segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Histórias Possíveis n# 54






Devo acrescentar que os cidadãos fugiam uns dos outros

e que ninguém se preocupava com os vizinhos?

As visitas entre parentes, quando aconteciam, eram raras e feitas de longe.

O desastre pusera tanto horror no coração dos homens e das mulheres

que o irmão abandonava o irmão, o tio o sobrinho, a irmã ao irmão,

muitas vezes mesmo a mulher o marido.

E até – o que é ainda mais forte e mais e quase inacreditável

– os pais e as mães evitavam ir ver e auxiliar os filhos,

como se já não lhes pertencessem.

Giovanni Bocaccio,

Decameron,

Primeira Jornada ....(Continua)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Lágrima Retida






A lágrima insiste em sair. Vem das profundezas de um corpo hoje combalido, tenta furar o bloqueio que ele se habituou mostrar (será um orgulho bobo?), talvez para que o outro corpo não se sinta melhor, recompensado, pelo que fez ( para mostrar uma força que não existe? Ou existe apenas como fachada?). Vitrificado, ele segura firme, formando um lago interior composto pela água e pelo sal transformados em lágrimas, acumulado ao ponto de exercer uma pressão intensa no olho, tornando-o liquefeito e translúcido. Um simples assoprar de brisa o desaguaria. Assim, não haveria problema em culpar um cisco ou a polução da cidade. Enquanto ela está presa, coisas interessantes acontecem: uma piada antissemita ou racista ou machista; uma discussão estúpida com alguém, desaguando em uma ofensa; uma lategada no cão; uma briga de empurrões e pontapés, inadmissível sem ela; pode também se transformar na vontade de assistir um filme sobre o funcionamento de um grupo terrorista, como catarse. Tudo para esconder o medo que você está sentiu naquele instante. O medo até então desconhecido. Da conversa com um texto expelido por entre as vértebras de um amigo noticiando a loucura que acomete aqueles que conheceram da morte de deus à leitura do conto Bola de Sebo, pegadas interiores mostraram o caminho que elas percorreram. As fichas foram caindo dentro daquele corpo, transformado pela puxada na alavanca do caça-níqueis. A prostituição é um fato. Todo ódio contra as putas e desclassificadas vem do medo da comparação das mesmas posições, do exercício das mesmas atitudes, das recompensas com as mesmas moedas. Das trinta famosas moedas. Até então, o tratamento dispensado era o de pessoas de bem, daquelas que têm sentimentos nobres, porcos, mundanos e sublimes e, comem da nossa comida, enquanto têm fome. Satisfeita, voltamos ao nosso lugar: a indiferença merecida pelos violadores da hóstia consagrada. Estamos encarcerados, isolados, esperando o próximo cliente. A próxima venda deflagra a represa. O corpo acorda com a rotina do banho de tina. Nela a água suja e servida, que passeou por ele, ainda está lá, e, repentinamente, as mãos com vida própria, juntam-se e jogam punhados d’água suja no rosto, várias e várias vezes, em movimentos automáticos, irresponsáveis; parece que ele tem necessidade de puxar pra fora, com pancadas líquidas, toda a fieira de lágrimas retidas; extrair o tumor, aquela sensação inútil, pois, ficando lá, ficará como água parada, sementeira de vermes. Assim terminado o banho, ele se desfaz do vapor, passa a mão no espelho do banheiro, nunca olhado, e dessa vez serão dois pares se olhando, se confrontando, se aproximando. Aquela porcelana vitrificada se fissura, e se percebe que duas lágrimas pequenas e envergonhadas, escorrem pelos dois lados daquele rosto e se perdem nos pelos brancos do peito. Apressado, ele as enxuga. Que voltem. Que fiquem. Que se danem. A inútil inquisição vinda da noite dos tempos venceu e arrancou dele a confissão. " a fatal desorganização de uma existência solitária cujos sonhos desapareceram; e todos os nossos dias passados iluminaram aos tolos o caminho poeirento da morte”

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Eu faço vídeo.




Caminhamos para um túnel como aqueles que aparecem nos campos de futebol, para proteger juízes e jogadores quando ameaçados pelo tempo, autoridades, dirigentes ou torcida. A entrada é anunciada por um balão espetado no ar. Vários manobristas para guardar os veículos. Um bombeiro civil estava a postos para evitar qualquer dificuldade. Os seguranças paramentados como os participantes da festa: paletó, gravata e máscaras. A lembrança da associação criminosa foi inevitável, pela barba de alguns dias e pelo tamanho dos ‘meninos’. Há momentos em que as pessoas são valiosas.
O local da festa foi uma fábrica de sabão. Os encanamentos e as caldeiras estavam à vista, pintadas de amarelo. Hoje são objetos decorativos. As paredes foram descascadas para mostrar os tijolos de barro. O piso é de carpete. A iluminação vem do chão ou na altura do rodapé, dando um efeito fantástico, para quem olha. Cada participante ao passar pela faixa de luz produz um efeito fantasmagórico, existindo por alguns instantes apenas.
As pessoas, após pegar suas respectivas máscaras, vêm pingando como conta gotas através do túnel e descem à direita ou à esquerda para encontrar suas mesas. Estas são separadas por cores. Estamos no setor amarelo. No ambiente, predomina o vermelho, fios presos ao chão com balões vermelhos se movimentando, parecem corais no recife, monótonos, formando colônias. Mesas são estações de comidas. Um grande prato redondo, dividido pelos signos do zodíaco, em cada porção, o prato correspondente: Áries, grão de bico aretino; Gêmeos, testículos ou rins; Peixes, ruivos. Os doces dos mais variados tamanhos, formas e cores, completariam aquela ambientação marinha, não fosse um enorme bolo de aniversário, réplica coberta do coliseu.
Lá fora ruge o vento, ameaçando tempestade. Dentro, rugem o rap, o ‘funk’ e o samba. As pessoas se divertem, dançam, não conseguem conversar. Não há tempo, tipo ou tema.
“Minha mãe quer que eu estude, meu pai quer eu trabalhe/Minha vó quer que eu me mude, mas eu já fiz o que pude/Já fiz teatro experimental, oficina de poesia marginal/Seminário de meditação transcendental, curso de sanduíche natural/Eu faço vídeo! Vídeo!/Eu faço vídeo!/Vagabundo é a puta que pariu!”
Somos servidos incansavelmente. Telas gigantescas mostram imagem de passeios, viagens, caçadas e safáris. Habitantes de países distantes com aquela fome milenar, crianças fatigadas, deitadas com a cabeça ao chão. Sombreiros, ossos, tatuagens, dentes, olhos, moscas, chagas, tintas, penas.
Em um dos cantos do salão, algumas pessoas estão sentadas no chão, outras em cadeiras, e algumas em cubos. Estão estáticas, nuas. São modelos-vivos. Três homens e três mulheres com idade variada, desde sessenta e oito anos até trinta e um. Acostumadas a ficar parada por uma hora, com direito a dez minutos de descanso, encaram esta tarefa com muita tranquilidade, pois podem se mexer à vontade. “Não ficamos peladas, apenas posamos nuas.” O calor, as máscaras, a indiferença, o ambiente, tudo colabora. “Nós aprendemos a tirar a roupa quando percebemos que ninguém, de fato, nos olha.” Entretanto, falta-lhes naturalidade: elas não se movimentam, saem de uma pose para outra geometricamente.
Os banheiros são cápsulas espaciais. Paredes de vidro em todos os lados, as divisórias são translúcidas. A única parede que reflete o próprio rosto é a do espelho diante do lavatório, um cone em que a água floresce, na temperatura exata, sempre que alguém se aproxima. Ao lado dele, uma caixa com comprimidos. Os legais, para as mais diversas finalidades: enjoo, laxantes, analgésicos, antiácidos, preservativos dos mais provocantes modelos, das mais exóticas procedências; os ilegais, dedicados às viagens da excitação, do medo, da angústia, do tédio, da aceleração, são azuis, brancos, pó, fumo e narguilé. O mais completo paraíso artificial que se pode imaginar. Água, muita água.
As telas formam um nicho natural ao centro. Sob elas, um palco fulminado por jatos de luz que vêm de baixo, faiscantes, borbulhantes. Todos conversam com o corpo. Frenéticos. Compondo também a paisagem marinha, como aqueles peixes-papagaios, ouriços, estrelas e esponjas. Uma energia sobre-humana se condensa naquele ambiente, a eletricidade. O rap penetra o âmago de cada um, os gestos são poucos, díspares e dessincronizados.
Estava no Alto da Boa Vista, a Patamo me parou para uma revista
Queria me levar por vadiagem. Eu disse: "Eu não faço curta-metragem"
Entrar no camburão foi humilhação prum cara com a minha formação
Aquela caçapa tava lotada de vagabundo que não faz nada
Eu faço vídeo! Vídeo! Eu faço vídeo!
Vagabundo é a puta que pariu!
Desço a escada para ver o funcionamento da iluminação. Um ambiente sóbrio, amplo, escadas de ferro, piso nu, janelas grandes e fechadas, jogos de sofás, poltronas largas, com braços dobrados sobre si mesmos, sem encosto, largas como camas, jogadas aqui e ali. O branco dos estofados e o cinza do piso. Encontro uma série de casais. Do mesmo sexo, de sexo diferente, de sexo indefinido, tomando por base as posições. Passeio por lá, até encontrar a casa das máquinas. O bombeiro civil está por lá. Um rapaz magrinho, com um sorriso muito grande, cujos dentes mostram sinceridade. Conversamos um pouco. Ele ficou quatro anos servindo o exército, gostou muito. Mas, infelizmente, deu o seu tempo e foi obrigado a dar baixa. Aeronáutica. Trabalha de bombeiro, “civil, não militar” – explica. Mas sente saudades dos companheiros da tropa. Guarda todo o dinheiro que recebe para fazer um curso de mecânica de aviões. Mecânico especializado. “E as festas, não dá vontade de participar?” – pergunto. “Que nada, já me acostumei, pra mim é um trabalho, paga bem, e é só.”
“Meu pai exige uma definição, quer que eu escolha uma profissão
De preferência em computação, mas eu não crio sob pressão
Todos me chamam de encostado, só como e durmo e fico parado
Ninguém percebe que eu tô concentrado, criando um vídeo pra ser premiado
Botei meu vídeo na mostra da folha, só tinha careta e jurado bolha
Ninguém entendeu minha proposta, Matinas Suzuki achou uma bosta
Eu faço vídeo!”
São quatro horas da manhã quando chega o convidado principal. Cantor de muito sucesso duas décadas atrás. Alto, já foi magro, hoje apenas anima a plateia, e canta dublando a própria voz. O peso não permite fôlego para gingar e cantar. Misto de Elvis Presley com Lindomar Castilho. Deixa a platéia frenética, principalmente a feminina. A dona da festa, afogada em um vestido tulipa vermelho, se despiu dançando à sua volta, como se o ídolo fosse o poste. O repertório variou de Trini Lopez, a Ney Matogrosso, passando por “Menino da Porteira”.
Da plateia surgiu um dançarino. Ágil, de roupa negra e prateada, colada no corpo, com uma elasticidade alucinada, repetia a melodia através do corpo, cantava a letra com os pés e as mãos. Olhos faiscantes. Elevou a temperatura. Diabólico. Assumiu o comando da festa, fez com que os casais parassem de se amar, os banheiros se esvaziaram, homens retocaram a maquiagem e apareceram, alguns esquecidos, com os narizes brancos, garçons e garçonetes se confraternizaram, unindo o mais novo com o mais velho. Ele, de repente, raptou e dominou a patroa, o corpo somente coberto com alguns pedaços de pano. Dançaram até a exaustão. O bolo de aniversário é descoberto, dele voaram rolinhas. Apavoradas, procuram a saída.

Perto do final, uma labareda se acendeu, o cheiro ácido de queimado se espalhou juntamente com o pânico. O bombeiro assumiu o comando e salvou a mulher. Busca o cantor. Corre-corre. Uma modelo nua tratou de arrastar o dançarino e tentava sem sucesso tirar-lhe a máscara. Não era apenas máscara. Era um traje colado no corpo, subia pelo pescoço até o rosto, formando uma peça única. Após deixar a vítima em segurança, ajudou a tirar, rasgando, a máscara do homem. Mais de sessenta anos. Rosto descarnado, fiapos de cabelos brancos colados ao crânio. Dançarino profissional, ele vive da renda da mulher que posava nua por setenta reais a hora, mais comida. Mascarou-se para dançar e viver momentos de glória. Foi o único que não deu gorjeta ao valente soldado do fogo. Ele recebeu gorjeta de todos os presentes que ajudou e conseguiu uma féria bem maior do que previra.