quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Plástico ou A desgraça provém da inteligência.



I love Los Angeles.
 I love Hollywood.
 They're beautiful.
 Everybody's plastic, but I love plastic.
I want to be plastic.

Escrever é como comer doces. É a minha diversão. No meu almoço, começo a escrever sobre o que se passa pela minha cabeça. Trabalho o equivalente a nove dias por semana, oito horas por dia. Minha tarefa é a de extrair todos os fios soltos dentro dos jeans exportados para o oeste. (Como são grandes as calças; queria conhecer uma pessoa que as usa.) É uma tarefa cansativa, mas fácil de ser feita; requer apenas atenção e paciência. Tenho muitas saudades dos meus pais. Eles são de Sichuan. Estou em uma grande cidade, com muitas pessoas, que falam de muitas coisas que não entendo. Nem sei se quero entender ao observar como eles vivem os seus horários de descanso.  Eles se extenuam ainda mais, precisam ocupar mais espaço, estão contaminados pela competição, que nunca se esvai, nunca termina.
            A minha colega Orquídea (ah, meu nome é: Jade.) me levou para uma reunião na associação cristã. Lá, conheci um menino que veio conversar comigo. Ele também veio de outra província, e é jogador profissional. Fica em frente ao computador, durante horas, jogando contra outros meninos do mundo inteiro, e ganha por isso. Ganha muito bem, vive rodeado de admiradores. Disse que apanhou todos os dias, ora do pai, ora da mãe, quando pequeno. Eles diziam que ele devia trabalhar e economizar, não passar o dia inteiro jogando. Ele treina, até hoje, doze horas por dia. Os pais se envergonhavam disso perante a vila. Até que o filho (SkY) mandou o seu primeiro salário. E junto com ele vieram os repórteres, a tevê, a fama. Ganharam o respeito alheio. Compraram carro, móveis, utensílios. Hoje tem orgulho do filho, que se tornou filho da aldeia inteira. Eu? Não sei qual a utilidade desses objetos. É só uma batelada de plásticos.
            Os meus pais não pedem meu dinheiro, dizem que eu devo guardá-lo para o meu uso, que vou precisar dele. Eu mando mesmo assim, separando um pouco para mim. Aqui eu tenho tudo de que preciso. Bem, a comida poderia ser um pouco melhor e mais barata, mas é suficiente. Minhas colegas são minha família. Um rapaz que trabalha comigo também frequenta as reuniões. Ele é simples, econômico, não gasta quase nada do que ganha, economiza muito. Quer ter uma fábrica igual à do patrão no futuro. Escrevi para minha mãe, contando que gosto dele. Ela me recomendou que eu escolhesse um menino de família rica, não deveria me apaixonar por alguém pobre como eu. Já esperei por ele até meia-noite, e ele não apareceu. Explicou que precisara trabalhar até tarde. Ele, todo sem jeito, me deu uma corrente dourada com uma borboleta, e quer conhecer a minha família. Nós viajaremos para as festas do final do ano.  Afinal, são dois anos fora de casa.
            Eu, Orquídea e Elegante (ela usa o corredor entre os beliches como passarela e desfila imitando o andar das modelos), escrevemos um bilhete que colocamos no bolso da calça: Jade, Orquídea e Elegante fizemos esta calça, espero que goste. Orquídea colocou os bolsos, Elegante costurou o zíper e Jade retirou as imperfeições. Somos de Sichuan, estamos curiosas para saber se você gostaria da nossa comida. Desejamos-lhe harmonia e equilíbrio.
            Hoje comprei uma calça de brim. Encontrei o bilhete no bolso. Conheci a história de uma mulher romena que se oferecia em casamento ao homem, futuro comprador da sua roupa.  Meu sogro se encarregou de fazer a tradução (a caligrafia é linda, disse ele); ele é conterrâneo, mas precisou do dicionário para traduzir. Queria agradecer, dizer o quanto gosto da comida de lá, aprendi até o preparo. Criei a expectativa, frustrada, que aqui em casa apreciassem. Não há tempo para se deliciar. Apenas se mata a fome, e o ruído que o sabor faz na boca se torna branco. Não se percebe. Nós moramos perto do aeroporto. E o som das turbinas é outro ruído branco. As mulheres cuidam dos negócios. Nós cuidamos da casa. O velho, nas horas vagas, compra Kombis decrépitas, reforma e passa adiante. Um dia a aorta se desfez nele, desmanchando nossa dupla. Eu sou afinador de piano. Trabalho nisso depois de fracassar nas outras iniciativas. Aproveitei um dom de família que não conhecia. Depois de conseguir calma, e com ela tempo, tive disposição para ouvir o meu corpo e descobrir a minha habilidade: uma audição perfeita. Capaz de distinguir as menores variações de tonalidade. Peguei intimidade com o instrumento. O piano é uma pessoa, cada um tem a sua voz. Cada som é peculiar e único. Assim como os seres humanos, ele nos trata como nós o tratamos. E, hoje em dia, o meu trabalho é cada vez mais valorizado e  menos requisitado. Em sua grande maioria, os instrumentos são mal tratados, estão em locais precários, com muita umidade, e sem uso. Eles estão ali, como artigos de decoração. Imagem. O seu interior, marteletes, feltros, cordas, cravelhas, não se movimenta, e por isso, quando sou chamado, não consigo estabelecer uma afinação estável.
            Hoje é dia da visita do afinador. Eu mesmo poderia fazer a afinação. O gosto pela perfeição, de tocar em ambientes controlados, fechados e sem qualquer ruído, permanece. Mas a perda dos movimentos da mão esquerda e da perna direita veio assim, do nada, uma mudança brusca. Primeiro, o repúdio. Não queria saber mais dele. Não podia mais tocar com ele. Cada nota da melodia, cada silêncio, tudo tem sentido, razão de ser e deve ser executado com a maior perfeição possível. Para isso é que existe a partitura e os andamentos. Somos e seremos sempre ajudantes do compositor, executores da sua inspiração. Os exercícios de fisioterapia já permitem que eu movimente a mão e a coloque sobre o teclado e o pé no pedal. Os movimentos são inexistentes. Estou aqui ao lado, esperando o fim da afinação. Como se depois dela eu pudesse tocar.
            O que a música diz para mim? É um virtuosismo do compositor, uma obra para mostrar perícia e técnica? Ou um estado do seu espírito, transformado em sons, para nos comunicar algo? Eu preciso da música para tocar piano? Ou preciso do piano para tocar música?
            É a primeira visita depois do meu incidente.  Ele chega, começa o seu trabalho, fico por ali para saber como ele encontra a afinação quatrocentos e quarenta. Ele fecha os olhos para ouvir cada som. E rapidamente encontra o padrão. Seus movimentos são precisos e delicados, as mãos são grandes e os dedos, finos.  Ao ser indagado por mim, revela que não toca. É tarde. Deveria iniciar desde muito cedo, para acostumar-se com os movimentos. Sendo a música um diálogo, deve-se começar desde muito cedo, quando se começa a falar. O som que produzimos no instrumento será a nossa palavra. A frase é o pensamento, e a música o nosso romance, conto ou novela. Cada um de nós consegue um som próprio. Um canto. Hoje eu seria, caso começasse a tocar, como aquele Kaspar Hauser. Alguém com um acento comprometedor.  Perguntou quando eu começara a tocar. Não esperou minha resposta, ele sabia que a minha comunicação é exclusivamente através da música, e eu estava mudo.
            Eu lhe dei um silêncio evasivo, envergonhado por dizer a verdade. Do antagonismo que se criara entre o piano, mim e o público. E aquela conversa estava ajudando a solucioná-lo. Eu preciso me comunicar e produzir o novo som da minha voz, com ou sem a mão esquerda, com ou sem o pé.
            Infelizmente, ele não conseguiu terminar o trabalho, um Si insistia em não dar afinação. Não conseguiu encontrar algum motivo lógico para isso. Não há componentes de plástico no meu Steinway. Ouvi minha mulher me convidando para sair. Precisamos tomar ar. Que tal fazer algumas compras?
            Trabalhar como papai Noel não é tão amistoso quanto antes. De outro lado, eu posso começar mais cedo. A partir de fins de outubro, já existe necessidade do bom velhinho. As crianças têm um padrão de comportamento. Algumas choram, outras se assustam e não largam a barra da saia da mãe. Mas a maioria ainda curte. Elas ouvem a história dos pais durante o ano todo, recebem as promessas por seu bom comportamento, e, por fim, ficam ansiosas para conhecer o que carteiro dos presentes trará. Eu sou a encarnação das histórias contadas em casa. Era professor até algum tempo atrás. Tirei algumas fotos com a roupa adequada e as distribui com meu currículo. Por cultivar uma longa barba, fui aceito rapidamente.  Desde os tempos da escola, tenho o corpo inteiro tatuado. Nas costas um belo Lúcifer.  Não me atrevo a trocar de roupa diante dos funcionários. Fiz uma permuta com o tatuador: eu lhe dou lições de desenho, em troca de uma nova tatuagem sobre o anjo caído. Escolhi o Shrek.
            Neste ano, recebi instruções drásticas a respeito do meu comportamento com as crianças. Apenas colocar a criança no colo na presença da mãe ou responsável. Não beijá-la, a não ser com expressa autorização prévia. Caso ela mesma o peça, tenho que referendar o pedido com o responsável. O beijo se transformou em um ato de comércio. A história se espalhou pela cidade, contada por um médico: um velhinho, gordinho, de vermelho, que se esgueira em uma casa, dando presentes, vindo do nada, gosta de crianças, as afaga e mima, as coloca no colo, afinal das contas, não é estranho? Não nos lembra nada? O beijo, o presente, o Natal, tudo é transação. Aos poucos, o Papai Noel se transforma apenas em uma imagem que se esvai. Todo cuidado é pouco. Até agora não há roteiro para as conversas que eu posso ter com elas. Será o próximo passo. As lojas pedem um resumo da minha conversa com elas: Tudo que você faz durante o ano é jogado dentro deste saco, e no dia do Natal ele é devolvido, transformado em presente. Já estou pronto para repetir uma séria de palavras programadas, insípidas. Basta mais um colega assaltar um banco.  E um daqueles robôs japoneses de plástico virá me substituir. 
            Observo a aproximação de três mães, carregadas de sacolas, com quatro crianças irrequietas, exceto uma, menina, que se aproximou para conversar, as demais ficaram correndo, subindo nas palmeiras artificiais, se debruçando no parapeito, chamando as outras. Uma menina de três anos, cabelinho preso no alto da cabeça, roupa de bailarina, com sapatilhas. Disse que foi fazer um ensaio. Enquanto ela fala, eu mostro alguns brinquedos que estão ao meu lado. Ela fica séria, olhando cada um, cuidadosamente, enquanto ouço a conversa das mães:
            - A Gina tem um belo de um casamento. O marido é executivo, ganha muito bem, ela é mãe em período integral, com babá, motorista e empregadas. Ano que vem, o destino é a Índia. Vai ficar seis meses, fazendo retiro.
            - A Andréa também. O marido é mais novo. Bonito, musculoso, carinhoso, cheio de amor pra dar e bom humor. Está feliz e satisfeita. Executiva, nem pensa em ter filhos. Contou que na semana passada trocou de carro com o marido e sem querer encontrou no console cupom da farmácia, registrando a venda de um energético e um pacote de camisinhas. Ele não usa, diz que detesta, e nunca o viu bebendo. Ela está pirando.
            - A Alexandra, coitada, é a pior de todas. Casou por amor. Com três filhos, o terceiro veio sem pedir licença. Os dois trabalham e o marido ganha pouco.
            A bailarina se aproxima da caixa contendo uma caravela, desmontada, do Pirata Barba Roxa, com seiscentas peças de encaixe, plásticas. Indicado para crianças com mais de seis anos: é minha obrigação tirar o brinquedo das mãos dela, antes que engula uma peça.
            Batalhei um emprego de grumete. Navio cargueiro. Uma maneira barata de viajar. Tenho algum dinheiro, não o suficiente para comprar passagem. O dinheiro não é importante para viajar. Para ela, o que importa é a vontade. No meu caso, além dela, tenho impressão de que as pessoas ao meu redor tentam me intimidar, me prender, tornar a minha vida uma prisão. Não reajo, fujo. Talvez seja uma impressão falsa, apenas uma incapacidade de respeitar, após reconhecer o diferente. Prefiro idealizar. Conhecendo pessoas diferentes, na superfície, ali aonde reina: companheirismo, ideais elevados, ajuda humanitária.
            A minha família é católica apostólica romana. E ponto final. Contei para minha velha uma lenda chinesa da dinastia Qing. Da deusa Nüwa, a criadora dos homens. Logo depois da separação do céu e da Terra, resolveu tomar da argila amarela para moldar várias crianças à sua imagem e semelhança; ao se sentir cansada, pegou uma corda, embebeu no mesmo material e passou a balançá-la. Daqueles pingos caídos, criou uma miríade de homens. Os ricos criados na primeira leva, e os pobres, na segunda. Mostrei para ela os pontos de contato entre as nossas histórias, o lirismo oriental. E fui excomungado. “Jesus ensinou que é contra os planos de Deus a existência de duas categorias de pessoas: ricos e  pobres. Os bens são de todos, e quem tem mais deve dividir com quem tem menos.”
            Navegamos rumo a um porto na Califórnia. E, na superfície do Pacífico, consigo ver uma baleia vestida com um saco plástico na barbatana. Um marujo mais experiente me contou de um lixão mais ao norte com centenas de milhões de toneladas de plástico. Nos barcos pesqueiros, quando se passa a rede para plâncton, a quantidade de plástico é muito maior que a de animais. O plástico se fragmenta com a ação da luz do sol e os pequenos pedaços são comidos pelos peixes. Há  necessidade de ser muito inteligente para concluir que já estamos comendo plástico? E se os peixes morrem de anemia, com a barriga cheia de plástico, quando chegará a nossa vez?
            Conheci São Francisco na minha folga durante os jogos de Warcraft Series. Precisava relaxar. Cassandra, minha namorada, além de ser uma das melhoras jogadoras de cyber games, é alguém com quem a conversa se desenvolve naturalmente. A gente se entende muito bem, em todos os sentidos. Ela não tem nada de oriental, só a aparência. É gata, foi eleita a menina mais bonita de Macau. Nós convivemos na mesma plataforma. Como se o game saísse da tela e continuasse para sempre, real. Ela ajuda na estratégia. Treina comigo. Exige muito de mim. Fico pilhadíssimo. 
            Tive uma discussão estúpida com o americano. Não estou interessado em participar dos campeonatos esportivos pelos prêmios oficiais. Eu tenho uma legião de fãs. E a capacidade de gerar receitas fabulosas para a fábrica. Estimulo as pessoas a comprar o jogo e acessórios.  E recebo prêmios de alguns mil dólares? Não. Viajo o mundo inteiro, estou verde, sem vida. Eu gosto de jogar, mas sei que minha capacidade vai declinar com o tempo, não dá para manter a mesma performance. Conseguirei sobreviver até os trinta anos, no máximo. E depois? Ele ficou de pensar em uma nova proposta. Adiantou que só dinheiro de plástico, para não pagar mais impostos e coisa e tal. Cassandra me aconselhou a contratar um agente. Para não perder o foco, a paciência. O jogo.
            Em Los Angeles, vou jogar a final do campeonato com um chinês (SkY). Ele joga utilizando os “Humanos”, uma raça considerada predominantemente defensiva. Graças à sua capacidade de construir muitas pontes, moinhos e depósitos, aliada à tremenda quantidade de soldados, venceu com a agressividade tudo que é oponente até agora. Eu já passei por vários coreanos, estou acostumado com a rapidez deles. O forte do meu jogo é a malícia e a esperteza de atacar nos lugares mais inesperados. Graças a Cassandra, consegui a ficha completa dele. Os fatores além do jogo. A namorada dele não suporta o assédio das outras meninas, acredita que isso não é vida de gente honesta. Tem problemas de coração e não quer se submeter mais a essa separação absurda entre os mundos: quer um só para ela.


Essa narrativa seria impossível sem a ajuda de:
André de Leones; Mikhail Bulgákov; Contos sobrenaturais chineses (Márcia Schmaltz e Sérgio Capparelli);  Documentários da TV Cultura.