quarta-feira, 24 de março de 2010

O deserto silente.




                                              ... Não há no orbe uma
Coisa que não seja outra, ou contrária, ou nenhuma.
Jorge Luiz Borges

Sábado com sol. Nesse outono esquecido, convenci meu filho a caminhar pelo parque. Logo na entrada, um ciclista equipado com sua bicicleta nos ultrapassa, lépido. Visitamos o Planetário, assistimos ao documentário sobre as estrelas, Via Láctea, Andrômeda. As galáxias são bilhões de estrelas, nebulosas compostas de pó, girando em torno de um buraco negro. Algumas parecem espirais, em suas órbitas colidem com outras, e se refundam, diferentes da anterior. No espaço sempre acontece algo. Esse movimento é violento, rápido e belo. Demonstra uma harmonia respirando junto conosco, fugazes observadores. Adquirimos a nossa esquecida dimensão. A colisão é um fator fundador da espécie humana. Formador e destruidor. Um asteróide com dez quilômetros de extensão atingiu a Terra, formou o que hoje é o Golfo do México e extinguiu os dinossauros. Sem essa destruição, dizem alguns cientistas, não haveria ambiente para o desenvolvimento dos cordados. 

Saímos. A luz nos invade, e esprememos os olhos. (Desde pequeno, gosto de ouvir a Dança Ritual do Fogo. Meu pai era música. Ele a ouvia sem parar, depois de se livrar do trabalho, quando conseguia silêncio. Era proibido mexer na vitrola, estando ele presente ou ausente. A continência era a cláusula pétrea. A agulha, delicadíssima, poderia se quebrar ou arranhar o vinil. Foi o meu primeiro desafio: mexi. Pronto. Repeti, cheio de dedos, todos os movimentos vistos milhares de vezes, e liguei o aparelho. Fiquei observando entre admirado e ansioso a lentidão do movimento do braço: primeiro, ele se deslocava para fora do disco, dava um suave sobressalto e se voltava para dentro, até o ponto exato do início dos sulcos, e então descia suavemente. Cerrei os olhos para ouvir com atenção. Ninguém. Nada. Silêncio. E ouvi, após o acorde inicial, o detonar de algo se quebrando. A cabeça se desintegrou em dezenas de pedaços.) 

Meu filho apenas andava e observava. (Ficamos muito tempo separados, depois do falecimento da mãe. Tânia foi um caso de amor doido e doído. Tanto tempo namorando, brigando, voltando, separando, até casarmos. Eu trabalhava como torneiro mecânico e pensava adorar meu trabalho, produzia minhas peças, segundo o projeto, sem surpresas, a fantasia se limitava a dois mícrons de diferença, o limite da tolerância entre a peça útil ou inútil. Quando a encontrei, senti um desarranjo tremendo. Tudo se mexia. Ela, posso dizer, era o oposto. Dava-lhe um trapo, e dali ela engendrava uma jóia. Sonhadora, extrovertida e com muitos amigos. Apaixonava ora um, ora outro, ora vários. Tinha muitos amigos. Nem sei dizer como nos atropelamos. Foi por meio de um amigo, com quem depois ela me traiu. Sim, foi isso. E eu? Me vinguei com a futura cunhada.)
- Como andam suas coisas, pai?
- Bem. Com os problemas de sempre, filho. E contigo?
- Fiquei com uma depê em Microeconomia.
- E a vida? Como o tem tratado?
- Normal.

- Filho, depois que casei com sua mãe, ela se transformou. Deixou tudo de lado, limitou suas opções a mim. Eu era muito ciumento e inseguro, e ela se encabulou. Deixou de representar, de dançar, de criar, e engravidou. E veio você, como ela, criativo e ousado. O mesmo interior, sem tirar nem por. A sua aparência é igual à minha. Mas a agitação é a dela.  A nossa única ligação era  gostar da casca dura, quase queimada, do pão. Fiquei com raiva disso, não tive coragem para compreender a sua pressa, agitação. A desobediência exacerbada de uma criança. Tinha ciúmes de você. A Tânia se tornou monótona, insegura, e o mimava, até que nos separamos. Eu não gostava mais dela. Tinha medo de vocês dois. Procurei outra mulher. Séria, trabalhadeira e metódica. Alguém que percorresse o caminho escolhido, sem desvios. Buscando a peça perfeita, esculpida e encarnada.
- Não esquenta, pai.

- Hoje, estou só. Faz tempo que não nos vemos. Sinto sua falta. Queria conversar mais com você. Eu conversei pouco com o meu pai. Ele também tinha a nossa cara. Esse cabelo fino e grudado, essa cara talhada a machado. Dele eu me lembro da frase: “Se não ganhar dinheiro, você não terá amigos e mulher. Cuide-se”. Será que eu conseguirei ser diferente dele?

Passamos por um grupo fazendo tai chi chuan. Liderados por um mestre oriental, movimentavam-se ao ritmo do vento balançando as árvores. Todos os galhos, braços, folhas e cabelos em uníssono. Emanava daquela lentidão uma força magnética, parecia impossível fazê-los parar, e nos atraía.
- Pai, eles não lembram aqueles guerreiros de terracota? O chinês nunca é singular, é sempre coletivo.

- Eles começaram o seu império pela força, dominando todos os vizinhos, fazendo o movimento das estrelas, anexando ou aniquilando os adversários. Crônica escrita e violenta da nossa espécie. A violência me fascina. Aquela coorte de guerreiros, um cúmulo, torna a morte coletiva, movimento. Isso anterior à razão. Estou certo de que ela é parte indissociável do homem. Violência e sexo são instintos natos. Todo o pacifismo é inútil, um cosmético, filho. Somos sobreviventes de uma matança de milhões de homens. À medida que aumentamos de número, a violência também aumentará, buscando equilíbrio. Nada pode ser feito. 

Andamos contra a corrente humana. Ao lado, sanfoneiros, rapazes fazendo embaixadas com bolinhas de tênis, pintores borrando suas telas, meninas atléticas olhando para os lados. Levo um tranco e fico sem a carteira. O ciclista nos ultrapassa novamente, suando em bicas, o cromado da bicicleta irradiando o sol.
Encontramos uma sósia perfeita de Tânia. Jovem, alegre, com uma cesta de vime, sobre a toalha alva, de onde oferece sonhos, polvilhados de açúcar, para as crianças que passeiam pela beira do lago. Sem perceber nos aproximamos dela. Fascinados pela coincidência, sentamos por ali.

Mostra a capa do seu livro: Stendhal. Logo estabelece uma conversa sobre Fabrizio Del Dongo. Uma história incrível, a da participação em Waterloo, como soldado. Apesar da movimentação das tropas e dos carros de combate, ele não conseguiu imaginar o que estava acontecendo, qual o papel daquela batalha ouvida ao longe. Considerava Napoleão uma estrela de primeira grandeza; alistou-se sem o consentimento do pai, pedindo ajuda à tia influente. O seu maior interesse era encontrar-se com ele. Nunca soube do acaso que determinou a ruína de seu herói. O homem tem tanta ilusão. Logo após esse episódio, conta de uma mulher apaixonada que perde seu marido para a Guerra Franco-Prussiana. Envilecida e humilhada, ainda em boa forma, consegue infectar de sífilis todo o Estado Maior prussiano, às custas de ser rejeitada por todos os concidadãos e pelo próprio marido, que sobreviveu a ela. Ela os atropelou e combateu a seu modo. Quantos pensamentos imperfeitos, não? “Desde o amanhecer haviam combatido pela Inglaterra e por seu dilatado império futuro e não sabiam disso.”
(Fiquei olhando, aterrorizado, as peças sobre o disco de vinil, rodando. Meus dedos grossos não conseguiam manejá-las. Nenhuma ferramenta para me auxiliar. Passei toda a tarde arrumando, ajeitando, encaixando. A minha vitória era fazer com que as peças ficassem juntas, de forma a parecer em ordem. Consegui, um pouco antes dele chegar. Coloquei o braço no repouso. Depois da janta, subi para meu quarto, até ouvir  a praga que ele soltou.)
Visitamos a exposição vinda de um país do norte da África: “O deserto não é silente.”
- Esqueci de contar, pai, vou ser guia no deserto.

Ao final do dia, observo que ele está me olhando. Procurando Macário Smerdiakov, seu pai? Estamos sentados à beira do lago, o perfil negro de um pato se forma ao atravessar o sol poente. Sobre nós, um galho seco com apenas uma pétala branca.



Ao sairmos, encontramos o ciclista. Coberto por uma capa de papel laminado, a bicicleta partida em dois pedaços. Foi atropelado. Nenhuma vela acesa. Apenas um guarda-sol aberto protegia o corpo, talvez simulando um beijo.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Mentaculus




Mulher recebe por engano 20 quilos de maconha pelo correio.

Atônita e com receio de ser acusada como cúmplice caso chamasse as autoridades, preferiu vender a mercadoria e consumir uma pequena parte. E com o resultado do seu trabalho transformado em dinheiro, foi à procura do remetente. Tencionou apresentar ao remetente distraído a prestação de contas, pagar pelo que consumiu e, quem sabe?, receber uma gratificação pelo gesto.
A venda não causou dissabores. A quantidade era muito pequena diante do número de pessoas que a procuraram. Filas se formaram, chamando a atenção de seus vizinhos, a quem explicou, em conversas banais, ter publicado um anúncio em um site de relacionamentos dizendo-se honesta, bonita, com idade de 25 a 37 anos, solteira, empregada, com salário anual de cinquenta mil dólares e inclinação sexual indefinida. Evitou colocar foto em virtude de sua timidez.
Todos os esforços na busca do remetente se mostraram inúteis. Ninguém o conhecia. Passou alguns dias naquela cidade, tentando obter pistas. Alugou um seriado, por indicação, chamado Weeds.
Pediu demissão do emprego, mudou de cidade e, utilizando os contados feitos por ocasião da venda do pacote original, tornou-se uma fornecedora habitual e discreta do produto.
Todos os dados pessoais foram omitidos a pedido da entrevistada. Ela também pediu para que deixássemos claro que ela nada recebeu para conceder a entrevista. Indagada se aconselha o consumo da erva, pediu a transcrição integral da resposta.
 “Não aconselho. A desordem psicológica, alimentar ou afetiva desaparece. O seu pensamento é um Gavião de Penacho, e tudo fica distante e sereno. Simurg. Compreende-se o Gato de Schröndiger. Você descobre que tudo é e não é. Sente o ruído finíssimo da chuva tocado pelo Kodo, e milhões de neutrinos atravessando seu corpo. Andar vestida ou despida não faz diferença. Oi, Teddy! O contato humano não é mais hostil. O vazio dá muito medo. Volto à infância. Quero mandar meu abraço para o Farid Attar.”
Homem perde controle de veículo enquanto fazia sexo e destrói casa.
O casal, morador do condomínio Pomar, saiu da cozinha e foi para a sala de estar conversando sobre o conteúdo do relatório final da pesquisa a ser enviado para cientistas britânicos. Um grupo de aproximadamente quinhentas pessoas concordou em avaliar o seu desempenho sexual mediante o uso de preservativos de tamanhos inadequados. O quanto isso atrapalha, ou não, a relação sexual. O marido é engenheiro e elaborou uma planilha com todas as tentativas efetuadas, a data, a hora, bem como o tamanho da camisinha utilizada e o resultado final, se o orgasmo foi atingido, pleno, parcial ou falhado. Se houve ou não irritação da genitália do marido, ou da mulher, ou de ambos. Capacidade de deslize, sensibilidade.
Nesse momento, ouviram um estrondo, como uma pancada e um rangido de coisas se partindo, e correram em sua direção. Encontraram a cozinha e a lavanderia inteiramente destruídas. Dentro, uma caminhonete Dodge soltava fumaça. Como se estivesse com raiva de estar ali. Abriram a porta. Encontraram um casal. Desmaiado. Dispostos a encontrar os ferimentos, interromperam a busca, boquiabertos.
Não desmaiaram com o acidente. Estavam parcialmente nus. Da cintura para baixo. Em posição de repouso, após o ato. Plácidos e satisfeitos. Despertaram às custas de água fria. Tomando conhecimento dos danos causados. Sem demonstrar inibição, os jovens, aparentando vinte e cinco anos, relataram sua aventura. Tinham acabado de assistir ao filme Crash. Gostaram muito, principalmente das cenas de sexo dentro dos automóveis e das perseguições e acidentes. Queriam saber se o prazer seria, de fato, maior do que o normal. Escolheram correr pelas ruas do seu condomínio, por questões de segurança. Declararam não imaginar que o prazer fosse tão grande ao ponto de fazê-los desmaiar. Não sabiam informar se a ingestão de álcool contribuiu para o efeito. Informaram que os pais se responsabilizariam pelos prejuízos: cinquenta mil dólares. O rapaz foi preso, acusado de dirigir alcoolizado.
Diante do estado em que ficou a residência o casal se transferiu para um hotel próximo. Lá, o marido tentava terminar o relatório. E chegou à conclusão: o tamanho é fundamental. Os fabricantes deveriam alterar a classificação do produto: de pequeno, médio, grande, super. Para: grande, super e gigante. Perguntou a opinião da esposa: “Timing é tudo”.
Raposa no galinheiro.
Veio de Basildon, Essex, a notícia de um galo chamado Dude. Ele se livrou de uma raposa quando de sua última e sorrateira visita ao galinheiro. Ela, por sua vez, era reincidente, invadiu o galinheiro no último Natal, chupando todos os ovos e matando uma galinha. A proprietária, Miss Marple, 43 anos, logo se esqueceu do incidente; mas o galo, não. Hoje ao retirar os ovos para o café-da-manhã, percebeu a confusão. O poleiro, em forma de tábua, caído no chão, e sob ele o corpo inerte e frio da raposa, coberta de sangue, da cabeça às patas. O local não foi invadido, não há nenhum vestígio  estranho, tudo em paz, exceto as marcas das diversas bicadas na cabeça do animal. E concluiu: “Foi o meu carijó, de quem já levei várias corridas, com a ajuda das meninas, o autor do crime”. 
O fato, divulgado no jornal do Metrô de Londres, foi lido por uma diplomata brasileira, na cidade em visita de negócios. Ela tinha acabado de participar, vestida de baiana, do debate no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Preocupada, cuidou de fazer contato com a editoria do jornal para conseguir alguns números extras da edição. Queria enviá-los aos eus superiores. E também para o marido, torcedor do Cruzeiro.
Vocês viram La Fontaine?
A revisão das fábulas parece não ter fim.  Notícias dando conta do contrato de milhões, assinado pela cigarra para as próximas temporadas na Broadway, turbaram o ambiente no formigueiro. As formigas devotadas ao trabalho, principalmente as operárias, confessam a tremenda humilhação diante das outras pela ordinária preocupação com o inverno, com os grãos e a economia para os tempos de escassez. Apesar das acusações de exagero contra a imprensa, a cigarra nunca mais apareceu para pedir abrigo. As conhecidas amigas do trabalho estão reticentes no trabalho duro, pensando em fazer um curso de canto, dança ou mágica.
Enquanto isso, na cidade de Dongguam, Província de Cantão, Xiang Jun, 26 anos, está desempregado e seus esforços para encontrar trabalho resultam em nada.  Gastou suas últimas moedas fabulando uma solução. Após beber uma boa quantidade de aguardente de arroz, subiu em uma torre de fios de alta tensão e ali dançou como equilibrista. As autoridades se apressaram a desligar a energia, e durante quatro horas tentaram convencê-lo a descer de lá. Conseguiram depois de prometer conseguir trabalho em um formigueiro local. Satisfeito, ele deixou o corpo cair sobre um colchão cheio de ar.  A imprensa local (Guandong Daily) não noticiou o fato.




segunda-feira, 1 de março de 2010

Singuratat





“Sei que sou totalmente indigno de opinar em matéria política,
 mas talvez me seja perdoado acrescentar que descreio da democracia,
 esse curioso abuso da estatística.” J.L.Borges



Chego após conseguir me livrar da cidade congestionada. Um dia exaustivo, calor, umidade, pressão, ansiedade, interesses, negócios. Solto o colarinho, tiro a gravata e o paletó, e os coloco no devido lugar. Estranho o ambiente arrumado, as crianças na casa dos amiguinhos, o inabitual jantar prestes a ser servido. Trocamos beijos de boa noite. Elena está vestida de preto, em contraste marcante com sua pele muito branca. Lembra-me daquela que conheci.
Trouxe um documentário para assistirmos: Singuratat. Abrir a janela, esquecer dos meus problemas.
Conta a história de um casal e sua vida em um país europeu antigo, ex-colônia do império Romano, pobre, na região dos Cárpatos. Ele, filho de lavradores, com pouco estudo e muita força de vontade, subiu na hierarquia do poder graças ao seu senso de oportunidade. Ela também veio do campo. Frequentou por alguns anos o ensino fundamental, destacou-se em bordado.
Quando surgiu a chance de conduzir o país, ele se apresentou. Trouxe consigo a esposa, parentes, e amigos.  Administrava a nação como a sua casa. O momento econômico era favorável e o inimigo estrangeiro estava afastado para sempre. “O sucesso seria dividido apenas entre nós, e ninguém mais.”
Usou de toda a sua energia. Não se intimidou diante das dificuldades e as ultrapassou, passando por cima de todos que ousassem divergir de seu pensamento. Construiu uma rede de informações; contratou os melhores poetas, artistas e engenheiros. Encenou muitos espetáculos, contando a sua visão peculiar da História. Lembrou de reis e lutas o passado. Deixou que o chamassem de Pai da Pátria. Exilou os dissidentes. Tratou de construir e de comemorar. Erigiu palácios e distribuiu moradias. Sagrou uma comunhão eterna. Acumulou fortuna. Graças ao tempo em que trabalhou como secretária em uma indústria química, sua mulher era tratada, por exigência dele, como cientista de renome internacional. Os revisores eram punidos por qualquer erro de grafia nos seus nomes. Controlava toda a programação da tevê, imprimiu um minucioso manual das cenas, ângulos e situações permitidas. Governava por meio das imagens.
Espalhou o medo. Todos tinham medo de falar, de contestar, de apresentar qualquer sugestão. A liberdade se reduziu aos bilhetes com pedidos de casamento colocados nos bolsos dos paletós pelas operárias da indústria. Obedeciam-no submissos. Cada concessão era um pedaço oferecido pela consorte. Seus pedidos não pararam. Ao se reeleger, recebeu um cetro dourado, obra especial de seu joalheiro.
Depois de vinte anos de prosperidade, como sempre, as coisas mudaram. Toda a produção passou a ser vendida para pagar as contas. O dinheiro escasseou. Havia pouca comida. A quantidade de insatisfeitos aumentou. Ele foi para o estrangeiro e pediu dinheiro emprestado mostrando seus planos mirabolantes de sucesso no futuro. Iniciou o processo de compra de aviões de um reino distante. Para tal, exigiu ser recebido com a máxima pompa oferecida a um Chefe de Estado. Desfilou imponente perante multidões. Sua mulher foi laureada pelo Instituto Real de Química. A negociação fracassou quando ofereceu produtos agrícolas como pagamento.
Recusou todas as sugestões de mudança. Ignorou as deserções. “Todos traidores, vermes oportunistas.” Era comum o “suicídio” do responsável.   Os subordinados não mostravam os relatórios desagradáveis. Considerava-se o pastor de seu povo, e compreendia ter chegado a época das pragas do Egito. Tinha o filho, um bêbado e jogador inveterado, como sucessor.
Assistiu naquela noite à história do presidente que tanto admirava. Repetiu várias vezes a cena do cortejo na Dealey Plaza. O conversível deslizando solene. Os acenos para o povo, exatamente como ele fazia. As bandeiras.  A emoção transbordante daquela união entre o povo e o pai. Sentiu fisicamente o amor daquela esposa se jogando para trás a fim de defender o marido. A bala que esmigalhou a cabeça dele restou como um detalhe menor.
Ninguém ousou contestar a sua decisão de reunir o povo. Anunciar suas ordens. Prever um futuro brilhante. Pregar paciência e luta. Na praça de costume, o palco para seu discurso transmitido ao vivo para todo o reino. E, no transcorrer da transmissão, uma confusão prendeu a sua atenção e brecou sua fala. Viu o paraplégico se levantar da cadeira de rodas. A multidão gritava palavras de ordem e quebrava a Ordem. Aquele fragor se dirigia a ele: “Liberdade, liberdade”. Alguém cochichou: “Eles tomaram o prédio”. Ele e a mulher fugiram em um helicóptero, obrigando o piloto a decolar sob a mira de um revólver.
O casamento estava desfeito. A população dominou as instalações da tevê estatal.  Retirou as câmeras do almoxarifado e passou a gravar todos os seus movimentos. O poder se estilhaçou. Os rebeldes encontraram escondido o Primeiro Ministro e o colocaram no ar exigindo, segundo as leis vigentes, que renunciasse. “Nós queremos ficar na legalidade.” Mostravam cenas de soldados se abraçando aos manifestantes. Invadiram o prédio do comitê central e jogaram pela janela centenas de livros. Queriam encontrar os simpatizantes do ditador. Os integrantes da polícia secreta. Quase ninguém aparecia. Todos apresentavam documentos de identidade,  provando inocência. “São documentos falsos”, ouvia-se uma voz  sem rosto. Encontrou-se o filho do casal. Estava com a testa ferida, um filete de sangue, o olhar esgazeado, parecia não compreender o que estava ocorrendo.
O julgamento da dupla foi transmitido ao vivo. Apesar de nervosos, ele sempre aquietava a mão dela com a sua. Queria ter a última palavra, o último argumento. Mas era necessária a imagem; a palavra perdera integralmente o seu valor de informação, de transformação. A imagem reinava soberana. A imagem e a bala.
Ambos foram executados, a câmera conferindo as identidades dele e dela, em close, mostrando os procedimentos adotados para a acomodação dos corpos aos respectivos caixões. “Talvez aqueles sacrifícios fossem capazes de reconstituir aquele corpo quebrado, devastado e nu?”
Logo após o término do documentário, a esposa se aproxima, senta e diz: “Nicolau, precisamos conversar”.