quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Se ele parasse, acabaria descobrindo como ele é triste.*




São-nos incutidos os efeitos benéficos
da observação firme e rigorosa das pequenas coisas,
ou seja, de nos acostumarmos e adaptarmos
às leis e ordens impostas por um exterior severo.
Robert Walser, Jakob Von Gunten

Tibum: o primeiro som guardado na memória. Seu pai o apanhou da cama, estreitou-o junto ao corpo e o levou pelo corredor da casa em passadas bem rápidas. Entraram na primeira porta aberta. Abaixou-se, deitando o corpo do menino nos braços, feito padiola, e o largou dentro de uma bacia de alumínio cheia de água fria até a borda.
         O menino, desesperado, sequer imaginava uma receita médica como essa para aliviar a dor. Olhou assustado para cima: viu a face espinhenta do pai, o cabelo despenteado; o teto amarelo formado com as ripas encaixadas como macho e fêmea; as paredes esmaltadas; o espelho da luz; e, por último, a cabeça da mãe, enquadrada pela porta, logo atrás das lentes dos óculos, o par de olhos entre curiosos e aflitos. Ele continuava sem entender nada, apenas sentindo o frio da água.
         Depois de algum tempo e muita discussão, chegou-se ao diagnóstico: pólio. A criança ficou algum tempo em febre alta, o corpo lutando para expulsar o vírus, letal em alguns casos, se dominasse os pulmões e o cérebro. Terminada a batalha, restou destruída noventa por cento da musculatura da perna esquerda e setenta da direita; alguns músculos do lado esquerdo do peito restaram inativos.
         O casamento dos pais fora celebrado sob um clima de discórdia. A família do pai, alemães e holandeses, não via com bons olhos, preferia uma família afim. A da mãe, brasileiros, sentia-se da mesma forma, queria que fosse encontrada uma alternativa menos marrenta. O casal imaginou vencer a primeira e definitiva batalha. Virgens, casaram-se vestidos de branco. A esposa adotou o sobrenome do marido, tirando o seu nome de família: Figueira. Talvez esse tenha sido o primeiro passo de concórdia, para selar a paz naquela guerra surda.
         O país caminhava para o final dos anos democráticos do governo Vargas. As mercadorias circulavam pelo país. O sogro dela, Sr. Rudy, percebeu isso e as transportava da matriz em São Paulo à Capital Federal e de lá para cá. Não necessitava fabricar nada, bastavam caminhões, alguns empregados e um galpão.  Além da filial no Rio, montou outra em Barra Mansa, de olho na siderúrgica, e colocada sob a direção do filho. Ele a nora iniciariam a vida em comum.
         Contudo, as diferenças nos costumes e, principalmente, na língua trataram de mostrar que a guerra não fora vencida com o casamento. As batalhas se sucederiam, após a entente cordial. O regime era de paz armada. Júnior fora tratado por mãe extremosa e ordeira, cuidando exclusivamente do bem estar familiar, da casa, da copa e da cozinha, sempre obsessivamente higiênica. Maria, por sua vez, trabalhava fora desde a primeira mocidade, após o término do curso ginasial, em empresa americana, e a mãe dela, dona Vicentina, enviuvara aos vinte e cinco anos e criara os filhos com bastante dificuldade. O mais velho tornou-se jornaleiro, outro, engraxate, e a filha, auxiliar de escritório. A casa era o de menos, fazia apenas o necessário, sem ajuda de ninguém. Cuidava de assistir ao pai e mendigar algum alimento dele; para isso, usava os filhos. Depois de muito custo, o avô liberou o galinheiro para a neta. Ela poderia pegar ovos para seu sustento diário. Ficava com cinco e entregava o resto.
         Já para os alemães, o fato de Maria não saber matar uma reles galinha e, mesmo depois de morta, ser incapaz de depená-la, era um pecado capital. Como se não bastasse isso, a galinha depenada, para horror de todos eles, foi jogada na panela, sem mais nem menos, para o cozimento. Havia necessidade de mais provas para comprovar o erro cometido pelo incorrigível Júnior? Dizia Trudi, a sogra, em português: “Eu não falou?”. Maria, por sua vez, respondia dando de ombros, que sempre que pretendiam falar mal dela trançavam a língua em alemão. Inútil e mera provocação alguém mais razoável dizer: “Eles falam com mais facilidade o alemão”. “Que nada, é falta de educação mesmo.” A língua da discórdia, o idioma do ressentimento, da cólera, do malquerer. “Eles pensam que eu não entendo, mas eu já entendo, sim. Eles falam mal de mim e de minha família”, completava Maria. De nada adiantava dizer aos gringos que seu pai fora o primeiro dentista formado na cidade de Santo Amaro. Que cuidava dela e dos irmãos, enquanto liberava a mãe para ir ao cinema no domingo com as amigas. Que gostava de estudar, ler e conversar com filhos, não se preocupando com mais nada além de seus pacientes. Que fora preso por subversão, simpatizante que era dos comunistas. Fora libertado apenas quando prestes a morrer, em consequência de seu coração fragilizado com a severidade do cárcere e da péssima alimentação. Era, afinal de contas, um herói. Não, nada disso adiantara, aliás, agravara a sua condição: pai pobre e comunista. Depois de a sogra arranjar, temperar, cozer o frango, relegou à nora o preparo do arroz, completando o cardápio dominical. “Que tal, seo Rudi? Ficou bom?” O sogro era o único com quem se podia conversar, ela sempre dizia. “Me passa o saleirro, faz favorr”, respondeu e, desanimado, acenou com a cabeça.
         A epidemia, assolando o país, a família e o primogênito, acirrou as diferenças. O festival de tiro-ao-alvo se instalou. Ao lado da Maria, entraram na dança o Brasil, os brasileiros, a higiene inexistente ou, quando muito, precária, e a corrupção. Todos eles eram os responsáveis. Diferença apenas de grau. Se Júnior os tivesse ouvido, nada disso teria acontecido.
         Maria ficou cega de ódio e de medo. Seu filho estava à beira da morte. O medo de tudo que acontecera a paralisou também. Não conseguia mais raciocinar. Apenas se defendia em altos brados das ofensas. Uma loba alucinada. Não conseguia manter distância alguma para entender o que quer que fosse além do seu ponto de vista: “Sou inocente, vítima de uma fatalidade. Se existe um culpado, não olhem para mim”. Ninguém ficaria surpreso se ela dissesse que tudo aquilo era resultado da praga rogada pela família dele.
Ela não compreendia o comportamento do marido, sua passividade, atonia, paralisia. Ele não a defendia daquelas acusações. Não se dava ao trabalho. Agia feito um banana. O ânimo que restava dedicava às tarefas cotidianas. Ao chegar a casa, restava em um canto, de olhos parados, pensativo. Ela temia a fúria verbal dele, em ocasiões anteriores. Ouvira: “Para melhorar a situação, basta ficarmos sem dinheiro. Não acha?”. Deixou de conversar sobre o assunto.  Ele devia sair em sua defesa, alguém tinha que fazer isso. Seus irmãos apenas a consolavam, mas moravam em São Paulo e não podiam fazer grande coisa, a não ser pedir que ela voltasse para lá. Que recomeçasse a vida. Era o melhor lugar para o tratamento do menino. Sem o saber, apenas acirravam o já inútil debate ao pontificar: “Bem que nós avisamos. Alemães eram assim mesmo. Frios, calculistas, autoritários e racistas. Já vimos isso antes”.
         Ninguém parou para pensar em como se sentia o pai daquele menino. Da condição de miserável, adquirida sem querer. De pária. Assim, do nada. Como poderia ter acontecido aquilo com ele? Como viver em um lugar em que ninguém compreendia o ponto central da discussão? Qual a utilidade dela? Não havia nenhum benefício. Ele, por ser de natureza calada, apenas se colocou, disciplinado, ao lado da mulher, e se afastou de seus parentes. Ele a escolhera. Quem não a respeita, não me respeita também. Não conversava mais. Aparentemente, não se irritava. Não arguia. Nada. Arrumou com o pai a transferência para São Paulo. E tentou iniciar uma nova vida. A mulher, entretida com as diferenças, acuada, levava a sua naquele inferno de tênis verbal. Ele tratou de fazer novas amizades. Boêmias.
         Desde moço, aproveitava o tamanho avatanjado do físico, de jogador de rúgbi, para tentar anestesiar-se com a bebida quando refém de emoções descontroladas. Não sabia o que fazer. Odiava isso também. Bebia, geralmente, cerveja, e até o seu limite máximo, pouco antes de perder a consciência. O seu último porto seguro: jamais perder a consciência. E para isso, sabia exatamente quando parar. Senhor de si. Falava um pouco engrolado; levantava-se com mais calma. Mas o pensamento ficava leve, solto, corria por entre os fios da chuva mental. 
         Agora, bebia não mais para se vangloriar, mas por necessidade de se perder naquele espaço vazio. Nele, voltava para onde estava antes de nascer, ou para onde iria depois de morrer. Sem perguntas, sem diferenças, sem línguas diferentes, sem costumes. Desentendimentos. Trabalho. Dinheiro. Inteligência. Apenas o vazio gostoso, confortável. Não perguntava mais as razões do que acontecera com ele. Conseguiu compreender que a pergunta era outra: por que não aconteciam mais coisas? Chegava tarde, deitava e dormia. Dormia muito. Bom de cama. Todo dia, pela manhã, pegava o pequeno escrínio, ajaezado, abria o cadeado diminuto e olhava para o seu interior, o interior da tampa forrado de veludo vermelho; uma herança que recebera ao completar dezoito anos de seu pai, posse da família por centenas de anos. O pequeno recipiente fulgurava e o tranquilizava.
         Maria reclamava da solidão consigo mesma ou com uma vizinha de porta. Aquele estado de coisas, a latência da guerra, tudo isso dominara a mulher. Vivia apenas para se defender e defender o filho. Saía todos os dias para a fisioterapia. Cinco vezes por semana, pegava o ônibus e ia para o centro da cidade. Como se isso adiantasse alguma coisa. Estava tudo feito. Caiu do ônibus com a criança no colo. Machucou-se um pouco, escoriações leves; a criança quebrou ambas as pernas, diante da força que ela fez para não soltá-la. Temia que o filho, separado dela, rolasse para debaixo de algum outro veículo. Esse apelo à ciência veio depois de vários apelos à fé. Com o acordo tácito do marido, abalou-se para Tambaú. Lá o Padre Donizetti fazia milagres. Ela, a mãe e o filho. Uma multidão esperava por ele. E nada. Não conseguiu nada além de ver o beato. Não foi atendida, recebeu a benção coletiva. Depois de praguejar contra o padre ao Deus mudo, restava o apelo para os Deuses antigos, os pagãos. Levou o filho para o Matadouro Municipal e o colocou dentro das vísceras do boi sacrificado. “O mal veio da terra, e à terra voltará.” E: nada.
The Times, edição de 9 de setembro de 1.954:
But the people also wished to avenge their champion's death (Mr. Vargas), and agitators, including Communists, were on hand to direct them. The American Embassy and consulates and American firms were attacked, and Opposition newspapers and broadcasting stations were barricaded and guarded by troops. Foreigners, especially Americans, were wise to stay at home. How near Brazil was to a holocaust became clearer later.