quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Dora Maar




"Bem, agora que nos vimos, um no outro”,
disse o Unicórnio,
” se acreditar em mim, vou acreditar em você.
Feito?"
Através do Espelho e o que Alice encontrou lá,
Cap VII, Lewis Carrol



Sentado na posição de Lótus, diante da planície, um interminável deserto, não fosse um quase regato, riacho Amele. Diante dele, à beira de uma cacimba, as fieiras de tijolos arranjadas sobre o círculo perfeito, feito à mão livre por Giotto, tempos atrás. Não. Ele não se serve daquela água que caiu, gota após gota, do céu ou das calhas, para beber. Comida e água são aquelas dos viajantes, jamais do rio, que param ao ver a cena, sentam, contemplam e alguns oferecem dividir, e ouvem as histórias do homem.
Emanam do poço gotas translúcidas, subindo no caminho da evaporação por entre o éter. Apesar de microscópicas, quando as observamos com atenção, vemos dentro delas, seres animados e inanimados. Em seguida, descreve uma tela de cristal com páginas de palavras fotografadas. Chama a atenção dele e lê: “Poço. Terra profundamente cavada em redondo, e guarnecida de pedras, donde a água, ainda que manancial, como a de fonte, não corre, e ainda que parada, como a da cisterna, não mendiga dos telhados a gotas que caem, mas na sua própria prisão tem todo o seu cabedal. ... Cavar um poço na margem de um rio, era o adágio com que os Gregos significavam a necessidade de quem faz qualquer obra inútil, e supérflua. Brigar com cães em um poço, era outro adágio, com que também os Gregos significavam o trabalho de quem lida com gente impertinente, de que se não podem desembaraçar, Poço. Puteus.”
Os homens são os que sobem mais rapidamente, quase sem tempo de parar a não ser que vejam aqui algum comerciante e sendo assim, sempre encontrarão tempo para fazer negócios. A parada se chamará, doravante, amizade. As mulheres ao subir giram o pescoço em torno do tronco, buscando alguém e, como os peixes, conseguem controlar melhor a velocidade da subida ou descida, não raro são atraídas por alguém, naquele estranho oásis, pela pose, companhias, aparência ou algo inexplicável. Dizer que o asceta é ouvinte e observador minucioso? As crianças sobem num ritmo errático e frenético, seu percurso lembra o das moscas varejeiras, com súbitas alterações na rota e ao final ficam paradas, imóveis no ar por segundos, sem aviso prévio. Os animais veem de ordinário, seja dia ou noite e são de vários filos. Cordados domésticos ou selvagens. O contato é para os domésticos uma proposta de troca da caça pelo abrigo, e, para os demais, a visita é furtiva, solerte ou parasitária. Passam agentes de toda ordem e inanimados.
Tamás Tomek, esse é seu nome, contou dos viajantes que conheceu. Até hoje nenhum conseguiu ver essas bolhas, nem subindo, nem descendo, muito menos objetos, sequer a cisterna. Ao fazer a descrição da situação, os viajantes parecem se incomodar com aquela insanidade, e, depois da refeição, raramente a história conserva o fôlego para uma segunda rodada, e eles se vão, meneando a cabeça, exibindo um sorriso de canto de boca, mas com uma rapidez sensível aos olhos. Enquanto conversa com os visitantes, ele explica, também faz contato com os que estão naquelas ampolas. Ele prefere os de língua estrangeira, pelo contato duradouro, fruto do tempo que levam para ajustar o diálogo, o fôlego e a compreensão, para além do som e do tom. Em especial aos marroquinos, eles falam árabe, francês, inglês e espanhol. A conversa passeia por todas as línguas. As palavras são escolhidas com a ajuda de uma sintaxe particular do momento, às vezes com simples gestos. Conta histórias dos animais domésticos. São os mais afáveis, sempre nos julgam úteis ou benéficos. (... um deles estava a jogar pôquer, e ganhava sempre do homem. Uma mulher, ao observar a partida, disse: “o cão joga bem, mas não é perfeito, ele balança o rabo quando tem boas cartas”.) Relata de outros organismos agindo como as artimanhas da noite que penetram as artimanhas do dia e após invadir as células do seu corpo, se espalharam feito o fogo original e criador, replicaram-se e alimentaram-se do próprio calor até encerrar seu ciclo; deixaram-no com uma coxa de prata, que não teve ainda oportunidade de mostrar a ninguém.
Ele, o só, apresentou-se como sucessor de Dora Maar, a façanhuda, que conseguiu a proeza de viver dentro de um desses globos por muitos anos, junto com um espanhol, que pintava a dor, e quase não se sentava mais aqui, a não ser por alguns momentos em que a parede de sua partícula de névoa se rompia. Mas, graças a sua habilidade extraordinária, o ambiente se regenerava e ela conseguia entrar e sair repetidas vezes, sem destruir aquele equilíbrio instável, um etéreo labirinto. (Ela conseguira o primeiro ingresso manejando seu canivete aberto e pontiagudo com a mão esquerda, mostrando a lâmina saltitante e rápida, por entre seus dedos abertos da mão direita vestida com a renda da mitene deixando as unhas rubras de fora. Nem sempre acertava a mesa e se magoava. Chorava. O homem que se tornou seu, observava atentamente se aproximou e pediu a luva manchada de sangue como presente, e disse: “Foi uma linda exibição e um belo gesto.”).
Aqueles que falam a sua língua têm um contato mais fácil e eficaz, os assuntos parecem compreendidos com maior clareza. As palavras são jogadas de lado a lado, um jogo que adquire velocidade e fluência, parece ser uma promessa de felicidade ofertada pelo pingue-pongue. A promessa é o convite para dentro da bolha. Lá dentro tudo é mais faiscante, como cristal sob a luz, até o instante em que homem utiliza a palavra proibida. Foi falada. Terminado o impulso daquele ar no pulmão, após ele percorrer a faringe e passar pelas cordas vocais, atravessar a boca e atingir o ar exterior, soando como a palavra de Poe, bate na parede e estoura. A palavra é a ponta que rompe a bolha e cria estrelas e somente estrelas. Ela continuará levando quem, ou o que estava, dentro dela, e o observador voltará ao posto à beira do buraco. O centro daquela cena não pode contê-lo. Foi assim o que ocorreu em determinado dia com Dora.
Depois disso, Tamás quedou-se ali observando, até encontrar a mulher que o possuiu. Passava bem longe, enigmática. Ficava em seu ambiente, calada, não tomava conhecimento dele. Não se aproximava, nem subia ou descia; tampouco conversavam, apenas mostrava seu corpo, seus homens, seus amores. Esqueceu-se de tudo para olhá-la. Encheu o seu peito. Usou uma tesoura para magoar seus dedos, sem sucesso. Lastimou sua mão, a dor causou prazer. Ele forçou sua aproximação, até que um olhar autorizou sua entrada. Sentaram-se frente a frente. Joelho contra joelho. Ela cobriu seu corpo com um tecido fino e ofereceu-se. As mãos de Tamás se aproximaram, hesitantes, e pararam a milímetros de distância da pele, trêmulas, suadas. Não houve propriamente o tato, apenas a impressão, sensação dele. Foi emoção suficiente. A ansiedade para usufruir daquela felicidade o inundou como um vírus e se alastrou arrastando tudo dentro dele, remexendo líquidos, fluídos, acelerou a corrente sanguínea, atingiu uma velocidade alucinante, o calor o queimou até a ebulição e procurou, desesperado, o canal para sair. A corrente se fez fluxo e escapou para o mundo exterior. Borrou; espirrou; empurrou para adiante o oceano, piracemou. Ela percebeu o que havia acontecido e disse: “Amor é isso. Agora você já sabe tudo que deveria saber.” O ambiente se estilhaçou. Ele saiu violentamente. Apenas se lembra que abriu suas veias em uma bacia de água morna.
Conheceu Philippe Petit. Pensa agora em convidar o equilibrista, para ocupar seu posto. Não o quer mais, vai se fundir na areia, desaparecer. Petit não mostra seu pensamento por meio de palavras, mas com atos. Assim como o jogador profissional de cartas, ele não fala, ele apenas joga. Uma nova era será inaugurada. Mostrou o seu equilíbrio sobre um fio, distante quatrocentos metros do chão, e o atravessou oito vezes e se deitou sobre ele. Apesar do vento, do frio, do perigo. Milhares de pessoas avistaram aquela figura sobre uma linha, invisível, entre os dois edifícios que não mais existem, lembrando a cauda de um cometa. Ele emitiu naquele momento o mesmo tom, a mesma irradiação sonora de cada planeta do universo. Ele fez parte da musica das esferas. Tudo estava consigo, não mais havia desencontro, tudo se equilibrou, e foi apenas por um instante. Ele não sabia o porquê, sabia como.
“Calcas, filho de Testor, de longe o melhor dos adivinhos.
Todas as coisas ele sabia, as que são, as que serão e as que já foram.
Guiara até Ílion as naus dos Aqueus, graças aos vaticínios
que lhe tinham sido concedidos por Febo Apolo.”