segunda-feira, 29 de junho de 2009

Dança Ritual Urbana II



Dança de rua, segundo movimento

David formou-se em jornalismo a pedido dos pais. Não sabia, ao se matricular, sua vocação. Até hoje não a encontrou. Homem de poucas palavras, ensimesmado. Passou curso todo, dez semestres, sem fazer amigos. Os contatos cordiais, diários, não conseguiam representar nada, ele não agradava ninguém. Simplesmente não compreendia aquela alegria toda, a vantagem de viver a vida sorrindo, estourando emoções esfuziantes, batendo nas costas dos outros, jogando bola e contando piadas. Não via a menor graça nisso. Foi considerado esnobe. “Rico não gosta das pessoas, sente-se superior.” Uma ilha sentimental. Em casa, discutia-se muito o valor do dinheiro. Ele, não. Ele apenas ouvia. Orçamento baixo e contado. “Economia é a base da prosperidade.” Economia sempre. E a prosperidade? Jamais. Os pais não conversavam entre si, se excluirmos as conversas utilitárias; ambos trabalhavam. David não conseguia dar valor ao dinheiro, não tinha ambição alguma. Pouco era suficiente; tentou trabalhar em diversos lugares, sempre o ambiente lhe parecia hostil e degradante. Odor insuportável de azoto. Gás mostarda; em baixa concentração, vazando em algum lugar. Todas as relações entre as pessoas eram tóxicas, mediadas pelo dinheiro. Alguém queria algo de alguém, fazia amizade para conseguir. Via apenas valor de troca. Agora: estava adernado em um jornal. Só fazia pesquisa. Não conseguia ganhar a rua. Fazer uma reportagem? Não, não era esse um anseio, o escrever. O desejo era mesmo de ganhar a rua. Sair daquele cheiro insuportável. Como na faculdade, tampouco lá fez amigos na redação. Sentia-se só. Usava constantemente um boné, com a pala baixa, cobrindo os olhos e metade do rosto. Olhava com asco os carrões dos chefes na garagem. Sua vida era ler (odiava) e pesquisar (também). Guardava praticamente o salário inteiro. A sua história poderia ser resumida em dois grandes momentos: dois assaltos. O primeiro ocorrera ainda criança, saindo da escola, tênis novo. Dois meninos o ameaçaram com facas e levaram seu tênis e toda a roupa. No segundo, anos depois, estava em um ponto de ônibus, voltando da faculdade, teve o dinheiro do bolso levado, uma arma apontada por dentro da jaqueta. “Sou trabalhador como você”, lembra de ter dito. Fora ultrajado. Sentia humilhação ao passar por isto, e uma tremenda raiva. Sentia medo, e vergonha, não conseguia reagir. Afinal de contas, tinha tamanho para isso. Mas sua autoconfiança esvaia-se pelo ralo da sua vida. Passou sua existência para satisfazer os pais, não queria satisfazer mais ninguém. Esquecera-se de si próprio. Tinha apenas a posse da sua raiva. O cinismo crescia dia após dia. Era o emblema que o segurava à beira daquele ralo. Não queria ver lá por dentro. Olhava apenas para fora, apesar do tédio, enganava a dor. Doía muito. Lembrava-se também do último ano da faculdade. Fora assistir aos jogos universitários, com alguns amigos do tempo do colegial, hoje advogados, administradores, todos trabalhando e fazendo carreira. Uma agitação extraordinária para ele, não estava acostumado. Tomou muita cerveja e apagou. Lembrava-se de algumas meninas, toalhas molhadas, corpos nus, mas a lembrança era vaga. Apagou por dois dias. Acordou com muita dor de cabeça, um gosto de chumbo na boca. Um colega de classe perguntou se ele queria outra mais, para arrebentar na festa. “Não, obrigado.” Percebeu que tinha tomado alguma coisa. O cinismo explodiu em pânico. Voltou o mais rápido que pôde. Sabia agora que todos, sem exceção, eram cúmplices. Transavam drogas, ele participou de um ensaio geral. Seria abduzido. Fez ligações entre as conversas ouvidas na sala, na festa, lembrava dos gestos, dos sinais. Havia um complô. Comunicou aos pais e ficou uma semana sem sair de casa. Apenas se prevenindo para o golpe que havia de sair, não sabia de onde. “Você sabe o que é esperar algo, sem saber de quem, de onde, quando? Você tem a menor idéia do que é isso?” Lembrava que lhe perguntavam onde morava, qual o andar. Seria um assalto, viriam roubar novamente. Levou suas coisas para a casa de um parente próximo e de confiança. Não precisava explicar nada. Pediu um lugar para guardar algumas coisas no depósito da casa, levou um cadeado e trancou tudo. E esperou. Nada. Esperou um flagrante de estupro. Ou uma acusação de uso, consumo e tráfico de drogas. A dor aumentando, a culpa por freqüentar uma festa como aquela. Não ganhou nada, sempre estivera certo. Não gostara de ninguém e muito menos de si. Pensou na irrelevância de tudo. Nada mais fazia sentido. Largou o emprego também. Comprou uma arma. Pensava em emanar por lugares onde não era conhecido, encontrar pessoas solitárias, em lugares ermos, e matá-las. Uma por uma. Não havia erro. Sem nenhuma lógica, a esmo. Não queria ser alvo dos policiais. Um dia aqui. Outro dia ali. Não pretendia justiça. Não procurava bandidos. Procurava por solitários. Gente como ele. Conhecia uma jornalista que escrevia sobre personagens dos bairros da cidade. Dava nomes, narrava coisas pitorescas. Iria num bairro daqueles, um dia, escolhia a esmo, sem testemunha, um tiro só. Para isso fez um curso de tiro. Tinha uma boa visão e mão firme. Foi aprovado com louvor. Casa Verde, Santo Amaro, Freguesia do Ó, Vila Olímpia, Jaguaré, Capão Redondo, Jardim Europa, Vila Carrão, Vila Matilde, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes e Centro. Aos poucos, a raiva daria lugar à confiança. Não sentia nada por ninguém. Tudo o que sentia era raiva. Raiva e mais nada. Uma raiva difusa, sem direção, contra o seu semelhante, contra si. A dor, quem sabe, se extinguiria. Não mais o incomodaria, não teria mais que freqüentar o médico psiquiatra. Afinal, aquele imbecil não falava nada mesmo. Dava um remédio. “Sossega leão, doutor?”. Transferência. Que nada. Mandar todos para o inferno. Viveria junto com os pais, para sempre. Pronto. Passava as noites imaginando o roteiro, os cuidados que teria que tomar, para não ser visto. Passeou pelos bairros todos. Lia a crônica e vagava pelo bairro. De manhã. Outro dia, à tarde. Ou à noite.