terça-feira, 14 de julho de 2009

Tartã




Se pudéssemos ver o homem, o entenderíamos


Ascídio desce a escada que ascende do subsolo. Trabalha lá embaixo. Perna esquerda mais curta e braço esquerdo mais longo. Gosta de comer ouriço do mar, sempre diz que são parentes entre si, mas não é canibal, o parentesco é distante, tampouco se considera um marciano, talvez uma deformação de estrela marinha. Queda-se lá, mesa cheia de papéis que passam, param e tomam outro destino. Guarda alguns para suas anotações naqueles sem mais serventia. Dentro do gabinete resta como paisagem, enterrado em uma pedra submersa, apenas aparecendo em festas e reuniões com muitas pessoas. As tarefas do trabalho para o qual foi contratado terminaram, entretanto sua movimentação constante, sua atribulação aparente e seu ar sempre ocupado simulam a sua indispensabilidade.

Em tempos passados usou um boné pensador, chamando a atenção sobre si de maneira inconveniente. Todos o olharam e viam algo que o conduziria à morte. Pessoas desconhecidas, tendo ouvido falar do chapéu, vieram vê-lo; não assim frente a frente, mas, arranjando algo para fazer no departamento, olhavam para ele de soslaio. Ascídio compreendeu, então, o destino dos olhados em demasia. Todo examinado é uma cópia fiel do examinador. É a si próprio que o outro vê. O chapéu é um acumular dos ódios alheios. Teve apenas um amigo no passado, já distante, um boxeador. Depois dele, seus amigos residiam no futuro. Não conheceu, ao longo da vida efêmera, outro alguém que o olhasse para compreendê-lo, para pensar sobre diferenças. Considerava-se um ponto fora da curva, desprezado para efeito de análise ou consideração. Era o raciocínio que lhe dava segurança. E foi assim que deixou de usar o seu chapéu.

Consultou um ortopedista. Queria saber se havia alguma maneira de tratar o crescimento ímpar de seus membros. Sonhava em ter um aspecto normalizado. Foi atendido pelo assistente do Doutor Nicolau Capote, tirou suas roupas e deitou-se na maca do médico. O assistente apalpou, examinou, consultou os reflexos por todo o corpo, perguntou de sua ascendência, de seus hábitos, analisou todos os exames de laboratório pedidos preliminarmente. E, passo a passo, passou suas impressões ao doutor Capote. Este, de repente, levantou-se e fez algumas considerações a respeito daqueles resultados ao residente. Uma pergunta ou outra, e deu o seu diagnóstico. O mestre mandou. E disse bem: coloque um salto maior no pé afetado e mande fazer suas roupas sob medida e ninguém notará.

Mesmo insatisfeito com o resultado, conformou-se e seguiu sua vida. Encontrou um galego residente no Brasil, há muitos anos, alto, gordo, calvo, claro e sardento, um negro faiscante no olhar curioso, um ligeiro tremer de mãos, adorador de tangos, dançarino desde moço, aprendeu a costurar e fez o seu primeiro terno em linho ‘cento e vinte’. Altivo e formal, conheceu aquela com quem se casaria em um baile e se apaixonou. Pediu a ela autorização para ir ao seu último carnaval sozinho. Autorizado, se esbaldou e nunca mais foi boêmio. Só alfaiate. Combinou com ele o preço, a forma de pagamento. Fez provas intermináveis onde contava as gravações do Gardel, do seu acervo de discos de setenta e oito rotações, gabava-se de ter a maior coleção da América, jamais tivera conhecimento de outra que lhe chegasse aos pés. Experimentei o conjunto e percebi que a perna esquerda da calça estava mais longa e o braço esquerdo mais curto. Olhou para o senhor Salvador e disse: “Está fora das medidas, senhor Salvador.” “ É, mando fazer a calça em um calceiro e o paletó é costurado pela minha mulher. Talvez ambos pensaram que eu me enganei nas medidas. Deve ser isso.”

Ele amarra e desamarra seus sapatos pelo menos uma vez, todos os dias. Os cadarços não chamam a atenção, auxiliam e atacam seus furos, sem reclamo, exigência, eles estão sempre lá no seu lugar, semiprontos para o dia seguinte. Certo dia, o ourelo se racha, o do pé esquerdo. O capuz cônico e brilhante dia após dia vai se desfazendo. Logo pensa em trocá-lo, por outro, mais novo, ele passa a requerer mais atenção. Deve juntar primeiro os fios da ponta, agora soltos, numa forma afilada, para penetrar o buraco do ilhó da aba esquerda que cobre a lingüeta, e preparar o laço final. Ao mesmo tempo passa a olhá-lo com desvelo, concluindo não ser justo atirá-lo fora pelo problema no cabeço. Ele ainda serve. Além de não jogar fora o outro, do par. (A compra é sempre feita aos pares.) Amarrar os sapatos é agora uma tarefa cuidadosa e demorada, não mais automática. Faz uma escultura instantânea e fugaz dos fios. Existem fios longitudinais e transversais, cada um forma uma estrutura, o urdume ou urdidura, este último a trama, eles se juntam em duas pontas agudas e passam perfeitamente para o outro lado e se encontram no laço final. Olha cuidadosamente para o calçado, e descobre a alma dele, assim como o atacador também. Ele é uma síntese. Durante um bom tempo, ele esculpe todas as manhãs. Um dia, um dos fios fica mais comprido que os demais, ele se estica à frente colocando o pescoço de fora, talvez um ato de rebeldia, pela torção constante que passou a sofrer. Ele o puxa para fora, e corta com as unhas. No dia seguinte, andava por uma calçada, quando alguém que o acompanhava, parou se abaixou e puxou um fio que aparecia e se arrastava sob a barra da calça, fazendo-lhe o favor. Chegando a casa, Ascídio percebeu. A trama se desfez até metade do cadarço, ele agora se resume numa rama de fios soltos até a metade. Antes de jogá-lo fora, amarro o meu pé esquerdo com ele pela última vez, apenas até o penúltimo dos ilhoses.

Folheando o jornal, uma notícia de falecimento trouxe à lembrança, a presença quase física do amigo, depois de vinte anos de sua morte. Um escritor que se exilara de sua terra natal, viveu grande parte de sua vida em uma remota ilha na Ásia. Escrevia apenas sobre o futuro, o passado servindo para mostrar as várias probabilidades dele. O presente ele vivia apenas para o mergulho e as crianças. Essa ilha e sua Grande Barreira de Coral davam-lhe beleza, o mar tirava-lhe a força da gravidade e ele flutuava, olhava as semelhanças, as diferenças, no silêncio absoluto das eras anteriores ao próprio homem. Via e compreendia como funcionava a natureza, sem intermediários. Acreditava que o mar e o espaço se confundiam. Costumava dizer que deveríamos não acrescentar anos na vida humana, mas, vidas nos anos que faltavam. Nós já vivíamos o suficiente.

Nesta noite sonhou com corais, cores, profundezas, azuis. No dia seguinte, ao se aproximar do trabalho, deu uma esmola a um velho, e ouviu a pergunta: “O senhor é inglês ou americano?” “Por que?” ”É o seu paletó.”

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Dança Ritual Urbana, III








Wabi Sabi, terceiro movimento

Ezê descobriu na dança a maneira mais sutil e eficiente para compartilhar sentimentos. O gesto trai menos que a palavra: vago, mas definitivo, aberto para a interpretação de que você precisar. Após assistir ao espetáculo, saía flutuando, esperando encontrar os seus amores e lhes contar.
Acabara de ver Susana Yamauchi no teatro da Dança e saiu dali, ainda sobre as nuvens, andando, pela avenida São Luís:

“Ao nascer, ele entra no reino dos sonhos apenas para despertar para a realidade na morte. Tempera o próprio brilho de modo a se fundir na obscuridade alheia. Ele “reluta como quem cruza um riacho no inverno; hesita como quem teme a vizinhança; é respeitoso como um convidado; trêmulo como gelo prestes a derreter; despretensioso como um pedaço de madeira por entalhar; vazio como um vale; disforme como águas revoltas”. Para ele, as três jóias da vida são piedade, parcimônia e modéstia. Kakuzo OKakura”

(...os tempos que correm ensinam a mirar o próximo. Jamais temos tempo ou disposição para mirar a nós próprios. Perdemos a capacidade de nos extasiarmos com os nossos sentidos. Capacidade despertada em mim ao ver centenas de pétalas vermelhas derrubadas no palco, caídas da cerejeira da minha mente. A imagem do outono veio súbita. Surgiu a chegada do inverno através da mudança da luz, tornando o vermelho em prata, algo imperceptível, mas revelador. Lembrei de hoje pela manhã, ao sair de casa, daquela árvore tomada pelo mesmo tom de vermelho. A árvore me acudiu como amiga, explicando o wabi-sabi. Mas essas reminiscências não estavam solitárias. Incluiu as mãos e os gestos da artista e a complexa interação da permanência e da impermanência tornando-a dramática pela súbita transformação de um corpo em dois. Sobre os ombros, as máscaras ocupando um só corpo, todo feito de frente, sem as costas. Um de face alva, outro de face rubra, nos confundindo, fazendo-nos esquecer o eu, e se comportavam de forma a indagar em qual rosto deveríamos nos reconhecer. Talvez fossem a mesma pessoa, segundo a tradição do Noh. O monge de face bárbara indicando um roteiro para a imóvel, branca face do ser.
Do palco, esvaía uma névoa, nos convidando para um mergulho naquela água em partículas, e mergulhados observaríamos. Os elementos naturais do vento feito gestos me estremeciam, como se eu estivesse sendo golpeado. O frio, a caçada aos animais, o rio, todos mostrados com brevidade e leveza, entremeados com a cerimônia do chá. O rico quimono branco ritual, deixando à mostra as mangas, davam um tom erótico ao movimento, os cabelos que jamais foram cortados da cortesã, enfeixados por uma faixa vermelha, sinais que viajaram através de mil anos e me transportaram ao período Heian, ao tempo em que se respondia uma poesia com outra completando e ampliando o seu significado, ao tempo em que não se olhava nos olhos de ninguém do sexo oposto, e as mulheres estavam protegidas pelos pequenos biombos. O suave movimento das mãos mostrava como se raspava a pedra de chá. Tudo preparando o espírito, para a culminância do ato de amor, praticado com ductilidade, centenas de vezes, com uma harmonia e um senso do frágil que eu pensava perdida para sempre. Relegada ao código genético do Dodô, e ela ressurgiu no palco, com um entrelaçar de mãos que jamais esquecerei. Um traje negro poderia ser o fim trágico daquela história, mas isso não importa. Eu passeei por todas as sensações inexploradas, percebi apenas esquecidas. Elas me revelaram. Para se entrar no recinto onde o chá é preparado, toma-se um caminho levemente tortuoso, preparando o espírito. A roupa flamejante de preto e vermelho, me alertou, durante a cerimônia, para que eu me preparasse para ver. A impermanência que torna tudo mais belo. Fugidio. Sei. Não consegui compreender tudo, mas sei também que consegui saber mais de mim do que em muitas e muitas leituras. Onde o nada me tocou, marcou.).

A avenida está deserta. Ando com um pé na calçada, outro no leito, para meditar.

Nono dia do mês de Av, finale

David caminhava pela Avenida São Luis, próximo ao teatro. Passou por um bar e ouviu:

Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir prá não chorar
Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar...

Chegou ao máximo do desprezo por si mesmo. Acarinhava a arma a todo instante, como se estivesse testando a possibilidade dela também o abandonar. Queria encontrar algum caminhante solitário. Precisava dar fim àquele sofrimento. Sempre achou o samba um tédio, aquela poesia daquela música, chamou sua atenção agarrando seu casaco como se tivesse braços.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Dança Ritual Urbana II



Dança de rua, segundo movimento

David formou-se em jornalismo a pedido dos pais. Não sabia, ao se matricular, sua vocação. Até hoje não a encontrou. Homem de poucas palavras, ensimesmado. Passou curso todo, dez semestres, sem fazer amigos. Os contatos cordiais, diários, não conseguiam representar nada, ele não agradava ninguém. Simplesmente não compreendia aquela alegria toda, a vantagem de viver a vida sorrindo, estourando emoções esfuziantes, batendo nas costas dos outros, jogando bola e contando piadas. Não via a menor graça nisso. Foi considerado esnobe. “Rico não gosta das pessoas, sente-se superior.” Uma ilha sentimental. Em casa, discutia-se muito o valor do dinheiro. Ele, não. Ele apenas ouvia. Orçamento baixo e contado. “Economia é a base da prosperidade.” Economia sempre. E a prosperidade? Jamais. Os pais não conversavam entre si, se excluirmos as conversas utilitárias; ambos trabalhavam. David não conseguia dar valor ao dinheiro, não tinha ambição alguma. Pouco era suficiente; tentou trabalhar em diversos lugares, sempre o ambiente lhe parecia hostil e degradante. Odor insuportável de azoto. Gás mostarda; em baixa concentração, vazando em algum lugar. Todas as relações entre as pessoas eram tóxicas, mediadas pelo dinheiro. Alguém queria algo de alguém, fazia amizade para conseguir. Via apenas valor de troca. Agora: estava adernado em um jornal. Só fazia pesquisa. Não conseguia ganhar a rua. Fazer uma reportagem? Não, não era esse um anseio, o escrever. O desejo era mesmo de ganhar a rua. Sair daquele cheiro insuportável. Como na faculdade, tampouco lá fez amigos na redação. Sentia-se só. Usava constantemente um boné, com a pala baixa, cobrindo os olhos e metade do rosto. Olhava com asco os carrões dos chefes na garagem. Sua vida era ler (odiava) e pesquisar (também). Guardava praticamente o salário inteiro. A sua história poderia ser resumida em dois grandes momentos: dois assaltos. O primeiro ocorrera ainda criança, saindo da escola, tênis novo. Dois meninos o ameaçaram com facas e levaram seu tênis e toda a roupa. No segundo, anos depois, estava em um ponto de ônibus, voltando da faculdade, teve o dinheiro do bolso levado, uma arma apontada por dentro da jaqueta. “Sou trabalhador como você”, lembra de ter dito. Fora ultrajado. Sentia humilhação ao passar por isto, e uma tremenda raiva. Sentia medo, e vergonha, não conseguia reagir. Afinal de contas, tinha tamanho para isso. Mas sua autoconfiança esvaia-se pelo ralo da sua vida. Passou sua existência para satisfazer os pais, não queria satisfazer mais ninguém. Esquecera-se de si próprio. Tinha apenas a posse da sua raiva. O cinismo crescia dia após dia. Era o emblema que o segurava à beira daquele ralo. Não queria ver lá por dentro. Olhava apenas para fora, apesar do tédio, enganava a dor. Doía muito. Lembrava-se também do último ano da faculdade. Fora assistir aos jogos universitários, com alguns amigos do tempo do colegial, hoje advogados, administradores, todos trabalhando e fazendo carreira. Uma agitação extraordinária para ele, não estava acostumado. Tomou muita cerveja e apagou. Lembrava-se de algumas meninas, toalhas molhadas, corpos nus, mas a lembrança era vaga. Apagou por dois dias. Acordou com muita dor de cabeça, um gosto de chumbo na boca. Um colega de classe perguntou se ele queria outra mais, para arrebentar na festa. “Não, obrigado.” Percebeu que tinha tomado alguma coisa. O cinismo explodiu em pânico. Voltou o mais rápido que pôde. Sabia agora que todos, sem exceção, eram cúmplices. Transavam drogas, ele participou de um ensaio geral. Seria abduzido. Fez ligações entre as conversas ouvidas na sala, na festa, lembrava dos gestos, dos sinais. Havia um complô. Comunicou aos pais e ficou uma semana sem sair de casa. Apenas se prevenindo para o golpe que havia de sair, não sabia de onde. “Você sabe o que é esperar algo, sem saber de quem, de onde, quando? Você tem a menor idéia do que é isso?” Lembrava que lhe perguntavam onde morava, qual o andar. Seria um assalto, viriam roubar novamente. Levou suas coisas para a casa de um parente próximo e de confiança. Não precisava explicar nada. Pediu um lugar para guardar algumas coisas no depósito da casa, levou um cadeado e trancou tudo. E esperou. Nada. Esperou um flagrante de estupro. Ou uma acusação de uso, consumo e tráfico de drogas. A dor aumentando, a culpa por freqüentar uma festa como aquela. Não ganhou nada, sempre estivera certo. Não gostara de ninguém e muito menos de si. Pensou na irrelevância de tudo. Nada mais fazia sentido. Largou o emprego também. Comprou uma arma. Pensava em emanar por lugares onde não era conhecido, encontrar pessoas solitárias, em lugares ermos, e matá-las. Uma por uma. Não havia erro. Sem nenhuma lógica, a esmo. Não queria ser alvo dos policiais. Um dia aqui. Outro dia ali. Não pretendia justiça. Não procurava bandidos. Procurava por solitários. Gente como ele. Conhecia uma jornalista que escrevia sobre personagens dos bairros da cidade. Dava nomes, narrava coisas pitorescas. Iria num bairro daqueles, um dia, escolhia a esmo, sem testemunha, um tiro só. Para isso fez um curso de tiro. Tinha uma boa visão e mão firme. Foi aprovado com louvor. Casa Verde, Santo Amaro, Freguesia do Ó, Vila Olímpia, Jaguaré, Capão Redondo, Jardim Europa, Vila Carrão, Vila Matilde, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes e Centro. Aos poucos, a raiva daria lugar à confiança. Não sentia nada por ninguém. Tudo o que sentia era raiva. Raiva e mais nada. Uma raiva difusa, sem direção, contra o seu semelhante, contra si. A dor, quem sabe, se extinguiria. Não mais o incomodaria, não teria mais que freqüentar o médico psiquiatra. Afinal, aquele imbecil não falava nada mesmo. Dava um remédio. “Sossega leão, doutor?”. Transferência. Que nada. Mandar todos para o inferno. Viveria junto com os pais, para sempre. Pronto. Passava as noites imaginando o roteiro, os cuidados que teria que tomar, para não ser visto. Passeou pelos bairros todos. Lia a crônica e vagava pelo bairro. De manhã. Outro dia, à tarde. Ou à noite.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Dança Ritual Urbana



Caboclinho, primeiro movimento

Ezequiel era assíduo em um bordel onde as meninas se vestiam de comissárias de bordo, o uniforme justo e moldado ao corpo era embalagem a vácuo e os homens enlouqueciam com os trajes, trejeitos ou rejeitos. Formidava um cliente cego, que exigia o conjunto da Alitália, para atingir o máximo de prazer. Corria o boato que ele possuía onze penes.
Dali veio a idéia: colocar rapazes trajados de comandantes para vender cortes de cambraia, tweed, lã e linho. Escolhia um determinado tipo de cliente. Estudava seu comportamento, fazendo as primeiras vendas. Selecionava tecidos baratos, adicionava uma história triste da vida do vendedor e vendia tecido e história, como se os tivesse trazido da última escala. As rotas: Milão - São Paulo, Berlim - Rio e Paris - São Paulo. Condoído pela história, vendo a oportunidade de fazer um bom negócio, o cliente ocupado, cobiça à solta, missão cumprida, venda feita. Explorar esse sentimento é muito lucrativo, e é fundamental ser um bom ator. Teatro do Comércio.

Depois passou a vender imóveis perdidos pela cidade. Conseguiu contato na prefeitura para obter informações sobre terrenos com dois proprietários pagando impostos. Comprava documentos de identidade de pessoas homônimas a um dos donos e, pronto: colocava à venda por um preço entre trinta e quarenta por cento abaixo do mercado. Choviam compradores. Revelava pessoas e criava propriedades.

Para os clientes das feiras da cidade, possuía artigos de menor valor e de muita qualidade. Tijolos com dinheiro, bilhetes de loteria, ou alianças. O tijolão era o fascínio e tinha a maior aceitação. Colocava uma nota de um dólar por cima, outra por baixo, e um maço de papéis cortados no meio. Tamanho e peso calculados. Pacote fechado, amarrado fazendo marca, desanimando a abertura.

Para venda do bilhete é indispensável o jornal do sorteio. Comprovava-se que o prêmio se extinguia naquele mesmo dia, coisa urgente, fácil e rápida. Não requer prática ou habilidade. Lógica pura.

A aliança era o produto predileto. Com o certificado de garantia feito em gráfica de confiança, mostrava-se a peça pesadíssima, de ferro, revestida com verniz dourado a prova de unha. Atingia sempre o melhor preço: cem reais (custo: dois). Nas feiras são contadas as melhores histórias, de amor, traição, morte, perseguição, cobiça e castigo. Maior a desgraça, maior o prêmio. Mediante um bom lucro, a história condói a todos que têm algum dinheiro no bolso e alguma necessidade imediata.

Montou uma equipe amiga e profissional ao longo do tempo. Todos atuando sob cerrada supervisão. Ele era muito detalhista. O requisito principal para o trabalho era o rosto. Ferramenta de trabalho, confiável, amistoso. Do resultado bruto, ele ficava com quarenta por cento e custeava todas as despesas. O vendedor ficava com quarenta por cento e vinte por cento eram destinados ao departamento jurídico.

Ezê pertencia a uma antiga tribo de judeus caraítas, da sua crença ancestral guardava no peito, apenas o horário de Jerusalém; estivesse onde estivesse aquele era o seu. A aversão pela idolatria o transformara num ateu. Não teve sorte com as mulheres; escolheu duas esposas. A primeira sentia orgasmos apenas quando escovava os dentes, independentemente do tamanho da escova. Era um mistério. A outra, pela força do pensamento e durante o dia. À noite, estava cansada demais para tentar pela via tradicional. Diante do duplo fracasso, resolveu viver só. Recolhia as crianças doentes, em estado terminal, com até três anos de idade, abandonadas. Recolhia também os idosos no final da vida, retirados da rua. Acolhia também os cães famélicos, sarnentos.

Formou equipe para ajudá-lo e com ela consumia o seu rendimento. Foi a sua maneira de encontrar o amor. Tanto nas crianças, que amam sem qualquer condição, extravasando amor da maneira mais grácil que se pode imaginar, como nos idosos, ele as via como crianças engelhadas. Os vizinhos próximos criavam sempre problemas, alegando que os cães latiam e atraíam outros animais, também a algazarra que faziam as crianças e o mau cheiro dos velhos, cães e talvez dele mesmo.

(continua...)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

“Convém aos felizes ficar em casa.”




Enrique Vila-Matas em ‘Suicídios exemplares’.

Cultivo algumas plantas, flores e arbustos nos fundos de casa, capim barba de bode (por dois motivos: sem capim não poderá subsistir a espécie humana; cuido, assim, da minha cota, e pelas flores que são lindas), lobélia (suas flores miúdas e intensas de azul), estévia (posso adoçar o chá preto com um galhinho seco) e a minha predileta, a orquídea borboleta (cuja flor atrai borboletas e pássaros). Todo dia coloco algumas frutas para alimentar as aves. É o meu espaço verde e amistoso.

O dia é fresco e agradável, o sol está apontando lá na linha do horizonte. Quando me perco admirando as plantas, ele aparece como uma gema.

Sou corretor. Pesquei um grande negócio. Recebi o nome de uma pessoa interessada na compra de uma grande casa. O presidente da companhia encarregou a secretária da tarefa. Ela me perguntou, gentil e afável, qual o valor a ser recebido em caso de sucesso. Concordamos. Encontrei algumas opções e as ofereci. Estávamos prestes a fazer o negócio quando recebi o telefonema de um antigo amigo. A amizade sólida exigia que saíssemos para jantar regularmente. Ele se colocou à disposição para me ajudar no atendimento ao executivo. Ele também é presidente de empresa, com conexões internacionais. O pai dele, banqueiro, homem de muitas relações, deixou como herança, além de uma bela fazenda e outros bens, essa rede de suporte social que antes se chamava rol de amigos. Os filhos deles frequentavam a mesma escola. É uma operação triangular de amigos. Ele, amigo do meu cliente e meu amigo, poderia perfeitamente ajustar tudo. São os dois catetos. Eu, a hipotenusa. Ele me pediu para informá-lo do preço de mercado de vários imóveis, para comparação. Felizmente, o melhor de todos foi o que apresentei. Essas compras são demoradas, as negociações são complexas, as pessoas envolvidas titubeiam, ficam inseguras, o valor envolvido é fruto de economia de muitos anos, muitos riscos envolvidos, mas acabamos por negociar um preço ainda menor. Essa redução final só foi conseguida após um abatimento no valor do meu cheque. Geralmente, para fazer uma redução de preço, o cliente exige a minha solidariedade. Eu não consigo recusar.

Hoje, devo me preparar para levar os documentos aos advogados. Meu amigo faz questão de levar e vai ao meu escritório para pegá-los. Durante a conversa, falou em dinheiro. Quanto ele receberia por ter me ajudado tanto? “Bem”, eu titubeei, “não posso pagar muito, já paguei pela indicação do nome dele e já reduzi o valor da comissão, você sabe como é, não?” “Sei, sim, mas cada um sabe do seu problema. Eu quero a metade do valor para mim, também tenho meus compromissos, e não posso trabalhar de graça.” E de nada adiantou qualquer ponderação, ele “preferia” que o negócio fosse realizado por alguém mais “compreensivo”.

Meu vira-latas se chama Giggio. Ele adora companhia, e talvez por esse motivo seja afastado do nosso convívio pela minha mulher. Ela detesta o cheiro do animal, que segundo ela se espalha pela casa. Sendo assim, ele fica confinado nos fundos. Ele é muito expressivo, o seu latido tem diversas variações, é quase uma fala, dependendo do ouvido disponível. Existe nele um dispositivo que dispara de vez em quando. Isolado e sem que ninguém lhe dê atenção, algo se enche dentro dele. A partir das seis horas da manhã, começa a ganir, latir, grunhir e gemer em diversos tons, sem muita altura, mas com a intensidade suficiente para demonstrar sua insatisfação, sem incomodar. E lá ficam ele e suas fungadas prolongadas que passam pelo vão debaixo da porta. Gera uma compaixão enorme, mas a casa continua no ritmo normal de toda manhã. Eu abro a porta, deixo que ele morda um pouco meu calcanhar, sorria pelo rabo, dê alguns pulos, divido como ele parte da minha fatia de mamão. E vou trabalhar. Deixo a casa em silêncio.
Um faxineiro trabalha comigo por um salário mínimo. Uma figura pequena, escura, os olhos ávidos numa face mal barbeada, coberta de cerdas cerradas, grossas e lutando uma contra a outra, cerdas que, partindo em direções contrárias, cobrem todo rosto, como se o defendessem de algum ataque, até abaixo dos olhos. Calças cambaias de muito uso, com vários vincos horizontais em leque nos joelhos e virilha, cobrem suas pernas encolhidas e tortas. A camisa perdeu a cor original, o padrão parece ter sido um xadrez, resultante da briga entre o marrom e o negro. Um pequeno chapéu amassado coroa a cabeça, com uma aba minúscula, cobrindo, envergonhado, o monturo. Sua imagem lembra um torrão. Vive só com a mulher. Do seu salário, não gasta quase nada. Mora de favor, come pouco e acha boa a comida da companheira. Empresta a juros tudo o que ganha. Seus colegas vivem a sua felicidade no dia-a-dia. Ele, não. Ele guarda, coleciona seu dinheiro. Só o faz para os colegas próximos, para poder receber. Tem muito medo de perder suas notas. No dia do pagamento, faz a coleta. E guarda. Abriu uma conta no banco, venceu a vergonha de não saber escrever, a não ser desenhar o nome. A poupança rende algo mais sem precisar trabalhar. Um dia passou mal. Dor aguda, tontura. Levaram-no para o pronto socorro. Apendicite. Foi marcada cirurgia para dali a três meses. Fui avisado do caso e da história dele e pedi ao sistema de saúde uma antecipação, pois o caso era urgente.

Ao telefone, o advogado do comprador pergunta se eu conheço aquele nome de vendedor. “Sim, conheci na negociação. Ele vende o imóvel para receber o dinheiro gasto na educação dos sobrinhos. Ele é o tutor do casal.” “Pois, então. A moça matou o próprio pai, que era o dono da casa. Você não lê jornal?” ”Sinto muito, mas não liguei o nome à pessoa. Afinal, isso não tem muita importância. A casa está em perfeitas condições, foi revisada e analisada com muito cuidado. A casa não é da filha, é do tio dela. O seu cliente é estrangeiro, morou no exterior, e não se preocupará com isso. Estou certo disso.”

Almoço com meu filho, depois de muito tempo sem o ver. Tentamos nos aproximar, falamos banalidades, a comida não é boa. Ao sair, sou abordado por um homem, parecendo bêbado, que me diz: “Estou com fome. Quero comer, porra!” “Não tenho trocado.” “Como não tem?” “Não tenho. Cai fora.” Cheiro ódio saindo pelos poros.

Recebo, ao final do dia, o telefonema da secretária dizendo-se muito decepcionada com o meu comportamento. Eu deveria saber que a casa é impossível de ser vendida. Ela não permitirá que o patrão more em um local daqueles, com esse estigma. “Mas a casa não é ... “

Volto à tarde, quase noite. O sol desaparece. Preguiçoso, sento numa poltrona. Diante de mim, duas vias de estrada, mais além o terreno sem acidentes de um amarelo profundo e ondulante, sem nenhuma planta para refrescar a visão. Asfalto, pedra e areia.
Primeiro, o sax executa todas as linhas melódicas doces, através de um arranjo repetitivo com ritmo rápido e amolecado, cantando as sílabas pronunciadas com o clarinete, e agora as cordas, fazendo trio, rascam ao fundo as palhetas sobre os pratos da bateria; depois da primeira declamação, entra a segunda com a voz dela: Billie.

Clara, terna, adorável, refrescando o entardecer, tirando aquele calor excessivo e cansado (With each word your tenderness grows,/Tearing my fear apart.../And that laugh that wrinkles your nose,/It touches my foolish heart), tornando o cenário digno de filmes antigos, onde tudo acabava bem, para não expulsar os vivos medrosos através das janelas de primeiro andar.

Sopra um vento empurrando uma esfera vegetal e voante, a salsola, uma planta que, ao contrário do humano, o vento não enlouquece, passa e fica em um banco à minha frente, indiferente ao melhor olhar.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Anatomia


Coloco um barrete para aprender a escrever melhor. Para o sorriso se espalhar para meu interior e a tristeza para os ricos e bem aventurados e pobres em o espírito. Quem sabe? Quem sabe, dará certo e aquele buraco na agulha bastará para aconchegar o camelo com compaixão e dignidade, e ouviremos o seu blaterar com os demais, para se alinharem em cáfila. Em Bordéis, Bordéus ou Bornéu. Quem sabe?
Histórias Possíveis n.45. Com mais uma tentativa, agora na Índia, em um esforço de reportagem.

terça-feira, 26 de maio de 2009

O amor








Se, contudo, amardes e precisardes ter desejos,
Sejam estes os vossos desejos:
De vos diluirdes no amor e serdes como um riacho
Que canta sua melodia para a noite;
De conhecerdes a dor de sentir ternura demasiada;
De ficardes feridos por vossa própria compreensão do amor
E de sangrardes de boa vontade e com alegria;
De acordardes na aurora com o coração alado
E agradecerdes por um novo dia de amor;
De descansardes ao meio-dia
E meditardes sobre o êxtase do amor;
De voltardes para casa à noite com gratidão;
E de adormecerdes com uma prece no coração para o bem-amado,
E nos lábios uma canção de bem-aventurança.

Gibran Kahlil Gibran

Jacqueline nascera sob o signo da independência e da alegria. Vivia só, cuidava bem de sua vida. Morava em um cômodo pequeno e arrumado na periferia da cidade. Separara-se da família, muito religiosa e vivendo numa seriedade e tristeza sem par. Não. Ela nascera alegre. Gostava de andar, de acompanhar a sua sombra, para certificar-se que era real. Brincava muito. Apreciava dar o que deu para dar-se a natureza. Enchia de prazer e dança a sua vida. Amava o canto dos pássaros. Devaneava. Seus orgasmos múltiplos eram um vendaval que a agitava para depois, aos poucos, voltar à paz, apaziguado o coração. Esta a sua ambição. Tinha, sim, seus momentos de melancolia, pelos quais passava sozinha. Guardava-os numa caixinha de jóias. Não queria homem para lhe dar suporte. Solitária. Gostava deles, porém muito mais da sua própria independência. Quanto mais admirava o seu parceiro eventual, mais ela se recolhia dentro de si. Tornava-se misteriosa e prendia a curiosidade e o coração do companheiro. Era aventureira do amor. Não admitia rodeio em seus desejos. Conheceu outro dia, um rapaz, permitiu que ele a acompanhasse até sua casa e ali mesmo se despediu. Talvez fosse tímido e precisasse de incentivo. Mandou sua foto deitada nua, fazendo um convite expresso, sem palavras.

Viveram intensamente muitos momentos. Ele também – percebera - se ajustava inteiro em sua sombra.

Um homem decidido, moreno, atarracado, de cabelos encaracolados, pele muito branca, olhos castanhos ensolarados, alguém poderia chamá-lo de italiano, os gestos intempestivos eram desmentidos pela delicadeza das palavras. Possuía um dom natural para escolher palavras, falava várias línguas, recebera uma boa quantidade de dinheiro do seu pai e fora aconselhado a sair, viajar para conhecer o mundo, ter mais experiência e poder, um dia, mais tarde, tocar os negócios da família. Apaixonou-se por ela. Não queria outra coisa senão estar com ela. Depois de aceitar o convite da foto, ela o atendeu nos pedidos mais extravagantes. Tudo era prazer, delícia, entrega e proximidade até o ponto de fusão. Entretanto, jamais moravam juntos, precisava de distância. O ciúme o corroia, passou a persegui-la, sorrateiro, em sua rotina, chegou a vê-la com outros parceiros, velhos, novos, dois ou três, ao sabor dos ventos, como ela dizia. Não conseguia encontrar a maneira de prendê-la. Foi embora por algum tempo, por não encontrar nenhuma solução viável, e para atender ao chamado do pai.
Na viagem, leu no jornal: “Pai assassina filha com tiro à queima-roupa”. O religioso (nome, idade) invadiu estabelecimento comercial onde trabalhava a filha (nome, idade) e depois de uma breve discussão, acusando-a de prostituição e de envergonhar o bom nome da família, sacou da cintura o revólver com o qual a fulminou ali mesmo.

Deixou de ler as demais informações. Estava estarrecido. Não conseguia compreender o que havia acontecido.

Encontrou seu pai. Ouviu dele um sermão daqueles, que o dinheiro que ele confiara fora desperdiçado, da forma mais vil, com pessoas de má índole. Mulheres, passeios, jogos, bebidas. Como era possível uma explicação? O que ele pensava da vida? Isso tudo leva a quê? “Eu quero que você se prepare para a vida, construa o seu futuro. Meu pai não me deu isso”.

O filho bem que tentava ouvir, não conseguia tirar Jackie da cabeça. Quanto mais pensava nela, mais se excitava e não conseguia compreender o rugido do pai. Estava excitado, lembrava da expressão angelical, da boca carnuda, do corpo pequeno, proporcional, da carne rija, dos seios empinados, sôfrego a ponto de tirar o pênis para fora e, antes que o estupor do pai se transformasse em ato, atacou rijo e se masturbou rápida, doce e languidamente. Com a mão servindo de concha, aparou e entregou o resultado ao pai.

“Aqui. Não lhe devo mais nada. Estamos quites.”