terça-feira, 19 de maio de 2009

Amazônia



Amazônia

Cada rua escancara-se como uma porta,

mas ninguém as explora. Aquele homem sentado

nem sequer se dá conta, tal como um mendigo,

das pessoas que vêm e que vão na manhã.

Cesare Pavese, em Trabalhar Cansa.

Acompanho um casal, meus patrões, em um passeio. Algo neles é diferente, certa bilateralidade cruzada. Ela tem um comportamento masculino, ríspido, brusco, e ele exerce o feminino, curioso, delicado.

A mulher nasceu para ficar parada. Odeia fazer passeios ao léu. Quer sair de um lugar e chegar a outro. Direta, sem rodeios. Descontrola-se a qualquer sinal de desorientação. Para, pede informações e as recebe contraditórias, mas não se importa de andar de um ponto a outro. A indicação alheia a tranqüiliza, até chegar ao ponto indicado, que não é o pretendido. Infantil, recomeça o processo do início, até o próximo ponto. Fica perdida, exasperada ao encontrar um sinal de ‘contramão’. Vou pela direita ou pela esquerda? Será que existe retorno? E agora? Ele nunca responde. Limita-se a olhar.

O homem não se importa. Parece gostar de errar por aí. Pergunta, qual é a pressa? Temos tempo, ninguém nos espera. Caminhemos e encontremos o lugar, vamos passear, observar. Não há necessidade de planejar nada. Ao encontrarmos algo interessante, paramos, vemos e pronto. Inicia-se uma discussão, interrompida por um silêncio espesso como neblina.

Obtém um dispositivo que traça o trajeto pedido, indica as ruas e o itinerário. Mostrando no mapa, com uma voz indicando o percurso, o tempo de viagem, a hora estimada da chegada. É mais um pacificador de casais que não conseguem se entender. Cessam as discussões. O objeto, é uma espécie de divindade, segue dando suas indicações.

Depois dele, não nos perdemos mais. Vamos de um lugar para o outro, com uma precisão matemática.

A cidade está coberta de boas estradas, aliás, está construída sobre boas estradas. Elas são subterrâneas, sinalizadas com regularidade. No teto a indicação de velocidade máxima. A iluminação é eficiente e dá a impressão de uma linha contínua, nas paredes laterais, côncavas, ameaçadoras, túneis infinitos, pintados até meia altura, com telefones de emergência gritando em amarelo cada quinhentos metros. A visão e a velocidade são de um jogo eletrônico, sempre as mesmas, fase após fase. Monótono e artificial. Não há tempo a perder.

De repente saímos dele e estamos ao ar livre. O outono com suas cores variadas nas árvores, situadas numa larga avenida, feito duas fronteira uma de cada lado. Lá adiante, olhamos no horizonte e duas linhas paralelas de árvores formam um corredor e, ao final, uma brusca montanha nevada aparece, dando um basta. Agressiva, com pico nevado, mostrando sua altura e eternidade. A terra é arenosa, cor de pedra, tufos verdes de moitas rareando aqui e ali. As folhas têm cores que passam do verde para o amarelo chegando ao vermelho, elas se penteiam ao sabor do vento que lhes dá direção. Um tapete de folhas marrom também se move ao sabor do mesmo vento, cobrindo espaços cinzentos de asfalto, fazendo um arranjo quase humano na paisagem. Observo uma folha presa em um bueiro, parecendo resistir ao vento, por pouco tempo, logo se reúne ao tecido. A cena está encoberta por um céu incerto, um teto escondido pela névoa espessa, parece que podemos tomá-la com as mãos, deixando tudo indefinido, após certa altura.

O primeiro sinal de humanidade está no longínquo mercado de pulgas, onde a calçada serve de banca de mercadorias. Nele não se mostra as babuchas marroquinas, ou imitações baratas chinesas, mas roupas usadas ainda impregnadas do último trabalho, livros, fascículos, móveis alquebrados, tudo separado meticulosamente em fileiras como aqueles fios de cordas com nós que os antepassados usavam para cálculo. A lógica da utilização até o final da vida útil, como se passasse do irmão mais velho para o mais novo ainda vigorava. Os proprietários das mercadorias ficam à distância cuidando dos filhos, fazendo suas tarefas e lembrando o tempo do Inca, quando os pobres recebiam as roupas para que não existissem mendicantes.

Olho rapidamente. Eles querem voltar para a casa onde estão hospedados, têm medo de assalto. A arquitetura dos bairros próximos ao centro é a mesma de Los Angeles, Xangai, São Paulo, Kuala Lumpur. Prédios espelhados refletem seus vizinhos e são repetidos sonolentamente. Tudo bem construído e sem qualquer vestígio de originalidade. A única construção que ousa chamar a atenção é chamada “Amazonía”. Está à venda e, aparentemente, ainda não encontrou compradores. Seus funcionários estão conversando ao sol do meio dia.

Pousada dos Ingleses: esse é o nome da casa que foi alugada apenas para o casal. Uma construção colonial espanhola, ampla, limpa, com lençóis trocados diariamente. Uma parede de vidro mostra a cordilheira cortando o céu como um serrote com dentes gigantescos, alguns brancos. Estamos cercados de jardins com rosas de pedras e coníferas.

A camareira Rosário vem ao nosso encontro. Simpática, falante, redonda, alegre. É colombiana, viveu durante quinze anos na Holanda, foi casada com um indonésio e tiveram três filhos, todos estudando em Amsterdã. Está separada e morava em Houston até perder o emprego. Procurava trabalho de tradutora. Fala holandês, espanhol, português e inglês. Encontrou nas vindimas em Santa Cruz e agora este. “Dou graças a Deus, por ter trabalho”, diz sem perder o sorriso. Viveu também por algum tempo no Maranhão, adora dançar e namorar. Lembra da Dança do Coco, Dança do Caroço e Dança de São Gonçalo. Lugar quente e de gente bonita. Rosário me ensinou a literatura dos leques, utilizadas pelas mulheres de Cádiz. Não havendo liberdade de se exprimir, as mulheres compunham suas obras utilizando-se dos leques e seus movimentos como mensagens. O leque aberto cobrindo o rosto: “Eu o amo”. O leque fechado empunhado com a mão esquerda e apoiado no lábio inferior da boca cerrada: “É tudo mentira”.

O seu namorado atual é chileno estuda engenharia de alimentos, enquanto cuida das folhas caídas e de regar o jardim. Parece determinado a se engajar nas Falanges Imortais, recrutadas por Pizarro, para treinar na América Central e combater no Oriente Médio.

“Para sus sacrifícios solemnes hacian pan de maiz, que llaman zancu. Y para su comer, no de ordinário sino de cuando em cuando por vía de regalo, hacian El mismo pan, que llamn huminta. Diferenciábase em los nombre no porque El pan fuese diferente sino porque uno era para sacrifícios y el outro para su comer simple”. Inca Garcilaso de la Vega.

Convidam-me para almoçar. Comemos “pan amasado”, um pão tradicional, feito com farinha e banha, cozido lentamente no calor da lenha. Servem também alguns deliciosos pastéis com as bordas rendilhadas. Queijo e porco completam a refeição. Bebemos um belo vinho, mas o patrão teima em dizer: “É bem feito, mas apenas uma cópia muito bem feita”.

No meu quarto as torneiras possuem um jato duplo, o quente e o frio. Eles não se misturam. A mão queima ou congela. Não há meio termo. As tomadas têm três furos paralelos esperando receber os cilindros que eu não levei. São as excentricidades do lugar.

Pessoas surgem da escada rolante como autômatos. Elas brotam do chão ou descem de cima. Cada pessoa parece um sinal ou letra. Cada letra é parte de uma palavra. Cada palavra forma uma sentença. O conjunto de períodos forma uma página, e o de páginas faz um livro, que é arquivado por tempo determinado na biblioteca de Babel. A leitura parece impossível. A construção dela e de seus labirintos apaixonam. Lembro que cadeia básica do ácido nucléico de uma célula ocupa um milhão de páginas. Desisto de ficar observando. Antes de sair, encontro um cavalheiro vetusto, com uma barba pontiaguda cinza, magríssimo, veste um costume antiquado e muito bem conservado. Um ar digno de superioridade. Utiliza um castão. Não fita ninguém, olha o infinito. Está só. Parece sonhar moinhos de vento.

Gastei todas as minhas economias na compra de uma manta de Mohair (Cabra Angorá). De peso quase inexistente, elaborada com fibra de vinte quatro ou vinte e cinco micros de diâmetro, capaz de reter o calor, resistente ao extremo, e de um toque extraordinariamente suave. Afaga e acaricia o corpo como nenhum outro toque é capaz. Um oásis e um alívio para pessoas cercadas de rigidez e frieza. Ela dá a noção exata de como o mundo deveria ser e não é.