segunda-feira, 15 de junho de 2009

“Convém aos felizes ficar em casa.”




Enrique Vila-Matas em ‘Suicídios exemplares’.

Cultivo algumas plantas, flores e arbustos nos fundos de casa, capim barba de bode (por dois motivos: sem capim não poderá subsistir a espécie humana; cuido, assim, da minha cota, e pelas flores que são lindas), lobélia (suas flores miúdas e intensas de azul), estévia (posso adoçar o chá preto com um galhinho seco) e a minha predileta, a orquídea borboleta (cuja flor atrai borboletas e pássaros). Todo dia coloco algumas frutas para alimentar as aves. É o meu espaço verde e amistoso.

O dia é fresco e agradável, o sol está apontando lá na linha do horizonte. Quando me perco admirando as plantas, ele aparece como uma gema.

Sou corretor. Pesquei um grande negócio. Recebi o nome de uma pessoa interessada na compra de uma grande casa. O presidente da companhia encarregou a secretária da tarefa. Ela me perguntou, gentil e afável, qual o valor a ser recebido em caso de sucesso. Concordamos. Encontrei algumas opções e as ofereci. Estávamos prestes a fazer o negócio quando recebi o telefonema de um antigo amigo. A amizade sólida exigia que saíssemos para jantar regularmente. Ele se colocou à disposição para me ajudar no atendimento ao executivo. Ele também é presidente de empresa, com conexões internacionais. O pai dele, banqueiro, homem de muitas relações, deixou como herança, além de uma bela fazenda e outros bens, essa rede de suporte social que antes se chamava rol de amigos. Os filhos deles frequentavam a mesma escola. É uma operação triangular de amigos. Ele, amigo do meu cliente e meu amigo, poderia perfeitamente ajustar tudo. São os dois catetos. Eu, a hipotenusa. Ele me pediu para informá-lo do preço de mercado de vários imóveis, para comparação. Felizmente, o melhor de todos foi o que apresentei. Essas compras são demoradas, as negociações são complexas, as pessoas envolvidas titubeiam, ficam inseguras, o valor envolvido é fruto de economia de muitos anos, muitos riscos envolvidos, mas acabamos por negociar um preço ainda menor. Essa redução final só foi conseguida após um abatimento no valor do meu cheque. Geralmente, para fazer uma redução de preço, o cliente exige a minha solidariedade. Eu não consigo recusar.

Hoje, devo me preparar para levar os documentos aos advogados. Meu amigo faz questão de levar e vai ao meu escritório para pegá-los. Durante a conversa, falou em dinheiro. Quanto ele receberia por ter me ajudado tanto? “Bem”, eu titubeei, “não posso pagar muito, já paguei pela indicação do nome dele e já reduzi o valor da comissão, você sabe como é, não?” “Sei, sim, mas cada um sabe do seu problema. Eu quero a metade do valor para mim, também tenho meus compromissos, e não posso trabalhar de graça.” E de nada adiantou qualquer ponderação, ele “preferia” que o negócio fosse realizado por alguém mais “compreensivo”.

Meu vira-latas se chama Giggio. Ele adora companhia, e talvez por esse motivo seja afastado do nosso convívio pela minha mulher. Ela detesta o cheiro do animal, que segundo ela se espalha pela casa. Sendo assim, ele fica confinado nos fundos. Ele é muito expressivo, o seu latido tem diversas variações, é quase uma fala, dependendo do ouvido disponível. Existe nele um dispositivo que dispara de vez em quando. Isolado e sem que ninguém lhe dê atenção, algo se enche dentro dele. A partir das seis horas da manhã, começa a ganir, latir, grunhir e gemer em diversos tons, sem muita altura, mas com a intensidade suficiente para demonstrar sua insatisfação, sem incomodar. E lá ficam ele e suas fungadas prolongadas que passam pelo vão debaixo da porta. Gera uma compaixão enorme, mas a casa continua no ritmo normal de toda manhã. Eu abro a porta, deixo que ele morda um pouco meu calcanhar, sorria pelo rabo, dê alguns pulos, divido como ele parte da minha fatia de mamão. E vou trabalhar. Deixo a casa em silêncio.
Um faxineiro trabalha comigo por um salário mínimo. Uma figura pequena, escura, os olhos ávidos numa face mal barbeada, coberta de cerdas cerradas, grossas e lutando uma contra a outra, cerdas que, partindo em direções contrárias, cobrem todo rosto, como se o defendessem de algum ataque, até abaixo dos olhos. Calças cambaias de muito uso, com vários vincos horizontais em leque nos joelhos e virilha, cobrem suas pernas encolhidas e tortas. A camisa perdeu a cor original, o padrão parece ter sido um xadrez, resultante da briga entre o marrom e o negro. Um pequeno chapéu amassado coroa a cabeça, com uma aba minúscula, cobrindo, envergonhado, o monturo. Sua imagem lembra um torrão. Vive só com a mulher. Do seu salário, não gasta quase nada. Mora de favor, come pouco e acha boa a comida da companheira. Empresta a juros tudo o que ganha. Seus colegas vivem a sua felicidade no dia-a-dia. Ele, não. Ele guarda, coleciona seu dinheiro. Só o faz para os colegas próximos, para poder receber. Tem muito medo de perder suas notas. No dia do pagamento, faz a coleta. E guarda. Abriu uma conta no banco, venceu a vergonha de não saber escrever, a não ser desenhar o nome. A poupança rende algo mais sem precisar trabalhar. Um dia passou mal. Dor aguda, tontura. Levaram-no para o pronto socorro. Apendicite. Foi marcada cirurgia para dali a três meses. Fui avisado do caso e da história dele e pedi ao sistema de saúde uma antecipação, pois o caso era urgente.

Ao telefone, o advogado do comprador pergunta se eu conheço aquele nome de vendedor. “Sim, conheci na negociação. Ele vende o imóvel para receber o dinheiro gasto na educação dos sobrinhos. Ele é o tutor do casal.” “Pois, então. A moça matou o próprio pai, que era o dono da casa. Você não lê jornal?” ”Sinto muito, mas não liguei o nome à pessoa. Afinal, isso não tem muita importância. A casa está em perfeitas condições, foi revisada e analisada com muito cuidado. A casa não é da filha, é do tio dela. O seu cliente é estrangeiro, morou no exterior, e não se preocupará com isso. Estou certo disso.”

Almoço com meu filho, depois de muito tempo sem o ver. Tentamos nos aproximar, falamos banalidades, a comida não é boa. Ao sair, sou abordado por um homem, parecendo bêbado, que me diz: “Estou com fome. Quero comer, porra!” “Não tenho trocado.” “Como não tem?” “Não tenho. Cai fora.” Cheiro ódio saindo pelos poros.

Recebo, ao final do dia, o telefonema da secretária dizendo-se muito decepcionada com o meu comportamento. Eu deveria saber que a casa é impossível de ser vendida. Ela não permitirá que o patrão more em um local daqueles, com esse estigma. “Mas a casa não é ... “

Volto à tarde, quase noite. O sol desaparece. Preguiçoso, sento numa poltrona. Diante de mim, duas vias de estrada, mais além o terreno sem acidentes de um amarelo profundo e ondulante, sem nenhuma planta para refrescar a visão. Asfalto, pedra e areia.
Primeiro, o sax executa todas as linhas melódicas doces, através de um arranjo repetitivo com ritmo rápido e amolecado, cantando as sílabas pronunciadas com o clarinete, e agora as cordas, fazendo trio, rascam ao fundo as palhetas sobre os pratos da bateria; depois da primeira declamação, entra a segunda com a voz dela: Billie.

Clara, terna, adorável, refrescando o entardecer, tirando aquele calor excessivo e cansado (With each word your tenderness grows,/Tearing my fear apart.../And that laugh that wrinkles your nose,/It touches my foolish heart), tornando o cenário digno de filmes antigos, onde tudo acabava bem, para não expulsar os vivos medrosos através das janelas de primeiro andar.

Sopra um vento empurrando uma esfera vegetal e voante, a salsola, uma planta que, ao contrário do humano, o vento não enlouquece, passa e fica em um banco à minha frente, indiferente ao melhor olhar.