quarta-feira, 6 de maio de 2009

Pinga


“O epíteto era peculiar ao século XIX e tinha caído um pouco em desuso,

mas Matias, pelo porte e pelas leituras, continuava pertencendo

ao século XIX, e sua inteligência, de todos os ângulos,

era uma inteligência em desuso.”

Julio Ramón Rybeiro

Meu patrão pediu que eu fosse até Lima e designou o Sousa para me acompanhar. Queria vender sua casa de praia e arranjou um comprador limenho. Este se submetera a uma cirurgia no baixo ventre, não podia sequer descer da cama, e comprometeu-se a pagar todas as despesas da viagem. Assim, eu seria uma espécie de representante, ou agente de negócios. Mais tarde descobri meu papel efetivo: o de mula. Trouxe parte do dinheiro pela venda amarrado na cintura, distribuído em notas dentro do meu cinto.

Assim que soube da viagem, o Sousa veio me beijar. Estava alegre, contente, para ele estávamos indo passear na América. Poderíamos fazer compras, a nova namorada havia feito encomendas, estava ansioso, queria partir ontem. Talvez eu tenha contribuído para o clima de euforia, dizendo que Lima era considerada a “Cidade dos Reis.” Eu estava satisfeita, também gostava de viajar.

Embarcamos em um dia de sol envergonhado, com nuvens, cinzentas e ameaçadoras. Abafado às oito horas da manhã. Pegamos uma procissão de pessoas, esperando o exame dos documentos, outra para embarcar. Parecia que não estávamos documentados. O Sousa adorava fila. Conversava, contava anedotas, integrava-se, falando de tudo. Não conseguia ficar quieto. Moreno, cabelo liso e negro com topete, redondo, gozador. Despreocupado. Todos ficaram a par do nosso destino. A viagem foi tranqüila. Meu acompanhante, comeu ambas as refeições, a minha e a dele, sob o olhar de desdém da tripulação.

Ao chegar à cidade, encontramos um aeroporto como qualquer outro, uns azulejos caindo aqui e ali. Nada chamava a atenção das pessoas. As malas nos foram entregues por moças uniformizadas. Uma delas se engraçou com o Sousa. Conversaram com as mãos. Reservaram-nos um hotel no centro da cidade, com nome americano. Registramo-nos com um funcionário de aparência oriental. Dormi um sono agitado.

Primeira aventura.

Café da manhã. Uma mesa enorme, forrada de peixes, crustáceos, lagostins, aves e milho, das mais variadas formas, cores, tamanhos e sabores, como jamais poderíamos imaginar. Milho branco, negro, azul, e o nosso tradicional amarelo, estava lá num cantinho, desdenhado. Grãos grandes, lustrosos, ofereciam um porto seguro para nossas lembranças. Entretanto, fomos avisados pelo responsável de que era apimentado. Não perguntei mais nada. Fui pegar uma pamonha. Enfim. Pamonha com café e leite. Era uma maneira de se ancorar no gosto tradicional e confortável. Abri o pacote de palha, encontrei a massa da pamonha…negra. Cortei e comi. O gosto foi atacado pelo sabor da pimenta e não consegui distinguir mais nada. Pimenta queimando e só me restava apagar o incêndio com café com leite. Ainda mais quente, por sinal. O sabor quente, a temperatura hedionda. Aprendi a lição. Eles têm mais de trezentos tipos de milho. Por lá, milho é conhecido como maíz ou mahis, ou “aquele que sustenta a vida”. Souza fazia pirâmides no prato.

Segunda aventura.

Visitamos a “Estacion Central de Desamparados” a nossa rodoviária, “Plaza Mayor” e seus balcões de madeira escura, ricamente desenhado e esculpido. Cambistas trocando dólares entravam no carro, oferecendo a melhor taxa. Igrejas barrocas. Museu do Ouro. Sentamos no bar do hotel. Não bebi nada. O Sousa pediu uma pinga. Parecia incrível, mas ele não fala portunhol. Apenas português, e mal. O garçom olhava para os lados e lhe respondia: “Senhor, aqui não se fala isso. É muito feio”. E apontava para a braguilha da calça, encabulado, mostrando o punho cerrado e o antebraço erguido, na pose clássica. “Nome muito feio.” Agora ele aprende, pensei comigo. Ele dispara: “Pois bem, então me vê uma PINGA sauer.” Num tom de voz que toda recepção virou para olhá-lo. Funcionários, hóspedes, mulheres. (“La Chicha era el vehículo que unia a los hombres y a los dioses, a través de la fecundidad de la tierra.”) Para Souza, o passeio matinal acabou por desfazer o sonho de encontrar a Flórida. Aquele país lembrava-lhe o Brasil. O povo era muito feio. Aliás, os índios, muitos índios, todos mal encarados, mal humorados, em quantidade nunca vista nas cidades. Uns brancos, alguns negros e mulatos. Japoneses andando por todos os lados. Ele perguntou a uma guarda de trânsito: “Porque tem tantos japoneses aqui?” “Não temos japoneses, meu senhor, são chineses (chinos).” De fato, saímos para almoçar e descobrimos que Chifa é o nome que eles dão para os restaurantes daqui. São de peruanos de origem chinesa que montaram suas tendas de comida. Uma comida sino-peruana. Pensei que comeríamos um arroz shop-suey, ou frango xadrez. Que nada, era outra comida chinesa. O sabor, sem a pimenta, lembrava a comida sino-brasileira. Ficou curioso o laço que a China fez para unir os dois países. O motorista que nos acompanhava, um índio gigantesco, lacônico, de nariz quebrado e adunco, explicou que os chineses entraram no país, após a proibição do tráfico de escravos. Eles vieram ajudar na construção de uma ferrovia, como escravos disfarçados. Trabalhavam por comida e cama.

Terceira aventura.

Sousa convenceu a guarda de trânsito a conhecer o hotel. Fiquei na recepção até tarde. No dia seguinte, visitamos uma das feiras livres. Exatamente igual às brasileiras. A diferença estava na quantidade de pessoas que encontramos, esperando a feira ir embora, para conseguir apanhar a xepa. São alimentos que os feirantes deixaram na sarjeta. Sentei ao lado de uma mãe (índia) que pacificamente dava a mamadeira para seu filho. Como toda criança, puxava o bico com uma vontade gostosa, saborosa até de ouvir. O líquido não conferia com a cor, que estava acostumada a ver. A cor era amarela. Seria de milho? Não, ela se apressou a dizer. Era Inca-Cola. Uma bebida local. Um refrigerante produzido a partir de uma vaga memória da lúcia-lima ou limonete. Soube depois que é utilizada também como chá, para induzir ao sono. Percebia que o motorista não gostava de nos levar nesses lugares, seu olhar era de reprovação. Informou-nos que Cervantes fora proibido de viajar para a América, pois não tinha sangue puro. Estava escrito no muro: “No cagar. No orinar. Iconcha tu m…!”

Quarta aventura.

O amigo do patrão reside em Miraflores. Genro de um dos próceres da república. Prócer é uma palavra corrente. O patrão manda, obedece quem tem juízo. A palavra que mais se ouvia ali era dólar. Variações: “South beach” e “Boca Ratón”. Existe uma conexão direta entre o povo daqui e o de lá. Os chinos sumiram. Os índios, civilizados em seus uniformes. As ruas asfaltadas e limpas. A casa do genro é maravilhosamente grande, forrada de orquídeas em todos ambientes. Conversa comigo falando um português razoável e com outras pessoas no tradicional espanhol, rápido e cantante, quase incompreensível. Falava em francês e inglês, conforme o interlocutor. Assinou sem ler o contrato que exibi e me entregou o dinheiro em cédulas sequenciadas. Encabulada pela presença não contei. Para legalizar o documento, basta reconhecer a assinatura. Quinze dias para tanto. Férias burocráticas. Descemos até a costa do Pacífico para comer ceviche. Uma comida deliciosa. Um pescador mostrou um tipo de concha comestível e o Souza, não teve dúvida, engoliu o conteúdo da concha ali mesmo, crua e viva, sob o olhar de espanto do pescador. “Esse zevicho deles é cru também, que é que tá olhando? Além do mais, eu ainda estava com fome”. Explicou ao motorista que, no Brasil, quem nasce no Peru é pirulito. Não recebeu sequer um olhar. Um homem no carro ao lado do nosso pergunta de onde somos. Brasil, respondeu Sousa. “Ah, sim. Futebol, samba, e dançou sorridente.”

Quinta aventura

O nome do motorista era Athaualpa. Ficava conosco vinte quatro horas, se necessário. Limitava-se a seguir instruções e manter o carro em alguma direção no caos que é o trânsito da capital. Impossível identificar um táxi. As pessoas estendiam as mãos e um carro parava. Fui informada de que eram ilegais. Assim como os ônibus. Ao final de cada dia, a prefeitura mandava recolher os pedaços dos veículos que caíam pela rua. As cores não eram definidas. As portas dos automóveis lembravam obras de Jackson Pollock. Nada obriga que o resto da lataria seguisse um padrão. De vez em quando, a cidade ficava sem luz. Os apagões eram obra de guerrilheiros. Fiz um comentário e ouvi do motorista: “Senhora, as bocas aumentaram e o alimento não. Eles queimaram todos nossos livros, registros e tradições. Assassinaram nossas lideranças. Tudo que nos restou foram, além de escombros, receitas de comidas, folhas medicinais, costumes familiares, mitos e silêncio. Aqui o tempo é invariável, não muda. Sempre assim, desde aquele tempo. Somos estrangeiros em nossa terra”.

Sexta aventura.

Resolvemos tudo. Estávamos prontos para voltar. Descansando na recepção do hotel, vi um casal em lua de mel registrando-se. Entrou apressado, um homem de terno e mala executiva. O atendente do bar, já nosso amigo, disse, sorrindo, que era um alto funcionário do governo, visitando empresários estrangeiros. Entrou no hotel e logo pega o elevador. Esperamos o nosso motorista para nos levar de volta ao aeroporto. Ouvimos um estampido, forte, o vidro da recepção se quebrou, um tremor sacudiu o prédio. Terremoto? Minutos depois o hotel estava cercado. O casal tinha detonado uma bomba no último andar. Revista generalizada, olhares assustados, pessoas correndo, caos absoluto, como deverá ser o dia do juízo final. Dei a viagem de volta como perdida. Ficaríamos mais quantos dias? O Sousa me implorou: “Ligue pro homem, o próce. Ele nos tira daqui.” De fato. Saímos do hotel junto a um cholo com dois metros de altura, numa cadeira de rodas, precária, de madeira e lona, prestes a se quebrar. Dei uma nota de cem dólares a Athaualpa, como gorjeta. Ouvi: “Não, obrigado, senhora, sou muito bem pago pelo patrão.” Num espanhol claro, alto e muito bem falado. A viagem foi muito rápida. Sousa não comprou nada no aeroporto local, nem aqui. Sonhou tanto com o free-shop, e passou por ele correndo. Devia ter imaginado. Afinal, quando ele desceu do avião, ajoelhou-se e beijou o chão de cimento.