terça-feira, 29 de março de 2011

Grafite




Ela é uma condutora: não flui sob a gravidade, mas é conduzida pelo homem. Ora na mão direita, ora na esquerda. Um minério obediente. Brotou do feixe de árvores fundidas pelos raios da tempestade. Surgiram no cenário as primeiras folhas negras paralelas de anéis aromáticos, brandos diamantes jogados pelo filho de Prometeu depois de um dos vários dilúvios.

Negra e lubrificante. Uma voz solitária do carbono, obstinada em obedecer do amo a fantasia; se desfaz em gravuras, hachuras, letras, palavras e sentenças, atrasa o seu desaparecimento agarrada à pedra, nos desenhos das grutas. Como um adolescente faz uso da resina do caucho, e altera ou apaga suas expressões.

Sensível e solitária, metamorfoseia-se ao tocar os dedos em cócegas escuras; assimilada, a madeira do álamo se faz lápis, obtém a cor; misturando-se às argilas coloridas, sai a passear pelo papel feito um pequeno pênis, pênsil, buscando naquela mão o pensamento dos homens, e descreve o itinerário das mentes, a busca irrefreável de emoção e aventura.

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É, por isso mesmo, eterna associada na loucura e histeria. Pela infatigável busca da exatidão, ela e o amo percebem sua a inutilidade, antes de tornar-se pó: “Pó enamorado”.

Para uma parte dos seres, existir apenas não basta. Cambiam o grafite pela tinta, obtida em untuosas e dóceis quantidades. Vestidas em cores vivas, causando inveja ao sol. Combinam-se ao bismuto, ao enxofre e ao chumbo.  Para encontrar o espírito no azul e no verde, e o primeiro plano no amarelo e no vermelho. De tão vaidosas, imaginaram-se indeléveis e inimitáveis. Desafiaram o tempo e aceleraram sua dissolução.

Grafite é apenas uma coadjuvante da busca, ainda precisa de auxílio, das muletas sob os braços. Dentro do lápis, sua alma é firme e pulsa: mina.  Desfaz sua ponta esvaziando-se em trilhas, nas superfícies, buscando aprofundar o sentido da vida. É pressionada por mãos habilidosas. Sempre vorazes, velozes e precipitadas. Os tocos são incessantemente descascados por lâminas de metal; navalhados ou saltando cones ocos raspados, até redescobrir sua ponta. Os cavacos caem no lixo, a grafite se esvai sem uso.

Diferentes moléculas foram unidas para atender a propriedade: escrever. Tendem a se repetir indefinidamente. O desperdício das florestas e terras e alótropos criou o esqueleto exterior móvel e desgarrado: a lapiseira.  Resinosa, envernizada, desenhada com duas garras de metal, uma a prender-se ao bolso, outra para recolher e soltar grafite.

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A escravidão não se alterou. Ela não escapa mais, não escorre entre os dedos, não forma mais nuvens escuras sem sentido, não se consome, inútil. Ela se aponta pelo escrever. Sensível à declividade, basta segurar a lapiseira e afiar a ponta enquanto se escreve, inclinar para a direita e para a esquerda, enfatizando o traço, a palavra ganha contornos de desenho para reescrever o Gênesis.
Sabe-se, entretanto, que sempre se encontrarão no mesmo ponto. O encontro entre a obra, definitiva, enquanto ela sempre ardente, lava jamais resfriada. Uma riscando a outra, buscando incessante ao sentido, ao espírito. E se prega ao papel, à gruta ou à madeira. Entretanto, sempre manchas com forma, sem sentido. 

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Ela é aventureira ancilar, sem apoio não vai a lugar algum. Não desce ou sobe escadas. Brincalhona, de obediência pueril, sem o esqueleto de metal ou sem a muleta de madeira, não se firma em pé. Evita o álcool. Sozinha, não vai a lugar algum. Viaja com o pensamento. Para sempre será lembrada, o instrumento de fixar palavras – inúteis.

Escrito para comemorar o dia de nascimento de Francis Ponge.