sábado, 20 de fevereiro de 2010

Peixe-Palhaço





Dinheiro é como eletricidade. Chocante quando em doses moderadas,
letal quando aplicado em excesso. Injeção letal é mais humano. I.Lessa

Houve um acordo tácito para encontrar o quarto jogador de nossa mesa. Nada foi falado, nada foi alterado. O ar, intrometido entre nós, é um pouco diferente: mais denso, quer evitar um contato direto entre as pessoas; também permaneceu um halo, às vezes percebido com o giro repentino da cabeça.
Sultana insiste em dormir próxima à Nega Luísa. Lindinha está em férias, desapareceu por uns tempos. O sabiá-una persiste em sua melodia. Ao ouvi-la atentamente, percebemos também uma leve modificação no timbre, no tom, no vigor.
Algumas pessoas têm comparecido para nos acompanhar por uma, duas ou três rodadas. Algo as expele. Etéreo. Irredimível.

Surge Tom Shakespeare. Veio do distante norte. Uma figura simpática que ganhou as folhas ao receber uma bolada na loteca, e mais: as telas da tevê. Foi quando desapareceu. Declarou a todos que não mudaria em nada a sua vida, mas enfrentou muitas dificuldades. Fugiu, brigou, desequilibrou-se, e morreu. Várias vezes. O mundo se aproximou muito dele, e fez notar que não haveria lugar e muito menos quem acreditasse nele. Ele deixou de ouvir música, beber, e começou a ter de explicar, falar, conversar, opinar, refletir. O cérebro dele passou a ser privilegiado. As mulheres o achavam lindo, era requisitado. A sua última namorada precisava muito de dinheiro, que ele deu. Mas não o suficiente. Jamais seria o suficiente.  Ele resolveu se mudar, uma pequena alteração, ficando por ali mesmo nas redondezas. Comprou um belo relógio numa loja de penhores, pagou alguns velórios e dívidas dos amigos. Depois de um tempo, o xerife desconfiou de algo e começou a investigar seu provável homicídio. Abriram covas nas casas, a nova e a antiga. Seu desaparecimento foi convertido em busca de corpo e a namorada foi a principal suspeita.
Paris, França. Soube, pelo noticiário da tevê, que Jean-Claude Duvalier foi premiado com uma grande soma de dinheiro. Queria aprender com ele. Sabia que morava em Paris; sabia, pois, o suficiente. Descobriu também uma insuspeita habilidade para aprender as línguas dos homens. Com algumas semanas, conseguiu emprego na casa dele, como assistente de cozinha. O fato de comer muito pouco foi decisivo na sua contratação.  Passados seis meses, demitiu-se. Tinha visto tudo. Viveu a história daquele homem e não a queria para si. Um constante beija-mão aos benfeitores e banqueiros. Jogava paciência contra o tempo, mulheres, amantes, objetos, coleções e pessoas contratadas para mentir. Bajuladores. Ele já vivia imóvel. 
Assistiu a uma reportagem sobre a vida de Hailê Selassiê. Ficou impressionado com alguns fatos de sua vida. Apesar dos constantes banquetes em que comparecia, comia pouco. Quase nada, apenas roçava o prato e mastigava interminavelmente o pequeno bocado levado à boca. Seus lábios apenas se abriam após um esforço sobre-humano. Levava sempre alguém consigo para ouvir o que ele sussurrava. Uma ponte levadiça para o mundo. O repórter disse como fecho da história: “... ele sabia que, quando alguém, armado, ultrapassa a própria história, esse alguém deve morrer”.

Despencou em nossa mesa. O Zé e o Esmérdia o aceitaram e ele virou o Big. A sultana e a Nega olharam de lado, sem emitir opinião alguma. Aprendeu o mahjong e o dominó. Era fã deste por ser rápido e prático.  Ainda estava descobrindo o país, sua gente, e o calor e o frio. Sem extremos.  Tudo parece diferente. Móvel. Um parque de diversões.
Vestia um colar chamado Dadá. Era assim que o Zé o chamava. Um colar. Vivia às voltas com seu livro: Você merece. Escrevia e reescrevia. As palavras iam e vinham.  Queria escrever um livro para o primeiro lugar na lista dos mais vendidos. Big prometera ajudar. E para isso queria exatamente pegar o tom, o ritmo, passar as idéias, pensamentos. “Você gosta dele?”, perguntei. “Já gosto dele; é simples gostar. Basta dizer o que ele quer ouvir, precisa ouvir, não é fácil viver com o mundo em silêncio. Isto é a beleza. Anseios iguais. Um texto que salva. Se o leitor quer o bem; que esteja de bom humor. Sempre há esperança.” “Gostar do igual é gostar de si mesmo?”, insisti. “Cara, eu só quero vender livros. Refletir? É angustiante. Ele quer salvação. Imortalizar-se. Ele precisa de alguém dizendo que ele pode. O dia todo. Toda hora. Basta abrir o livro e tomar uma drágea: ler uma página.”
História na tevê. As catacumbas dos católicos. Durante os primeiros séculos, os cristãos se abrigaram em cidades subterrâneas para fugir da fúria dos romanos. Os revolucionários americanos e maçons construíram seus túneis em Filadélfia para fugir dos impostos dos ingleses. Na Itália, as catacumbas hoje são depósitos de corpos e mercadorias. A instituição se transformou em uma Cosa Nostra e desafia o poder.  Na Segunda Grande Guerra, a América enviou seu agente especial Lucky Luciano para facilitar a invasão dos aliados contra o despotismo do ditador. Luciano trabalhou com eficácia e ganhou liberdade total de ação. Ele conseguiu ser um homem do subterrâneo e da cidade. Serviu ao crime, à cúria, à malta, escorregou por entre as malhas, conservou seu dinheiro e o doou aos pobres ao fim de sua vida. Abordava turistas apenas para ouvir seu idioma natal.
Big vencia quase sempre. “Sorte de iniciante”, resmungava Smérdia.  Parecia que a sorte escolhia o novato para prendê-lo conosco. Ele nos levou a uma praia, em um final de semana. Deserta. Com um morro em cada ponta: Monte H e Morro do Americano. Após comermos peixe na brasa com os pescadores na praia, subimos pela coxilha até o ponto ideal. Ali ficamos olhando. À nossa direita, podíamos observar o sol se encaminhar rumo ao pico do monte. Ouvimos que, nesta época do ano, ele cai exatamente em cima daquela ponta. Nossa atenção foi chamada pela luta de um vaqueiro para laçar um touro nas proximidades. Uma batalha. Couro, cordas, chifres, músculos, fúria, força, esperteza, dominação. Ambos saíram feridos. “Estou acostumado com isso. Esse animal tem três anos, viveu à vontade, e agora vai para o estábulo. Vou preparar o bicho para cobertura”, explicou o vaqueiro. Big perguntou: “Como é a doma?” “É simples: não reaja. Ele vai jogar você no chão, quebrar tudo, corcovear, escoicear, chifrar. Deixe. Não reaja. E ele ficará seu amigo”, e mostrou uma cicatriz de trinta pontos no antebraço.
Ao final de tarde, o sol foi penetrado pelo pico do monte. Uma sagração majestosa destacada da linha do horizonte. O calor era temperado pelo vento noroeste que soprava constante; tudo estava próximo e ameno. As trilhas por entre o verde sinuoso eram convidativas às descobertas.  A paz se espalhou no ambiente. Uma cerimônia. Até que ele se escondesse com a luz.
Big nos contou que sempre foi auxiliar, desde os três anos: de caminhoneiro, de cozinha, de lenhador e vaqueiro. Conseguiu um trabalho em um circo. Caminhará, de ora em diante, com ele, até aprender o ofício de malabarista e de trapezista. Abrirá outras portas do mundo. Era a sua despedida. Quando e se atingisse Aden, consideraria vender armas.
Descemos à praia, procurando pouso. Noitinha fresca, a lua despontou no horizonte, na direção oposta, redonda e vermelha, nítida e próxima, oferecendo um foco cálido de luz. Só marulho, areia, pedras e estrelas no céu e, faiscantes, no mar. Seria o fruto daquela união? Iluminou uma orquídea catléia madura e da mesma cor, ao nosso lado.