quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Lágrima Retida






A lágrima insiste em sair. Vem das profundezas de um corpo hoje combalido, tenta furar o bloqueio que ele se habituou mostrar (será um orgulho bobo?), talvez para que o outro corpo não se sinta melhor, recompensado, pelo que fez ( para mostrar uma força que não existe? Ou existe apenas como fachada?). Vitrificado, ele segura firme, formando um lago interior composto pela água e pelo sal transformados em lágrimas, acumulado ao ponto de exercer uma pressão intensa no olho, tornando-o liquefeito e translúcido. Um simples assoprar de brisa o desaguaria. Assim, não haveria problema em culpar um cisco ou a polução da cidade. Enquanto ela está presa, coisas interessantes acontecem: uma piada antissemita ou racista ou machista; uma discussão estúpida com alguém, desaguando em uma ofensa; uma lategada no cão; uma briga de empurrões e pontapés, inadmissível sem ela; pode também se transformar na vontade de assistir um filme sobre o funcionamento de um grupo terrorista, como catarse. Tudo para esconder o medo que você está sentiu naquele instante. O medo até então desconhecido. Da conversa com um texto expelido por entre as vértebras de um amigo noticiando a loucura que acomete aqueles que conheceram da morte de deus à leitura do conto Bola de Sebo, pegadas interiores mostraram o caminho que elas percorreram. As fichas foram caindo dentro daquele corpo, transformado pela puxada na alavanca do caça-níqueis. A prostituição é um fato. Todo ódio contra as putas e desclassificadas vem do medo da comparação das mesmas posições, do exercício das mesmas atitudes, das recompensas com as mesmas moedas. Das trinta famosas moedas. Até então, o tratamento dispensado era o de pessoas de bem, daquelas que têm sentimentos nobres, porcos, mundanos e sublimes e, comem da nossa comida, enquanto têm fome. Satisfeita, voltamos ao nosso lugar: a indiferença merecida pelos violadores da hóstia consagrada. Estamos encarcerados, isolados, esperando o próximo cliente. A próxima venda deflagra a represa. O corpo acorda com a rotina do banho de tina. Nela a água suja e servida, que passeou por ele, ainda está lá, e, repentinamente, as mãos com vida própria, juntam-se e jogam punhados d’água suja no rosto, várias e várias vezes, em movimentos automáticos, irresponsáveis; parece que ele tem necessidade de puxar pra fora, com pancadas líquidas, toda a fieira de lágrimas retidas; extrair o tumor, aquela sensação inútil, pois, ficando lá, ficará como água parada, sementeira de vermes. Assim terminado o banho, ele se desfaz do vapor, passa a mão no espelho do banheiro, nunca olhado, e dessa vez serão dois pares se olhando, se confrontando, se aproximando. Aquela porcelana vitrificada se fissura, e se percebe que duas lágrimas pequenas e envergonhadas, escorrem pelos dois lados daquele rosto e se perdem nos pelos brancos do peito. Apressado, ele as enxuga. Que voltem. Que fiquem. Que se danem. A inútil inquisição vinda da noite dos tempos venceu e arrancou dele a confissão. " a fatal desorganização de uma existência solitária cujos sonhos desapareceram; e todos os nossos dias passados iluminaram aos tolos o caminho poeirento da morte”

9 comentários:

  1. Imprimiu uma forma forte e bem criativa ao tema, um belo texto!

    ResponderExcluir
  2. Lindo texto, amigo Djabal. Muito lindo!!! Não é só nas lágrimas das mulheres que há de tudo um pouco.
    Congratulations!!! rs

    Bjs

    ResponderExcluir
  3. As lágrimas podem até ser represadas, mas nunca os seus efeitos. Nada comparado ao silêncio atroz de uma lágrima que não esteja vertida neste texto, caro Djabal. Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Olá Djabal
    E o texto que se faz como o processo que fazem com que possa-se libertar das dores, de todos os tipos de emoções que, saudavelmente podemos identificar, tal igual lágrimas. Letra por letra vão soltando-se, fazendo contorno. Já estão misturadas e fazem parte das trinta moedas. Assim descreves essa face de ser humano.
    De todo o humano.
    Ilusão é pensar numa vida que não possa evidenciar-se apenas como "mascara", em certas circunstâncias.
    Aprendemos que para ser um escritor como és, há que passar pelos vales. "O vale de lágrimas".
    Parabéns pela poética e excelência do texto.
    Beijos

    ResponderExcluir
  5. A lágrima represada não expande além dos limites de onde ela possa cair.Fica retida e forma um lago onde se misturam situações de vida diária , até banais e também os intensos sintomas da civilização encarcerada.
    O confissão é o caminho para que elas escoem e liberte o que estava frágil.
    bjs,

    ResponderExcluir
  6. Djabal,

    na riqueza e beleza deste texto, a poética é talvez a mais notável para mim, fazendo-me pensar que talvez seja um grande, grande poema, o que escreveu.
    Grande criatividade, pela temática, que prende irresistivelmente a atenção e pela própria escrita, de elevado nível.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  7. Lágrima de impotência diante do preconceito, da vida sem volta e mergulhada em um balde de águas servidas.
    Neste texto, Maupassant é Djabal, ou vice versa.
    Abraços
    Luiz Ramos

    ResponderExcluir