segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Otília Kafta




“La verdad, por escandalosa que sea,
es que los hindúes les importan más las ideas
que las fechas y que los nombres proprios.”
Borges






Reunião em família. Todos na sala de jantar ao redor da mesa. Na cabeceira, o pai Hermano e, em frente a ele, Noé, o filho. Sentadas à mão esquerda do pai, a filha, Valéria, o outro filho, Gabriel, e todas as recordações dos irmãos, pai, mãe e parentes, todos mortos; à mão direita, a mulher Júlia, mais uma filha, Otília, e Lalá, seu namorado. Ao terminar o jantar, as meninas imediatamente ajudaram a mãe com a louça. O pai aguardou a arrumação jogando paciência na mesa redonda de tampo forrado de flanela verde. Gabriel esperou, sentado, olhando para a louça guardada no móvel, distraído com a paisagem rural esboçada nela em azul; estava distante. Lalá e Noé conversavam em voz baixa na varanda da frente.



Noé largara a faculdade de medicina. Gostava mesmo era de poesia, que transformava em canções. Essa vontade era mais forte que qualquer outra, e, sendo forte, contrastava com seu corpo miúdo e seus movimentos lábeis. Estava com o propósito de seguir carreira artística. Seu espírito se arrumava em palavras e rimas e ritmos. Naturalmente. Sem esforço. Até quando dormia, era em versos que sonhava cantatas e mulheres. Contava com a ajuda sorrateira de Otília, e agora com a de Lalá, seu companheiro de todas as horas e repudiado pela mãe e pelo pai. Com o seu jeito gozador, diziam, havia raptado dois de seus filhos. Otília tinha uma alma sutil de amante carinhosa. Já estava em rota de franca colisão com os pais. Afinal, Lalá era gói, americano (torcedor do América Futebol Clube) fanático, magro, mulato, de voz fina, boêmio, amante fogoso, que nas horas vagas trabalhava com dedetização. Um tijucano que frequentava o piscinão de Ramos procurando rabo de saia. Causara escândalo ao surgir fantasiado de diabo, todo de vermelho dos chifres ao rabo, durante o corso de comemoração do título carioca.





O pai o considerava apenas um atencioso auxiliar no Shabat. Além de solícito, fazia todas as tarefas interditadas à família no dia a ser guardado. Beirava o servilismo. Foram o respeito, a educação e o carinho que conquistaram Otília. Apenas um amor platônico. O pai não o vetara, mas periodicamente sentenciava: “Isso não adianta de nada, ser talentoso e engraçado. Isso não enche a barriga de ninguém”. Considerava-o um reles, um parasita, exterminador de inseto, um grilo de casaco verde e pernas finas.

Atingido por uma dessas diásporas, o pai saíra de sua aldeia e conseguira comprar suas passagens para a América. Descera no Rio e sem falar uma palavra de português, pensando estar em Nova Iorque, falando o iídiche. Com a ajuda de alguns patrícios, conseguira lugar em uma pensão e, afinal, descobrira a América – do Sul. Em seguida, descobrira também a sua mulher. Casaram. E, de mascate vendedor de perucas para empregadas domésticas e próteses para desdentados, descobrira com muita luta um ponto em Cascadura e montara sua loja de móveis, que até hoje garantia o sustento e a prosperidade da família.

A mãe procurava evitar que ele descobrisse também a vocação do filho, acobertando-o. O temperamento prático e irascível do pai tornava tudo mais difícil. Até o dia em que Noé lhe entregou uma folha com letras de músicas. Olhou de relance os versos: “Não tem ideal na vida/Além de casa e comida/Tem seus amores também/E muita gente que ostenta luxo e vaidade/Não goza a felicidade/Que goza João Ninguém!” Jogou-a na mesa de cabeceira de sua cama, para ler depois, com calma. Foi esse o dia em que Noé declarou que não iria mais à faculdade. Ela estava acabando com ele. Consumindo seus dias. Queria fazer o que queria fazer.





Foi proibido de fazer tal asneira. Terminantemente. Não é coisa de nossa família. O filho jamais se tornaria um vagabundo enquanto o pai vivesse. Esqueça isso. Foi uma cena tragicômica. Ficou surpreso diante da firmeza do filho. Não dera nenhuma resposta, não entrou no clima de agitação e rebuliço instalado no lar. A mãe não ousou desafiar o pai, a frase “quem sabe fosse melhor assim” ficou rodando dentro da sua cabeça sem encontrar espaço para sair, os dentes cerrados, os ouvidos zonzos com os gritos, tapados, as mãos, sem lugar para se esconder ou coragem para abrigar Noé, ficaram presas uma na outra. Tronco curvado, Noé enfrentava o ciclone de gritos e perdigotos. Até que o pai, cansado, cessou. Ele fremia, arfava, o purpúreo desceu do rosto e se espalhou pelo corpo. Algum tempo depois, deu um longo suspiro e disse: “Seu irmão está encaminhado. Gabriel montou uma empresa de contabilidade, e poderá arranjar um emprego para você se sustentar. Noé, vá trabalhar com seu irmão. Basta de humilhação. Não basta o nosso nome ter sido manchado? Eu fui registrado no Brasil por um sefaradi, um… um árabe, ninguém me tira isso da cabeça. Isso foi vingança. Inveja. Nosso nome foi transformado em ‘escroquete’ de carne: Kafta. Um bolinho libanês. Trocar K por T? Essa troca das letras é motivo de troça pela comunidade. Pela frente ninguém me fala nada. Mas eu sei. É por trás, hã? Sem defesa. Eu não consigo suportar a idéia de você se tornar um arruaceiro, um dançarino, um… um… desclassificado”.



Depois de toda aquela agitação, o clima familiar recebeu uma demão de verniz e se acalmou. Entretanto, ao ser convidado para o jantar de hoje, Lalá tinha alguma coisa pesando em sua consciência. Não sabia exatamente o que era. Aliás, não sabia qual dos motivos fora descoberto. Mas tentou relaxar, esquecer. Não dar bola. E perguntou à Dona Júlia: “E aí, sogrinha, o que rola na janta?” Ouviu: “Teremos: Borscht, Varenyky, Piroshky, Latkes, Blintzes.” “Xi! Quanta gente! Vai sobrar um lugarzinho pra mim?” Ela se resignou a franzir a testa, dar de ombros e se encaminhar desanimada para cozinha. Logo depois, chegou Noé. Depois de informado, desatou a rir e disse entre os dentes: “São os pratos que a mãe só prepara em datas festivas. É sinônimo de fartura, das tradições e da perícia da dona da casa”.

Hermano terminou sua mão, chamou a todos e começou a conversar. Depois de esperar, tamborilando com os dedos da mão direita, a chegada de Noé e Lalá, disparou:





– Meu amigo Salomão me contou que você, Otília, está alugando uma casa dele no Andaraí, e que apresentou o Lalá como fiador. O que significa isso?

– Não é nada do que você está pensando, pai – envergonhada, olhou para o chão e depois para a mãe.

– Estou pensando que você é uma sem-vergonhice sem tamanho, é isso que estou pensando.

– Seu Hermano – disse Lalá –, eu posso explicar?

– Por favor, Hermano, deixe o menino falar – suplicou Dona Júlia.

– Desembucha.

– A casa que estamos alugando é para o Noé. Ele está precisando se isolar, sair aqui do Grajaú, da família, para compor, para consolidar a carreira. Ele tem talento, mas não consegue sossego ou espaço para se concentrar. Trabalha até as quatro, só tem o final da tarde para compor. E de noite, bem de noite, nós vamos cantar, vender nossas composições, fazer negócios.

– O senhor é muito hábil para mostrar o lado bom de alguma coisa ridícula, que não tem o menor valor. Nós somos uma família honesta e trabalhadora. Meu pai foi açougueiro durante cinquenta anos da sua vida útil, nunca tirou férias, apenas não trabalhou quando era absolutamente proibido pela nossa religião. Era também um rabino e ajudava ao próximo naqueles momentos de folga. Cantou o Altíssimo sem ser um herege. Sempre foi humilde. Ganhou o seu pão honestamente. Eu tento seguir os seus ensinamentos, e vem o senhor com esta farsa? Não se envergonha de, compartilhando da nossa intimidade, sabendo como somos, fazer essas propostas?



Ouviu-se a voz baixa de Noé:

– O senhor desde que eu me lembro jamais nos ouviu, não só a mim, mas a ninguém aqui de casa. Qualquer coisa que nós queríamos só podia ser ouvida depois de termos engolido o ovo cru pela goela, como ração diária de saúde e bem estar. Será que o senhor nunca pensou que a felicidade não é apenas sair ganhando e catando por aí? Que o senhor sabe se exprimir apenas com seu comércio? Quando compra suas coisas e as vende, tem a satisfação de ter sido entendido por um cliente seu. O senhor adivinhou o que ele gostaria de fazer com o dinheiro dele e por isso está feliz. Quer se radicar. Pertencer a algum lugar. Perante os seus, ser considerado um bom comerciante o enche todo de orgulho e exige que nós, seus filhos, sejamos iguais. Por que o senhor jamais parou para pensar nisso? Porque a sua vida é uma tábua de passar roupa. Pronta para entrar em ação de uma só maneira. Pensa que eu não o vejo lá na loja, parado, pensando, olhando o vazio? Será que eu não percebo quando o senhor vem para casa e a mãe se apressa a preparar o seu prato, reunir os filhos à mesa e servir tudo muito rápido, porque o senhor não tem tempo a perder? Tem, sim, pai. Tem tempo a perder, que o senhor perde só, sem testemunhas, lá na loja. O senhor nunca se voltou para si próprio. Nunca se deu uma chance de ser feliz. De curtir a sua passagem pela Terra sem se preocupar com a opinião alheia. Apenas fazendo o que bem quer. Seus acessos de cólera, a sua tirania, servem apenas para proteger ferozmente seu íntimo, e alguém, para amá-lo, tem que concordar com a essa distância. É isso, pai. O avô cantava, enquanto Rabino. Mas cantava para expressar a alegria que sentia ao servir algo ou alguém. Não protegia o seu interior, mas o compartilhava. Bem que eu queria ser um médico ou assistente de contabilidade, e ser feliz assim. Mas, pai, eu não consigo. Eu tenho uma fissura no meu corpo. Uma brecha luminosa que teima em aparecer, caudalosa como um rio, e a música se apoderou dela. E os versos se encadeiam em minha mente, querendo eu ou não. Acordo pela manhã com uma canção na cabeça, basta colocar no papel e ela está com rima e metro. Não quero me prender em lugar algum, nem em ninguém. Não pretendo me casar, muito menos deixar de aproveitar a vida. É do meu instinto vital. Gosto das mulheres que gostam de mim. Jamais vou me casar, não quero perder a minha liberdade. Não quero ser amarrado pelo pai a ninguém, por ninguém. O meu nome é honrado sim, não devo nada, não quero nada. Disse isso nos versos que lhe entreguei, e o senhor sequer os olhou. Viver jogando seu baralho, para ganhar o seu dinheiro e juntar coisas, para depois não saber o que fazer com elas? Não, pai, isso não faz nenhum sentido para mim.





Um silêncio preencheu o local, cobriu todas as pessoas. Eternizava-se, até:

– Você é um sonhador. Vai morrer na miséria e tuberculoso, de tanto ficar sem dormir e bebendo por aí. Você está é acobertando a sua irmã.

– A minha irmã é alguém que me ama, e que pensa como eu. Eu teria o máximo prazer em poder retribuir e acobertá-la, dando algum lugar em minha casa para ela morar também. Ela é que não quer. Quer casar com o Lalá e procriar, viver uma vida sem graça, como a mãe.

– Essa questão de sair de casa é uma coisa. A questão de aceitar a fiança do Lalá é outra coisa completamente distinta. Nós, como família, temos um projeto de economizar dinheiro e poder morar no Leblon, sair daqui. Não podemos sair gastando nosso dinheiro para despertar o seu instinto criativo. Não há lugar em nosso orçamento para essas bobagens.





– Então o senhor será meu fiador?

– Não, você não sai de casa. Esse dedetizador, explorador de donas de casa medrosas, vendedor de veneno falsificado, não irá nos jogar na sarjeta. E tampouco sua irmã continuará o namoro com ele. Aguentei demais: basta, chega. Essa é decisão do nosso tribunal familiar. Se alguém não estiver de acordo, por favor, se levante.

– Vou ao banheiro – disse Noé, e se levantou.

– Deixarei vocês à vontade – disse Lalá, e se dirigiu para a varanda. Ao cruzar o batente, olhou para trás e disse: – Seu Hermano, eu tenho um amigo que quer vender o apartamento na Rua Gastão Bahiana, Lagoa. O preço é bom. Se interessar, eu passo o contato.



Aos poucos a conversa adquiriu algum ritmo e outra direção. O silêncio se esfarrapou. Ninguém queria falar mais daquele assunto. Depois de um tempo, a mãe pediu licença para se encaminhar ao quarto para descansar, achou conveniente afirmar o seu apoio à decisão do marido.

Uma menina toda fantasiada, dourada como odalisca, com a barriga de fora, lisa e coroada pelo umbigo brilhante de purpurina, entrou perguntando pelo Noé:

– Boa noite, meu nome é Ceci. O Lalá me avisou que ele está aqui dentro. Temos uma festa para ir, alguém pode chamar ele?

E abriu um sorriso demolidor.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Plástico ou A desgraça provém da inteligência.



I love Los Angeles.
 I love Hollywood.
 They're beautiful.
 Everybody's plastic, but I love plastic.
I want to be plastic.

Escrever é como comer doces. É a minha diversão. No meu almoço, começo a escrever sobre o que se passa pela minha cabeça. Trabalho o equivalente a nove dias por semana, oito horas por dia. Minha tarefa é a de extrair todos os fios soltos dentro dos jeans exportados para o oeste. (Como são grandes as calças; queria conhecer uma pessoa que as usa.) É uma tarefa cansativa, mas fácil de ser feita; requer apenas atenção e paciência. Tenho muitas saudades dos meus pais. Eles são de Sichuan. Estou em uma grande cidade, com muitas pessoas, que falam de muitas coisas que não entendo. Nem sei se quero entender ao observar como eles vivem os seus horários de descanso.  Eles se extenuam ainda mais, precisam ocupar mais espaço, estão contaminados pela competição, que nunca se esvai, nunca termina.
            A minha colega Orquídea (ah, meu nome é: Jade.) me levou para uma reunião na associação cristã. Lá, conheci um menino que veio conversar comigo. Ele também veio de outra província, e é jogador profissional. Fica em frente ao computador, durante horas, jogando contra outros meninos do mundo inteiro, e ganha por isso. Ganha muito bem, vive rodeado de admiradores. Disse que apanhou todos os dias, ora do pai, ora da mãe, quando pequeno. Eles diziam que ele devia trabalhar e economizar, não passar o dia inteiro jogando. Ele treina, até hoje, doze horas por dia. Os pais se envergonhavam disso perante a vila. Até que o filho (SkY) mandou o seu primeiro salário. E junto com ele vieram os repórteres, a tevê, a fama. Ganharam o respeito alheio. Compraram carro, móveis, utensílios. Hoje tem orgulho do filho, que se tornou filho da aldeia inteira. Eu? Não sei qual a utilidade desses objetos. É só uma batelada de plásticos.
            Os meus pais não pedem meu dinheiro, dizem que eu devo guardá-lo para o meu uso, que vou precisar dele. Eu mando mesmo assim, separando um pouco para mim. Aqui eu tenho tudo de que preciso. Bem, a comida poderia ser um pouco melhor e mais barata, mas é suficiente. Minhas colegas são minha família. Um rapaz que trabalha comigo também frequenta as reuniões. Ele é simples, econômico, não gasta quase nada do que ganha, economiza muito. Quer ter uma fábrica igual à do patrão no futuro. Escrevi para minha mãe, contando que gosto dele. Ela me recomendou que eu escolhesse um menino de família rica, não deveria me apaixonar por alguém pobre como eu. Já esperei por ele até meia-noite, e ele não apareceu. Explicou que precisara trabalhar até tarde. Ele, todo sem jeito, me deu uma corrente dourada com uma borboleta, e quer conhecer a minha família. Nós viajaremos para as festas do final do ano.  Afinal, são dois anos fora de casa.
            Eu, Orquídea e Elegante (ela usa o corredor entre os beliches como passarela e desfila imitando o andar das modelos), escrevemos um bilhete que colocamos no bolso da calça: Jade, Orquídea e Elegante fizemos esta calça, espero que goste. Orquídea colocou os bolsos, Elegante costurou o zíper e Jade retirou as imperfeições. Somos de Sichuan, estamos curiosas para saber se você gostaria da nossa comida. Desejamos-lhe harmonia e equilíbrio.
            Hoje comprei uma calça de brim. Encontrei o bilhete no bolso. Conheci a história de uma mulher romena que se oferecia em casamento ao homem, futuro comprador da sua roupa.  Meu sogro se encarregou de fazer a tradução (a caligrafia é linda, disse ele); ele é conterrâneo, mas precisou do dicionário para traduzir. Queria agradecer, dizer o quanto gosto da comida de lá, aprendi até o preparo. Criei a expectativa, frustrada, que aqui em casa apreciassem. Não há tempo para se deliciar. Apenas se mata a fome, e o ruído que o sabor faz na boca se torna branco. Não se percebe. Nós moramos perto do aeroporto. E o som das turbinas é outro ruído branco. As mulheres cuidam dos negócios. Nós cuidamos da casa. O velho, nas horas vagas, compra Kombis decrépitas, reforma e passa adiante. Um dia a aorta se desfez nele, desmanchando nossa dupla. Eu sou afinador de piano. Trabalho nisso depois de fracassar nas outras iniciativas. Aproveitei um dom de família que não conhecia. Depois de conseguir calma, e com ela tempo, tive disposição para ouvir o meu corpo e descobrir a minha habilidade: uma audição perfeita. Capaz de distinguir as menores variações de tonalidade. Peguei intimidade com o instrumento. O piano é uma pessoa, cada um tem a sua voz. Cada som é peculiar e único. Assim como os seres humanos, ele nos trata como nós o tratamos. E, hoje em dia, o meu trabalho é cada vez mais valorizado e  menos requisitado. Em sua grande maioria, os instrumentos são mal tratados, estão em locais precários, com muita umidade, e sem uso. Eles estão ali, como artigos de decoração. Imagem. O seu interior, marteletes, feltros, cordas, cravelhas, não se movimenta, e por isso, quando sou chamado, não consigo estabelecer uma afinação estável.
            Hoje é dia da visita do afinador. Eu mesmo poderia fazer a afinação. O gosto pela perfeição, de tocar em ambientes controlados, fechados e sem qualquer ruído, permanece. Mas a perda dos movimentos da mão esquerda e da perna direita veio assim, do nada, uma mudança brusca. Primeiro, o repúdio. Não queria saber mais dele. Não podia mais tocar com ele. Cada nota da melodia, cada silêncio, tudo tem sentido, razão de ser e deve ser executado com a maior perfeição possível. Para isso é que existe a partitura e os andamentos. Somos e seremos sempre ajudantes do compositor, executores da sua inspiração. Os exercícios de fisioterapia já permitem que eu movimente a mão e a coloque sobre o teclado e o pé no pedal. Os movimentos são inexistentes. Estou aqui ao lado, esperando o fim da afinação. Como se depois dela eu pudesse tocar.
            O que a música diz para mim? É um virtuosismo do compositor, uma obra para mostrar perícia e técnica? Ou um estado do seu espírito, transformado em sons, para nos comunicar algo? Eu preciso da música para tocar piano? Ou preciso do piano para tocar música?
            É a primeira visita depois do meu incidente.  Ele chega, começa o seu trabalho, fico por ali para saber como ele encontra a afinação quatrocentos e quarenta. Ele fecha os olhos para ouvir cada som. E rapidamente encontra o padrão. Seus movimentos são precisos e delicados, as mãos são grandes e os dedos, finos.  Ao ser indagado por mim, revela que não toca. É tarde. Deveria iniciar desde muito cedo, para acostumar-se com os movimentos. Sendo a música um diálogo, deve-se começar desde muito cedo, quando se começa a falar. O som que produzimos no instrumento será a nossa palavra. A frase é o pensamento, e a música o nosso romance, conto ou novela. Cada um de nós consegue um som próprio. Um canto. Hoje eu seria, caso começasse a tocar, como aquele Kaspar Hauser. Alguém com um acento comprometedor.  Perguntou quando eu começara a tocar. Não esperou minha resposta, ele sabia que a minha comunicação é exclusivamente através da música, e eu estava mudo.
            Eu lhe dei um silêncio evasivo, envergonhado por dizer a verdade. Do antagonismo que se criara entre o piano, mim e o público. E aquela conversa estava ajudando a solucioná-lo. Eu preciso me comunicar e produzir o novo som da minha voz, com ou sem a mão esquerda, com ou sem o pé.
            Infelizmente, ele não conseguiu terminar o trabalho, um Si insistia em não dar afinação. Não conseguiu encontrar algum motivo lógico para isso. Não há componentes de plástico no meu Steinway. Ouvi minha mulher me convidando para sair. Precisamos tomar ar. Que tal fazer algumas compras?
            Trabalhar como papai Noel não é tão amistoso quanto antes. De outro lado, eu posso começar mais cedo. A partir de fins de outubro, já existe necessidade do bom velhinho. As crianças têm um padrão de comportamento. Algumas choram, outras se assustam e não largam a barra da saia da mãe. Mas a maioria ainda curte. Elas ouvem a história dos pais durante o ano todo, recebem as promessas por seu bom comportamento, e, por fim, ficam ansiosas para conhecer o que carteiro dos presentes trará. Eu sou a encarnação das histórias contadas em casa. Era professor até algum tempo atrás. Tirei algumas fotos com a roupa adequada e as distribui com meu currículo. Por cultivar uma longa barba, fui aceito rapidamente.  Desde os tempos da escola, tenho o corpo inteiro tatuado. Nas costas um belo Lúcifer.  Não me atrevo a trocar de roupa diante dos funcionários. Fiz uma permuta com o tatuador: eu lhe dou lições de desenho, em troca de uma nova tatuagem sobre o anjo caído. Escolhi o Shrek.
            Neste ano, recebi instruções drásticas a respeito do meu comportamento com as crianças. Apenas colocar a criança no colo na presença da mãe ou responsável. Não beijá-la, a não ser com expressa autorização prévia. Caso ela mesma o peça, tenho que referendar o pedido com o responsável. O beijo se transformou em um ato de comércio. A história se espalhou pela cidade, contada por um médico: um velhinho, gordinho, de vermelho, que se esgueira em uma casa, dando presentes, vindo do nada, gosta de crianças, as afaga e mima, as coloca no colo, afinal das contas, não é estranho? Não nos lembra nada? O beijo, o presente, o Natal, tudo é transação. Aos poucos, o Papai Noel se transforma apenas em uma imagem que se esvai. Todo cuidado é pouco. Até agora não há roteiro para as conversas que eu posso ter com elas. Será o próximo passo. As lojas pedem um resumo da minha conversa com elas: Tudo que você faz durante o ano é jogado dentro deste saco, e no dia do Natal ele é devolvido, transformado em presente. Já estou pronto para repetir uma séria de palavras programadas, insípidas. Basta mais um colega assaltar um banco.  E um daqueles robôs japoneses de plástico virá me substituir. 
            Observo a aproximação de três mães, carregadas de sacolas, com quatro crianças irrequietas, exceto uma, menina, que se aproximou para conversar, as demais ficaram correndo, subindo nas palmeiras artificiais, se debruçando no parapeito, chamando as outras. Uma menina de três anos, cabelinho preso no alto da cabeça, roupa de bailarina, com sapatilhas. Disse que foi fazer um ensaio. Enquanto ela fala, eu mostro alguns brinquedos que estão ao meu lado. Ela fica séria, olhando cada um, cuidadosamente, enquanto ouço a conversa das mães:
            - A Gina tem um belo de um casamento. O marido é executivo, ganha muito bem, ela é mãe em período integral, com babá, motorista e empregadas. Ano que vem, o destino é a Índia. Vai ficar seis meses, fazendo retiro.
            - A Andréa também. O marido é mais novo. Bonito, musculoso, carinhoso, cheio de amor pra dar e bom humor. Está feliz e satisfeita. Executiva, nem pensa em ter filhos. Contou que na semana passada trocou de carro com o marido e sem querer encontrou no console cupom da farmácia, registrando a venda de um energético e um pacote de camisinhas. Ele não usa, diz que detesta, e nunca o viu bebendo. Ela está pirando.
            - A Alexandra, coitada, é a pior de todas. Casou por amor. Com três filhos, o terceiro veio sem pedir licença. Os dois trabalham e o marido ganha pouco.
            A bailarina se aproxima da caixa contendo uma caravela, desmontada, do Pirata Barba Roxa, com seiscentas peças de encaixe, plásticas. Indicado para crianças com mais de seis anos: é minha obrigação tirar o brinquedo das mãos dela, antes que engula uma peça.
            Batalhei um emprego de grumete. Navio cargueiro. Uma maneira barata de viajar. Tenho algum dinheiro, não o suficiente para comprar passagem. O dinheiro não é importante para viajar. Para ela, o que importa é a vontade. No meu caso, além dela, tenho impressão de que as pessoas ao meu redor tentam me intimidar, me prender, tornar a minha vida uma prisão. Não reajo, fujo. Talvez seja uma impressão falsa, apenas uma incapacidade de respeitar, após reconhecer o diferente. Prefiro idealizar. Conhecendo pessoas diferentes, na superfície, ali aonde reina: companheirismo, ideais elevados, ajuda humanitária.
            A minha família é católica apostólica romana. E ponto final. Contei para minha velha uma lenda chinesa da dinastia Qing. Da deusa Nüwa, a criadora dos homens. Logo depois da separação do céu e da Terra, resolveu tomar da argila amarela para moldar várias crianças à sua imagem e semelhança; ao se sentir cansada, pegou uma corda, embebeu no mesmo material e passou a balançá-la. Daqueles pingos caídos, criou uma miríade de homens. Os ricos criados na primeira leva, e os pobres, na segunda. Mostrei para ela os pontos de contato entre as nossas histórias, o lirismo oriental. E fui excomungado. “Jesus ensinou que é contra os planos de Deus a existência de duas categorias de pessoas: ricos e  pobres. Os bens são de todos, e quem tem mais deve dividir com quem tem menos.”
            Navegamos rumo a um porto na Califórnia. E, na superfície do Pacífico, consigo ver uma baleia vestida com um saco plástico na barbatana. Um marujo mais experiente me contou de um lixão mais ao norte com centenas de milhões de toneladas de plástico. Nos barcos pesqueiros, quando se passa a rede para plâncton, a quantidade de plástico é muito maior que a de animais. O plástico se fragmenta com a ação da luz do sol e os pequenos pedaços são comidos pelos peixes. Há  necessidade de ser muito inteligente para concluir que já estamos comendo plástico? E se os peixes morrem de anemia, com a barriga cheia de plástico, quando chegará a nossa vez?
            Conheci São Francisco na minha folga durante os jogos de Warcraft Series. Precisava relaxar. Cassandra, minha namorada, além de ser uma das melhoras jogadoras de cyber games, é alguém com quem a conversa se desenvolve naturalmente. A gente se entende muito bem, em todos os sentidos. Ela não tem nada de oriental, só a aparência. É gata, foi eleita a menina mais bonita de Macau. Nós convivemos na mesma plataforma. Como se o game saísse da tela e continuasse para sempre, real. Ela ajuda na estratégia. Treina comigo. Exige muito de mim. Fico pilhadíssimo. 
            Tive uma discussão estúpida com o americano. Não estou interessado em participar dos campeonatos esportivos pelos prêmios oficiais. Eu tenho uma legião de fãs. E a capacidade de gerar receitas fabulosas para a fábrica. Estimulo as pessoas a comprar o jogo e acessórios.  E recebo prêmios de alguns mil dólares? Não. Viajo o mundo inteiro, estou verde, sem vida. Eu gosto de jogar, mas sei que minha capacidade vai declinar com o tempo, não dá para manter a mesma performance. Conseguirei sobreviver até os trinta anos, no máximo. E depois? Ele ficou de pensar em uma nova proposta. Adiantou que só dinheiro de plástico, para não pagar mais impostos e coisa e tal. Cassandra me aconselhou a contratar um agente. Para não perder o foco, a paciência. O jogo.
            Em Los Angeles, vou jogar a final do campeonato com um chinês (SkY). Ele joga utilizando os “Humanos”, uma raça considerada predominantemente defensiva. Graças à sua capacidade de construir muitas pontes, moinhos e depósitos, aliada à tremenda quantidade de soldados, venceu com a agressividade tudo que é oponente até agora. Eu já passei por vários coreanos, estou acostumado com a rapidez deles. O forte do meu jogo é a malícia e a esperteza de atacar nos lugares mais inesperados. Graças a Cassandra, consegui a ficha completa dele. Os fatores além do jogo. A namorada dele não suporta o assédio das outras meninas, acredita que isso não é vida de gente honesta. Tem problemas de coração e não quer se submeter mais a essa separação absurda entre os mundos: quer um só para ela.


Essa narrativa seria impossível sem a ajuda de:
André de Leones; Mikhail Bulgákov; Contos sobrenaturais chineses (Márcia Schmaltz e Sérgio Capparelli);  Documentários da TV Cultura.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O resgate do mineiro.

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E, meu infeliz modo de ser –
que não posso evitar, pois nasci com ele –
consiste em sussurrar uma mansa exortação
 a quem está fora de juízo.
 F. Kafka.


Intimidade planejada. Conseguira arquitetar a casa com detalhes que a transformaram em um lugar só seu. Confortável e seguro. E, dos poucos compartimentos da casa, o quarto foi objeto de atenção especial. Ficava ao final, compunha-se de quatro paredes e um pequeno anexo para roupas. Dos quatro limites, um não fazia ângulo de noventa graus, mas subia em rampa na direção do teto, alongava-se para a vista, dando a sensação de se estar dentro de uma casca de noz, com o  piso sem aquelas ranhuras e reentrâncias. Na parede, protetora e amiga, pendurou uma grande tela de tevê.  Um estofado confortável, com várias almofadas, fazia dupla com um momento retangular feito tapete: um convite para se deitar. Outra parede se destinava às reproduções dos seus artistas prediletos. Aceitava-os como um momento de paz, para olhar a composição e imaginar suas cores. Contra o fundo cinza e seus holofotes.  Outra parede foi destinada à janela em forma de escotilha. Fazia oposição à das pinturas, e mostrava a parte que lhe coubera do mundo. Ali, também instalara uma escrivaninha com papel, lápis, borracha e telefone. Sobre o tampo, havia um quebra-luz para as noites de insônia. Na última parede, ficava a cama de casal e uma grande banheira. Estavam separadas por paredes de vidro corrediço. Esse era o seu grande luxo, o banho de água morna, o momento sublime entre o sonho e a realidade. Utilizava invariavelmente um grande número de toalhas. Dois discretos lavatórios e sanitários não conversavam entre si, muito menos com a ducha. Exagerou no branco e nos metálicos, dando uma aparência dura, que a névoa da água amaciava e o calor dos corpos atenuava.

Preparava-se com a calma costumeira para seu dia. Dormira nu, como sempre; primeiro se livrava dos excessos do dia anterior. Depois, gostava de relembrar o gosto da água da fonte e tomava um copo com indisfarçável prazer. Uma oração à mente. Tinha à mão uma jarra de água, trocada diariamente para preservar o frescor. Estava inteiro nesse momento, vazio, sem pensamentos, revigorando-se. Acostumou-se a ficar perdido dentro de si na maior parte do tempo. Naqueles minutos, seu corpo se reconstruía. Ocupava-se em acomodar a pasta sobre as cerdas da escova. Seis horas da manhã.

Por um pequeno instante, pensou ter visto a mulher conversando ao telefone. Não permitiu que isso abalasse seu método. Seguiu gole a gole, até a metade daquele cristal feito copo. Podia sentir o efeito de cada um deles no seu organismo. Um revigorante formidável. Água sorvida aos poucos, com calma e intimidade. Levava a macia escova à boca.


Outro corpo de mulher, trajado com um tailleur escuro, adentrou o ambiente. Explodiu o instante.  Encaminhou-se para o banheiro, depois de um olhar curioso sobre aquele copo d’água. Conseguiu exortar a mulher deitada sobre o que estava acontecendo. ‘Não posso falar agora, use o outro banheiro’.


Momentos de paz: sua coleção de filmes. Escolhera pacientemente cada um deles. Crescera em um ambiente monótono e hostil, onde cada um se preocupava apenas com sua própria vida. Não sabia se fora um fruto desse ambiente, ou se já nascera com a disposição de obedecer às ordens que recebia. Constituiu-se nela a irresistível natureza de criado. Embaraçava-se para negar a opinião alheia.

                                                                                          
Não buscara a razão como base para a escolha. Todas as opiniões tinham a mesma validade das nuvens. E se comportavam como elas, belas, indiferentes e inúteis, a não ser quando o distraíam. Dava como exemplo o pensamento embutido na seguinte frase: “Todos os Romanos que conheço são velhacos”. A maior verdade dele era inútil para todos os outros. A primeira coleção se constituiu de fitas de vídeo-cassete. Fez um armário próprio para elas. Organizadas pelo nome do diretor. Não as separou por categoria ou gênero. Seu critério: subjetivo. Também não catalogou por títulos. (Observou alguém entrar em uma livraria pedindo: Crime e Castigo, e o vendedor indicando os fundos da loja, dizendo que os livros de Direito estavam na última estante à direita.) Assistiu à vida dos outros transcorrendo no suave desenrolar da fita magnética (ignorava os rangidos rascantes do mecanismo), e conseguiu dar mais cor à própria vida. 


Com a sua primeira separação, não restara uma fita sequer. Todas ficaram armazenadas em seu local de origem: o armário dentro da casa, agora dela.


Iniciara outra coleção sob outra plataforma. Reconstruíra o armário em outra casa, ambos menores. Os pequenos discos versáteis digitais ocupavam menos espaço. Reeditou o seu catálogo original. Operou nele duas alterações. Adicionara um diretor: Eric Rohmer. Gostava de ouvir os longos diálogos, sabia alguns de cor. Ouvia-os com frequência, com ou sem legendas, para apreciar a música das palavras. O Raio Verde: a sua história predileta. Apesar de todas serem regulares, sem ápices ou sopés, deixavam um sabor especial destinado ao futuro remoto, algo que ameaçava irromper e modificar a história. Adicionara um filme: Os Duelistas.

Quando alguém pedia um filme emprestado, alegava a necessidade  de fazer algumas anotações (mentira) em seu bloco de notas (mentira) antes do empréstimo (mentira). Em seguida, saía e comprava uma cópia  para o “empréstimo”. Porque ninguém os devolvia.

Encontrara uma moça nua, sentada diante do seu armário. Pernas cruzadas apoiadas sobre os tornozelos, com flores coloridas tatuadas subindo desde as faces externas dos braços. Escolhia calmamente alguns filmes. Formou uma pilha de oito unidades (conseguira contar). Ouvira dela uma antologia dos bons sentimentos  (a promessa de devolução) e uma opinião:  não há na coleção nenhum DVD de alta definição. Blu-ray. Começarei hoje. Esta fora a última frase entre ambos.

Almoço na praia. Um lugar com uma rede para jogar vôlei, aproveitar a temperatura agradável e brincar com os filhos.  Duas crianças que logo encontraram outras e formaram dois times. Deixavam o tempo passar com preguiça. Fim de semana. Um pequeno ambiente particular.  Aquela faixa de areia que se estendia desde um quiosque redondo com telhado de sapé, abrigando a grande mesa afundada na areia fina, onde todas as roupas ficaram jogadas, passando pela “quadra” até atingir a fímbria do mar. Combinaram de tomar sorvete, comer camarão ou peixe, asinhas de pintado, enfim, o que a praia oferecesse. O que apareceu primeiro foi a água de coco. Logo depois, uma tartaruga. Ficou por ali, deitada; parecia apreciar o jogo. Os filhos se divertiam muito. O mar estava calmo. Depois da primeira partida, as outras crianças se espalharam e eles se atiraram no mar. Ficaram os três boiando. Salgando o corpo. Crescendo juntos. Voltaram às suas toalhas, deitaram sonolentos até que a fome os despertasse. Resolveram andar um pouco.


Adiante encontraram uma grande tenda branca, em estilo oriental, fazia uma grande sombra na areia. Lotada. Diante dela vários guarda-sóis quadrados cobrindo conjuntos de mesa e cadeiras (metal e acrílicos em azul). Tentavam confundir-se com a paisagem. Espreguiçadeiras brancas ladeadas de apoios (tocos troncos rústicos). Garrafas de champanhe, suados baldes de gelo, cesta de frutas. Maçãs, mangas, uvas, amoras, bananas e abacaxis. Uma alameda de madeira subia pela elevação onde árvores suportavam redes e os corpos bêbados de sol e sono.


Eles passavam por ali quando foram chamados por um homenzarrão de bigode vermelho. Uma sunga sumária continha com muito custo partes do seu corpo.  Agitava as suas mãos fazendo sinal para que se aproximassem.  Quando a imagem ficou mais nítida e próxima, reconheceu o cliente que o contratara para decorar suas propriedades. Ele arquitetara o final de semana para ficar com os filhos. Filhos cujas mães, diferentes, se odiavam.  Respondia educadamente a cada indagação. Não possuía casa por ali, estava apenas em uma pousada durante o final de semana (mentira). Ele foi apresentado à esposa e ao casal de filhos. A moça, bem parecida com o pai, alta, desengonçada, de feições duras, largas e sérias. O menino se parecia com a mãe, mirrado, moreno, pilotava um pequeno veículo próprio para as dunas e se vangloriava de tê-lo desmontado e montado completamente, sem a ajuda do pai. Seria um ótimo engenheiro elétrico, algo que o pai não conseguira. Ele importava móveis e utensílios de bambu da China. Passava todos os finais de semana naquela praia e aproveitou para fazer ali uma exposição dos seus produtos. Convidou-os para o almoço, junto com seus outros amigos. Ele agradeceu (não encontrou nenhuma desculpa viável para a recusa) e chamou os filhos para perto, contou do convite. Já se dirigia com os anfitriões para uma das mesas, a principal, do pater familias, quando seu o filho o interpelou: Eu não vou, pai. Quero ir para a nossa casa.

O pai tentou argumentar. O filho abaixou o tom de voz, o suficiente para ser ouvido. Aqui tem muita gente. Eu não os conheço. Queria ficar lá em casa. Rejeitado, o cliente argumentou que estava  preparando  pessoalmente os caranguejos. Havia reservado três, daqueles bem grandes (garra enorme), e pediu para alguém os trazer.  Chegaram agora. O filho, quando os viu, aquelas pinças, as couraças da cor da sua própria pele,  o martelo, olhou para o dono e decretou. Não, muito obrigado. A não ser que meu pai queira. Aí eu fico. Só o par de olhos do pai respirava ao encontrar os do patrão.

Fazendo o caminho de volta, deram de cara com a eclosão dos ovos das tartarugas. Puseram-se sobre os joelhos para acompanhar o caminho dos filhotes, inúmeros deles, até o regaço das águas. Exceto um, enredado em uma cova daquele areal úmido.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Perdição das árvores


Pai, lá no alto, são fogueiras ou estrelas?
Cesare Pavese.


Aquietando o pensamento, rodo até encontrar a lareira. O fogo será preparado por um jovem meticuloso, um cadete de cabelos grossos, curtos, claros e espetados. Ele escolhe da pilha, cada indivíduo, e os coloca um ao lado do outro, formando um quadrado; dispõe os demais lenhos em simetria, de sorte que cada um se apóie sobre o outro pelas extremidades, subindo quatro paredes ventiladas. Resta ao final uma coluna de centro oco. Ele preenche aquele miolo com aparas, cavacos, varetas, ripas e gravetos. 

A assembléia está organizada, mas ainda não está pronta.

Entre aqueles seres diferentes e organizados, insere os provocadores: feitos de folhas de antigos jornais amassados, enrolados, adquirem a forma de línguas, e são enfiadas, calcadas, em cada brecha das paredes da torre. Ficou produzido um todo indistinguível em suas partes. Lenho, lignina, celulose.  Canetti a chamaria de massa ou multidão.
O cadete responde ao patrão quando perguntado se a madeira estaria boa para fazer fogo: “Sim, é boa, é seca e não é verde. A verde queima devagar e faz muita fumaça. Faz um fogo ardido, pálido, esfumaçado.”
Pronto: pega do seu isqueiro, bate a pedra e faz a chama; aproximando-a das pontas daquelas línguas, aqui, ali, acolá, todas colocadas, estrategicamente, em seus cantos. E aquela labareda primitiva ganha corpo insano: brasas, línguas, incêndio, vir a ser carvão.
Não é o fogo gordo do Braga, é magro e alto e irritadiço. As pequenas labaredas formadas na lenha que ficou no rés do chão se atraem e se lambem, mesclam-se com os cavacos, e assumem o discurso único. Escandescer.
De repente, aquela figura se desestrutura.
Há um estalar, uma explosão surda, e as peças ruem. Cada uma se derruba em direção ao centro, e, ao cair, faz uma farândola de faíscas sugadas com estardalhaço pela chaminé.
Os gases liberados vão se transformando numa só rampa de borboletas.”
Resta um ser solitário. Caído ao lado, ainda íntegro, próximo ao centro, foi parcialmente atingido, ardeu ao ponto de criar uma cresta negra na superfície. Está livre da ameaça da queima completa (Eppur si muove).
O crepitar das chamas se apazigua, e o fogo parece querer deitar e dormir: não passa de uma ilusão.
O cadete toma do atiçador, começa a bulir, e logo a fogueira espirra e recompõe a força da destruição, retomando o vigor daquela conspiração entre os jornais e a arraia, sem seiva, miúda. Pipoca das cinzas um tição que pula e bate na tela da lareira, e ao voltar cai em cima dos outros salvados. Eles, que resistiam até aquele momento, também enrubescem e não conseguem resistir mais.

“Fogos azuis não geram fogos azuis. Fogos crepitantes não herdam a crepitação do fogo-pai que cuspiu sua fagulha iniciadora. Os fogos apresentam reprodução sem hereditariedade.”

Aqui, no alto da montanha, não houve eternidade, não se cultuou os deuses, não se buscou a justiça entre os homens. Apenas segui duas delgadas nuvens em forma de linhas paralelas até este ponto, onde a nuvem cúmulo se esgarçava em mil outros pedaços, por sobre a casa, sugerindo-me o destino: o de fecundar céu quando queimado.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A vida dos espelhos.




Pedir é melancólico. Mas dar o é ainda mais.
- Rubem Fonseca

Ele passou por um portão gradeado. Foi atendido e encaminhado para um ambiente ornado com móveis torneados da nogueira. As cortinas quase fechadas ofereciam a nesga onde ele via a piscina completamente azul e a folhagem cerrada sobre o verde-musgo. Submerso nas almofadas do sofá, aguardou Dulce.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

"Eu te darei o céu."





Levítico.
Aquilo que jamais poderei fazer: comer alimentos que contenham fermento durante a Páscoa, vestir roupas feitas com tecidos mistos (linho com algodão), comer frutas de árvores com menos de cinco anos. Isso não é problema para mim, eu gosto de seguir regras. Elas sempre serão os sinais avançados da minha salvação. Fui autorizado pelo rabino a cortar a minha barba. Afinal de contas, ela é mesmo tão rala, quase invisível. Conversei também a respeito da alegria da música, do seu caráter misterioso, e dos efeitos que ela produz em mim. Quando canto, não gaguejo. Cantando, faço com que meus pesadelos desapareçam. O touro que sai de dentro do mar avança contra mim, bufando e apontando seus chifres, desaparece das minhas noites. Não acordo mais suando medo. O rabino recomendou que eu me afastasse do vício do onanismo.

Está no ar: Histórias Possíveis 59 . Onde você encontrará a continuação desta história. E mais, muito mais. Obrigado, desde já.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Hoje foi um dia tão dinâmico.




Ele amava mais o Japão que ela
 involuntariamente representava
do que ela própria;
 amava a fuga, não o fato.
Daniel Piza.



O senhor, depois, me passa os dados?
Quais dados? — perguntou Pedro.
Esqueceu?
Hã?... Não, só não me lembro agora.
Pode deixar — fazendo menção de sair.
Se você me lembrasse, talvez...
Deixa pra lá. Obrigado — e deixou a sala, fechando a porta atrás de si.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

“Acho apertadas minhas roupas do amanhã.”




“Quando Salomão chorava pela morte do seu filho
 e alguém lhe disse: “Você não alcança nada com isso”,
ele retrucou: “É exatamente por isso que choro,
porque nada alcanço.” Elias Canetti


Siga a linha verde. Foi o comando que ouvi logo na primeira vez. Olhei para o chão e acompanhei a linha até ser barrado pela porta do elevador. Ao sair, demorei alguns instantes para recapturá-la. Eu a segui pelas alamedas coloridas com flores artificiais, bustos beneméritos, arejadas por janelas cerradas. Ao longe, alguns morros, o ziguezague do asfalto e do o meu pensamento.


Faz algum tempo que trabalho com crianças. Não fiquei doente e retribuo algo, não tive desilusão na vida profissional, não tive disciplina para estudar a ciência. Preferi enfrentar a tarefa de trazer alegria para as crianças doentes. Elas não precisam de quase nada. Apenas alguém vestido com roupas coloridas, um rosto expressivo, mesmo artificial, um sorriso farto, à Bandeira que engoliu um piano, e disposição para contar histórias.

É difícil ao adulto deixar de pensar no fim anunciado de uma criança. Muito difícil, até o momento em que se percebe que elas mesmas não estão nem aí. E aprendo. Não sabem ou, se sabem, não se importam. Querem se divertir. Elas têm dentro de si tudo de bom e tudo de mau concentrado e sem controle. Elas são o próprio disfarce, não se escondem. Brincam com a mesma destreza com que brigam. Aquela que ultrapassou a linha, a que tomou o seu brinquedo,  mesmo a outra que ri dela por qualquer motivo. Riem. Empurram. Estapeiam. Choram. Riem. Expandem-se. Sem hiatos. Tudo fica colorido, não existe silêncio. São ondas de palavras, gestos e tropelias que se sucedem. A piedade se esvai e me concentro: ao redemoinho acrescento a terapêutica.


Para mim, foi muito difícil manter o distanciamento. As crianças em geral são encantadoras. Existem as pestes, claro, mas são assim por pouco tempo. Basta pegar o jeito de cada uma e pronto, nada mais dá errado. Elas precisam e querem atenção e brincadeiras. Falam tudo muito sério, mesmo brincando. Consegui, pouco a pouco, uma distância saudável.
A minha fantasia é constituída de: dois sapatos grandes e cambaios, sempre na posição ‘dez para as duas’, bico descolado se abrindo em uma boca banguela, terno de tecido xadrez, bem folgado escondendo meus ossos, a camisa listrada de colarinho branco, muito largo, coco e bengala. Gosto de rodá-la, imitando o gesto famoso de Chaplin. O colarinho esconde meu rosto de repente, eu desapareço.


Faço o meu trabalho com prazer. Nem dó, nem rotina. Meu trabalho é brincar; todas as atividades protocolares são complementares. Eu mesmo inventei uma brincadeira. No momento máximo da diversão, seja por algo que a criança falou ou fez, seja por alguma coisa que eu falei ou fiz, eu desapareço. Faço o meu colarinho subir e todas se surpreendem e adoram o gesto. Olha, o Piolim desapareceu. Olha, olha... É o momento mágico. O desaparecer é um prêmio. Elas conseguiram. Eu consegui.


A linha verde seguiu, eu parei diante do número oitocentos e dezoito. Bati e entrei. A mulher na cama dirigiu-me um olhar opaco, parado pela catarata, seus cabelos fartos brigando com as raízes brancas. O rosto cansado, com o lábio inferior meio aberto, perguntava-me o que eu queria.  O doutor Petrônio pediu que eu viesse vê-la, quem sabe eu consigo animar um pouco a senhora. Não. Não sou médico. Eu trabalho com as crianças doentes do hospital. É uma situação difícil, encontrar um adulto muito doente. Não sabia exatamente como fazer para animar a pessoa. Depressão é fisiológica. Algo a ser resolvido por medicamentos.  Foi impossível negar o pedido. Apenas tive tempo de trocar o terno e tirar a máscara, fiquei com a camisa. Aproximei do leito e me sentei. E puxei conversa:

O seu lugar não é aqui, não.
É, eu sei. Meus filhos querem de todo jeito me tratar. Eu não tenho nada.
Ah. O doutor Petrônio...
Ele está procurando encontrar alguma coisa. Já me virou de ponta cabeça e não achou nada. Agora está dizendo que estou deprimida.
Ele é muito cuidadoso, talvez tenha razão.
Razão. Razão, qual o quê? O senhor também vai começar?
A senhora tem quantos filhos?
Um casal. Os dois na casa dos quarenta, sete anos de diferença entre si.
Eles estão bem?
Eles são muito preparados e estudiosos, têm uma vida boa, não precisam de ninguém. Só não sabem escolher parceiros. A esposa de um e o marido da outra não são boa coisa.

Ele faz a sua filha servir o café na cama, e o seu filho serve café para sua nora?
O senhor os conhece?
Não, eu só imaginei. Eles estiveram aqui hoje?
Não, eles veem ao sair do trabalho e quando dá. As visitas são até as nove horas e muitas vezes chega um, não vem o outro. E assim vou levando.
A senhora mora sozinha?
Moro. Não consigo me adaptar na casa de um, nem na casa do outro. Eles querem colocar uma pessoa para ficar comigo, o senhor acredita nisso? Como se eu fosse uma velha.
Compreendo. Mas, será que não existe uma alternativa?
Claro, um remedinho pra dormir. Eu estou pedindo para o doutor, desde que entrei, um remedinho pra dormir e eu fico boa.
Talvez uma médica pediatra, quero dizer, psiquiatra?
Louca? O senhor está me chamando de louca?
Não... desculpe, imagine só.
O que eu tenho na minha cabeça é segredo meu. Ninguém vai me tirar.
Eu trato os meus pacientes com alegria, e só. E quero ver se a senhora concorda em fazer alguma coisa parecida.
...?
Eu tento descobrir a palavra ou frase que a consola, e a coloca  fora da cama. Se eu acertar, vou embora. Se eu errar, quem some é a senhora: toma o remédio. Vamos nessa?
Diga a palavra, vamos ver o que é isso.
Trazer seus filhos para passar os próximos dias aqui. E quem sabe morar com a senhora, na sua casa?
....
(Um gato aparece e se aninha à beira da cama.)
Eu subi meu colarinho, e a velhinha quase engasgou de tanto rir.

Saí, segui a linha verde até o número oitocentos e vinte sete. Um homem,  cabelos vermelhos e ralos, emplastados, úmidos e colados no crânio. As mãos por sobre o lençol. Os pés grandes fora da coberta, encostados na grade da cama, davam a noção de sua altura. Ombros largos, a tipóia suportava o seu braço direito. A mosca se destacava no rosto sob o lábio. Emagrecido e comprido, a pele muito branca destacava o castanho meigo dos olhos. A aparência era dócil, a fidalguia ancestral se esvaía.
Bom dia eu disse olhando pela fresta da porta.
Entre. Em que posso ajudá-lo? Sussurrou as palavras.
O Doutor Petrônio...
Ah, seja bem vindo. Sente-se.
Ele me disse que o senhor está triste. E falou que talvez se eu ...
Ele é gente muito boa, pena que não cura um canceroso. Precisa ser mais que gente boa pra isso.

Faz quanto tempo que o senhor está doente?
Cinco anos, agora encontrei um remédio muito bom. Eles estão fabricando na Índia e nos Estados Unidos. Os estadunidenses ainda estão aprovando na FDA, mas assinei um documento me responsabilizando pelos efeitos colaterais. Eu tomava talidomida. Hoje, existe uma nova geração, mais potente, que foi desenvolvida para o combate ao mieloma múltiplo: LenaLid
Câncer?
É. Na medula. Recebi o exame indicando a compatibilidade perfeita do meu irmão para o transplante. A médica me disse que há uma grande chance de curar o câncer e ficar com outro problema no cérebro. O que me adianta curar da doença e ficar idiota? Além do mais, meu irmão é um folgado, não quero ficar devendo nada pra ele.
E a tipóia, o que houve?
Levantei uma jarra para beber água e quebrei a clavícula. Agora o médico me disse que a outra também está quebrada. Sumiram três costelas nestes últimos dias. Estou com uma osteoporose em níveis sem precedentes aqui.
E já conseguiu o remédio?
Ainda não, estou fazendo tentativas de importação, ou da Índia, que além de ser mais barato não tem tanta frescura, ou de qualquer lugar, desde que chegue rápido. Me dê a sua mão, por favor, quero me levantar.

Tratava os médicos com muito bom humor, a fisioterapeuta falava longamente sobre o marido e dos filhos. Disse que ela devia causar muito ciúme no marido, por ser tão bonita e cuidar de tantos pacientes. Às vezes, seu rosto tinha um esgar de dor. Tocava a campainha e pedia para que se regulasse a dosagem de morfina. Ele pediu que a mãe e a esposa se retirassem, enquanto eu estava lá.  Expus a minha missão: deixá-lo melhor. E fiz o mesmo trato que havia feito antes. Ele ainda me disse:
Bem, seu eu ganhar você some, e se eu perder, eu sumo? Não é nada justo, eu ganho de qualquer forma, mas vamos lá.
Saí de lá, troquei minha roupa, coloquei o terno habitual em cores alegres, fui até a enfermaria, fiz a minha maquiagem e ganhei tempo.


Ao voltar, ele tomou um susto com a minha aparência, principalmente o nariz vermelho, que o lembrou da irmã e da mãe quando choravam. Fiz uma pequena demonstração da minha acrobacia subindo no monociclo: joguei dez bolinhas no ar ao mesmo tempo, consegui encaixá-las todas no meu chapéu. Pulei.
(O gato subiu na cama, olha fixamente.)
Consegui importar o remédio para você, e o seu plano de saúde pagará por tudo e o doutor Petrônio conseguiu tirar você da enfermaria.
Subi o meu colarinho e desapareci. Andando de costas até encontrar a porta. Ainda ouvi um chamado de meu nome.
Precisava esperar o médico. Chega, não segui a linha verde. Escolhi: vermelha. Cafeteria. Lá encontrei um paciente que acabara de chegar trazido pela mãe. Pólio: membros inferiores. Estava todo sorridente, havia comido pão doce com manteiga, algo rigorosamente proibido pela mãe, exceto nos dias de fisioterapia. Ele me pediu que o levasse até a sua ala. A nossa ala.
“’A gente dorme’, diz ele à criança, ‘mas a gente não desperta mais.’ ‘Eu sempre desperto’, diz a criança alegremente.”