dóceis. Uma pequena cabana de sapé fazia sombra sobre o retângulo de areia, e tirava dela a sua utilidade. Um deles, apertando a vista, viu três picos brancos aparecendo na linha do horizonte e um triângulo solitário,,perdido entre reflexos. Nada além disso. A construção se debruçava alta, acima do quebra-mar, enfeitado com um enorme osso de baleia; para atingir a praia, havia uma interminável escarpa, escavada em irregulares e precários degraus de madeira.

Cada um dirigiu-se ao seu quarto. Ele não trouxera roupa alguma. Deitou-se um pouco. A mobília era constituía por uma confortável cama de casal, um armário com livros, escondidos no fundo de uma estante, e um aparelho de tevê. Nenhum quadro nas paredes. A única decoração era a cabeceira da cama: desenhada com motivos primitivos multicoloridos, lembrando as faces quebradas e quadradas desenhadas pelos astecas, o cenário dominado pelo sol, radiante e raiado. Escondido atrás de uma porta, o banheiro com seu piso revestido de uma fina camada de areia.


O homem e as três mulheres fugiram da cidade, da peste que a invadiu e os amedrontou, e ali encontraram refúgio, segurança, isolamento. Combinaram não fazer perguntas, apenas conversar, contar histórias, aquelas que sentissem necessidade de compartilhar, não para ouvir comentários ou receber conselhos (que valem exatamente aquilo que se recebe por eles), apenas como desabafo. Viveriam por algum tempo apenas o momento. O passado e a memória apareceriam apenas em forma de relato, o futuro não passaria de inúteis prognósticos e o presente, como um instante fugidio que se esvai no infinito passar do tempo.


As mulheres saíram para passear na praia. Ele se quedou naquele terraço panorâmico, não arriscaria descer as escadas. Percebeu que o mar avançava em sua direção, a praia se reduzindo a um fio. Olhou para o céu, distraído, e viu uma série de gaivotas voando de oeste para leste logo acima dele. Elas formavam grupos de três até cinco, e era como se passeassem distraídas. Logo, ele notou que outros pássaros, pelicanos, também faziam o mesmo percurso. Ficou ali distraído, até que um desses últimos mergulhou dentro do oceano, para logo depois sair. Pescavam os peixes trazidos pela maré. Escolheram a casa como ponto de referência. Mais tarde, ao caminhar o sol para o poente, as aves faziam a direção contrária, e a maré vazante ampliava a faixa de areia, mostrava as pedras escondidas, fazia surgir lagoas efêmeras onde as gaivotas pastavam. Uma deixava cair sua presa, que logo era apanhada por outra. Algumas assediavam uma ave carregada, na intenção de fazê-la soltar a presa. Quando conseguiam, seu esforço era em vão, outra que vinha logo atrás já a apanhara durante a queda. Peixes morriam nas lagoas agora secas e pantanosas, pelo efeito do sol, e serviam de prato feito. Formando outro círculo acima daquela movimentada e retilínea avenida de duas mãos, ora o falcão de rabo-vermelho, ora a águia pescadora (açor) espreitavam em voos circulares, aproximadamente a cinco metros de altura. Repentinos como um raio, esses rapaces se atiravam vertiginosos como pinos, perto da água colocam suas presas adiante, e agarravam suas presas, inapeláveis, colocando-as em paralelo ao seu corpo, diminuindo o atrito com o ar e desaparecendo. Ele descobriu o nome desses gaviões graças a um vendedor de pé-de-moleque, caiçara típico, que apareceu para oferecer sua mercadoria. Ele comprou três pacotes e recebeu a informação: “São aves cujas fêmeas são maiores que o macho, e mais  habilidosas na caça. Durante a época da procriação, os machos assumem a responsabilidade da pesca para a família, e a convivência dura cento e vinte dias, até os filhos ganharem autonomia”. Perguntou o nome daquele mar. “Mar Bermejo”, respondeu o vendedor.


Esperou até que elas voltassem. Deu-lhes o doce de presente e ajudou no preparo do almoço. Peixe e legumes. Os produtos estavam armazenados e a adega foi encontrada em algum lugar que ele ignorava. Frutas, vinho. Ficou encarregado de descamar e limpar o peixe. Depois de almoçar, resolveu cortar sua calça e vestir a camiseta de uma delas. Estava apenas com uma camisa de manga comprida, e que considerada inadequada para a ocasião: “Você parece doente com essa roupa toda”. Duas se recolheram aos quartos para uma sesta. “O sol cansa muito.”


A que restou se acercou dele, que estava sentado à sombra (a pele muito branca não suportaria nem cinco minutos de sol), lendo um dos livros encontrados, e foi pela primeira vez observada sem seu disfarce. Estava animada com a novidade da situação, com o isolamento, com a atmosfera leve que reinava por ali, e o passeio sob o sol a deixou com vontade de contar uma história que ouvira da mãe, ocorrida nos tempos em que “o dinossauro ainda estava lá”.


“A sua amiga solteirona, Níobe, cuja missão invariável é narrar sua história: a de como foi enganada pelos homens. Um em especial. Ela sempre trabalhou para ajudar em casa. E era no trabalho que pescava suas oportunidades. Uma delas, a que chegou mais perto de conseguir sua realização, aconteceu com o sobrinho do seu patrão. Num belo dia, apareceu por lá um rapaz com seus dezessete anos, paralítico, de muletas, gordinho, baixinho, cultivava costeletas parecidas com as do Barão do Rio Branco. Começou a trabalhar na sala ao lado, onde atendia e distribuía os telefonemas. Falante e risonho. A maneira dele se comportar fazia com que a maioria das pessoas se acostumasse com sua aparência; a maneira com que contava os casos engraçados fazia com que todos rissem; admiravam, ainda, a sua obstinação em conseguir tudo o que lhe era pedido. Ela, apesar de seis anos mais velha, arriscou suas chances e se aproximou dele, para ver no que dava. E deu. Após lidar com a aparência física dele e aceitá-la, ainda não sabia exatamente se ele era sexualmente ativo. Mesmo sem ter isso esclarecido, resolveu dar todas as chances para que ele se aproximasse. Nada. As coisas ocorriam em câmera-lenta, era como o andar dele, muito demorado. O rapaz, apesar dos sorrisos, parecia tímido. Até que um dia a chamou para jantar. Ela não estava acostumada a sair, tivera até então os seus casos, mas sempre interrompidos antes dessa fase. Tinha medo de cair em outra esparrela. Ela já fora levada na conversa por um espertalhão, perdera a virgindade. Depois disso, evitava comentários sobre sua vida amorosa. Esse episódio fora riscado de sua vida. Temerosa, mas confiante, aceitou. Ele era inofensivo. O jantar foi agradável, conversaram animados, beijaram-se na despedida. Depois de alguns dias, mais um convite, aceito de pronto. Daí por diante, ele investiu sofregamente, e encontrou uma resistência física extraordinária. Ela se cansava, exausta de afastar as mãos e fechar as coxas. Utilizou todas estratégias possíveis e imagináveis. Inútil. O tempo não existia para ele. O momento era sempre adequado. Passo a passo, ele venceu todas as barreiras com os mais variados, extravagantes e incansáveis gestos, sempre conseguindo dar um passo adiante. E outro. E outro, até o limite final. Ela, definitivamente, não dava e não daria, a não ser que ele prometesse viver com ela, casado, em uma ilha, isolados de tudo e de todos. Ela não conseguia mais sobreviver naquele lugar, na cidade; enfim, queria o homem apenas para si. Ele, a princípio, concordou com um movimento de cabeça, talvez para conseguir o que queria e empurrando a decisão lá para adiante. Primeiro, temos que fazer a nossa vida. ‘Viver do quê, de brisa? Amor e uma choupana?’ Ele, então, se tornou um voyeur. Diante da proibição dos toques mútuos, ele a fazia exibir-se. Como um diretor de cinema, fazia com que ela se entregasse aos seus olhos, como se a estivesse fotografando, ou dirigindo um filme. Ela confessou gostar disso. A intimidade aumentava rapidamente, e era cada vez mais difícil de conter. Ela foi promovida, ele foi promovido. Ambos passaram a controlar o faturamento e o caixa da empresa. Ele contava suas histórias tristes, de como era injustiçado, de como trabalhava tanto e ganhava tão pouco. ‘O mundo é injusto, mesmo. Só morando em uma ilha.’ Até que, um dia, ele pediu que ela emitisse um cheque sem a despesa correspondente. ‘Invente uma’, disse ele, ‘o dinheiro será usado para o nosso projeto comum.’ ‘Isso é um desfalque?’ ‘Que nada, isso é justiça!’ Ela inventou a despesa, o cheque foi assinado. Eles nunca mais falaram do assunto. Criou-se a rotina, e falar no assunto era doloroso e desnecessário; apenas apareciam os cheques, quando não eram pedidos, ela o lembrava disso. Faria tudo que pudesse para conquistá-lo, desde que não desse. Ficaram juntos durante cinco anos, nessa situação. Ela separou uns cheques para si, acabou comprando uma casa, levou sua mãe para morar com ela. Esse fato, casa própria, despertou nela uma certeza. Instintivamente, acedeu ao pedido dele. Cedeu. Fizeram uma festa no escritório mesmo, à noite, na volta do jantar. Ele abriu a porta, não acenderam as luzes, e transaram sobre o tapete da sala da Níobe. Durante o sexo, o patrão repentinamente apareceu, acompanhado da namorada, subiram as escadas, apanharam alguma coisa e saíram. Quando, afinal, ele gozou dentro dela.”

Folha de S.Paulo, domingo, 12 de setembro de 1965:
 “Quando uma mulher sentir em seu coração o desabrochar de um terno sentimento por um homem e compreender que o mesmo acontece com ele, espere. Não se precipite. Mesmo que o seu desejo de casar seja grande, não se comprometa, fale-lhe francamente e com serenidade, pois todo o homem fica feliz, quando finalmente encontra uma mulher que lhe fala sinceramente de seus sentimentos sem se agarrar a ele com unhas e dentes, aflita por arrastá-lo ao casamento. Uma mulher que deseja esperar para poder bem aquilatar o seu amor é coisa tão rara que até parecerá um milagre e isso o fará admirá-la e querê-la ainda mais.
Essa espera sem compromisso é excelente e necessária por um motivo especial. Se com o tempo os dois verificam grandes incompatibilidades que não surgiram nos primeiros arroubos, a mulher poderá deixar partir o namorado, sem ter o ar de que foi abandonada. E poderá então aceitar a corte de um terceiro, sem ser tachada de leviana. Quando falamos aqui em casamento falamos em casar bem e não em casar a qualquer custo, apenas para não ficar solteira.”



Terminado o relato, pipocou em sua mente a associação entre o namorado e o ouvinte, ambos com a mesma condição física. Sentiu-se muito mal, procurava por uma saída honrosa. Quando se ouviu: “Socorro, socorro! Fui atacada por um cacto!”.




segunda-feira, 20 de junho de 2011

Autorretrato



 









Nos olhos já se vê dissimulada
Preocupação de si, e amor terrível.
A incessante notícia de uma luta
Com as panteras bruscas do invisível
É como a sensação de sede e fome.
Mudo, na cor translúcida da face
Já se insinua o pálido comparsa.
Na fronte existe um vinco que disfarça
Qualquer coisa... se acaso disfarçasse.
Mas não se vê o coração que come
O sangue espesso da melancolia.
Na boca, outro sinal de uma disputa
- Discórdia, dispersão e covardia –
E um traço calmo buscando a castidade.
No rosto todo, a usura de uma saudade.

Paulo Mendes Campos




Passados alguns anos do enterro do pai, encontrou um velho amigo. Este estava acompanhado do filho e conversavam, distraídos, sem animação, sobre um contrato a ser assinado. Órfão, lendo e tentando deixar a poesia entrar em si, encontrando sob o iceberg dos fatos armazenados o real significado de si, ouvia sem atenção a série de palavras expelidas por aquelas bocas amigas. Exibiram um maço de papéis escritos, e o significado deles, por mais que depusesse os olhos sobre, não lhe concernia, as palavras não serviam, não se intrincavam em linhas e significados, recomeçava a leitura, enquanto os outros se calavam, aguardando o seu parecer a respeito. Ele gostou daquele momento de paz. E se ausentou.


A grande sensação que o assaltou foi a da inevitabilidade da morte. Ela o atingira profundamente ao levar seu velho. Aquele com o qual jamais trocara palavras sem significado, mas amizade e carinho, sem levar ou ser levado a qualquer lugar: tudo se resolvia em uma demonstração de afeto humano. Não, todas as palavras que trocaram, obrigatoriamente, tinham que significar algo transcendente que valeria, dali por diante, para assegurar seu futuro, suas responsabilidades, como se ele, pai, fosse o Oráculo de Delfos, sempre disponível para adivinhar seu futuro. Mas, para quê? O futuro é a morte. Talvez tenha sido esse o grande sentido, que em geral os oráculos revelam por palavras interpostas e arrevesadas.  Percebeu as lágrimas descendo sobre as faces, primeiro tímidas, escapando uma a uma da sua prisão [tira os óculos, alega uma conjuntivite, que droga], mas logo depois rebentado, descendo em cascatas brilhantes, salgadas, rios de amargura que afastaram os interlocutores mudos da sua dor [não sem antes pegar o documento que trouxeram para a análise e avisar que alguém passaria depois para lhe fazer uma surpresa]. E se viu sozinho, sem ninguém por perto. Incomensuravelmente só. Não conseguia sequer saber em que lugar estava. Ao redor, tudo limpo, seco, sem som, sem eco, sem céu. Pela primeira vez, estava só. Queria, precisava se lembrar de tudo que não ficara gravado em sua memória, de tudo aquilo que estava submerso nos fatos que relembrava, é era isso o que importava. Nadaria naquelas águas geladas azuis profundas. Era o que de fato possuía relevância em sua vida: encontrar aquilo que estava sob a água, e que geralmente, como nos icebergs, é oitenta, setenta por cento daquele pedaço de gelo que se deixa mostrar. Mas, tampouco é algo que se aprenda ou se mostre com as palavras; é algo anterior a elas. Seu pai, como pálido comparsa? Aquele que se revelou em uma fotografia antiga, roubada de um parente que a guardava em suas gavetas estéreis, mofadas. Festa de natal, em branco-e-preto, anos idos, e o pai com o mesmo olhar longínquo, o mesmo olhar em que se pegava depois de momentos de silêncio e abstração como no começo desta história. E ele entrou naquele cromo, transformou-se em pai. Viveu aquele momento. Cheio de parentes ao redor, irmã, pai, mãe, tios, tias, primos e primas, todos formando uma pirâmide para se enquadrar dentro daquele foco a ser guardado para a posteridade. Todas as relações familiares, transformadas em relações de poder e de interesse. Existia uma segunda agenda, que seria revelada oportunamente, mesclada ao amor filial. Todos desgarrados do seu lugar original e submetidos ao tratamento de choque de obter o sustento, a qualquer custo, e todos os sentimentos foram afastados como móveis velhos a serem encostados contra paredes nuas, sem serventia, para formar um palco onde se encontrariam os pares provisórios que por alguns minutos se harmonizariam em corpos perfeitamente complementares, sem nenhuma fissura que os separasse, apenas dançando a música ambiente, exibindo uma comunhão que mais tarde se revelaria impossível. Ele, o pai, e agora pegando outra foto, olhando o pai afastado do foco principal, observando também a mãe avó, separados pela mesa farta de Natal, um defronte ao outro, rindo exagerados, mostrando a alegria [mera dádiva de estranhos]. Em casa, nunca se via nada igual, apenas silêncio. Um tio contara que o pai avô era muito mulherengo, tinha várias muitas mulheres e pelo menos duas famílias. Para eles: usura de uma saudade. E descobriu, como um raio caído do céu: jamais conheceu o pai. Assim como o pai jamais conhecera o avô. Era filho, neto e bisneto de desconhecidos. Apenas relacionou-se com um corpo, desdenhando de todos os sentimentos filiais. Era um amigo distante, que jamais pôde, quis ou conseguiu participar ativamente da vida daquele que gerou. A mistura entre os sangues resultou em um ser anônimo, estranho, e que para cada um deles sempre era o outro, o estranho, o inatingível. Era esse o significado da orfandade: ela sempre existira, sempre estivera presente. Mesmo quando o corpo tinha vida, ele não tinha sentido. Agora sem vida, o sentido se revelava por inteiro: oco. Essa foi a explicação do vinco invisível que disfarçava coisa alguma. Ele só conseguia conversar com a imagem de seu pai. Com os fatos exteriores captados por uma lente fotográfica. Por isso, quem sabe, ele passava horas e horas vendo álbuns de fotografias de estranhos, milhares de imagens das quais ele jamais conseguira sonhar que significado tinham, apenas as escolhia por uma ruga, um detalhe, uma cor, um olhar. Em sua grande maioria, imagens sem rosto, ou de costas, ou cobertas com os cabelos, sempre em lugares isolados, outras mostrando apenas a parte inferior do corpo, com pés próximos, sempre de corpos diferentes. Se algum clarão de luz havia, era para mostrar a sombra que fazia no chão. Adorava a imagem que vinha do fotógrafo de Gotemburgo.  Mostrava sempre os rostos lanhados, com expressão grave: foi neles que encontrou o mapa do tesouro. Era ali, naquela prega anônima, que estava a grande revelação. Foi filho de um estranho. Órfão desde sempre. Todas as sensações que possuía foram construídas artificialmente para mostrar aos circunstantes que ele foi um filho natural, não adotado, de mesmo sangue e imensa [mas imanente] distância. Ele apenas recebera a herança espiritual; a material, deixara para a mãe. Recebera apenas o rancor, o interesse e a ignorância. Como se fosse um personagem satírico-cômico de um romance, sempre se relacionou com os demais com uma subalternidade abjeta. Com o interesse precípuo de obter as suas vantagens, o seu sustento, raspava diariamente a sua dignidade mostrando a todos a ferida da sua impotência, clamando, silencioso por piedade. Uma mensagem sempre perdida. “Pela minha experiência não podemos, de forma alguma, depender das relações humanas para qualquer recompensa duradoura.” “Só o trabalho realmente satisfaz?” “Sim. Não há muita gente que acrescente algo às nossas vidas.” Um recado enfiado no gargalo de uma garrafa para sempre jogada no mar aberto da insensibilidade. Perdera a vergonha de exibir seu defeito, mostrando-o como se fosse uma virtude que ele já sabia inexistente. Ele fora dotado apenas de paixões inferiores, aquelas para as quais não encontramos razões outras que não o medo, e a fome, e o isolamento: “planos superiores as comandam, e existe nelas um apelo perene que não se cala pela vida inteira; e hoje essa paixão já não parte de mim, e a minha fria existência se encerre naquilo me derrubará por terra um dia, diante da sabedoria celeste.” Ele, o pai e o avô aprenderam apenas a calar diante da ameaça. Paralíticos. Nenhum deles aprendeu a se defender, a socar, a bater no oponente, e ele representou o apogeu da resistência. Sem poder correr, aprendeu a calar, suportar, não demonstrar qualquer emoção, até cansar todos os músculos da face, que dobraram sobre si mesmos, cansados.

Ao olhar adiante, viu um carro aberto se aproximando. Um carro antigo, grande, com três mulheres dentro dele. Elas estavam fantasiadas, mas não como as que vemos no carnaval de tempos em tempos: trajavam roupas fora de época e com uma maquiagem exagerada, também fora de lugar. É dia claro, sol a pino, seus rostos mais pareciam máscaras do que qualquer outra coisa. Entrou para fazer um passeio, e o seu convite era a porta aberta. Nada mais.  Subiram de ré por uma alameda que não lhe permitia ver o lugar. Só quando estacionaram na frente do lugar é que ele percebeu se tratar de uma grande construção, magnífica, larga.