quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Cólon


Se vocês quiserem conhecer uma história bem brasileira, contada por uma nota de cem reais, aqui está a chance. Eu ficarei muito honrado com a leitura. E mais ainda se conseguir prender sua atenção.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Fall




Volta o amarelo na comemoração, agora do outono, lembrança deste fotógrafo, que vem lá do longínquo norte. Ontem ele estava derramado ao chão, se mostrando ávido e satisfeito.Hoje está impávido, fugindo em direção ao alto, buscando o sol e a solidão.
A cor já se antecipando nos pequenos espaços de pétalas folhas, no vestíbulo do cenário principal. E o título em inglês, traduzido do russo, nos remete ao Ipê do sul, chamando a obra de "fall". Devo agradecer à Graça do Chuabo no Zambeze.

Ipê






O bairro amanheceu forrado de amarelo.

Os ipês fizeram sua comemoração de uma nova velha estação.

Algumas palavras estão desgastadas pelo tremendo e excessivo uso feito delas.

Amor, flor, beleza.

Fica a lembrança de uma quase desconhecida: primavera.

Não sabemos quando começa e quando termina.

Coisa dos trópicos.

Mas ela se jogou no chão, serenamente, para chamar a atenção.

E o cinza se tornou amarelo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Pescoço




"Uma noite, depois de muito Chianti,
repetiu-me a definição do costume,
e como eu lhe dissesse que
a vida tanto podia ser uma ópera,
como uma viagem de mar ou uma batalha...
"Capítulo IX A Ópera
Machado de Assis


Quando morei em Mauá, trabalhei com meu pai. Ele veio do norte distante, montanhoso, onde faz muito frio. Era conterrâneo de Marco Pólo e tinha muito orgulho disso. Não deu certo. Ele queria que eu fosse responsável pelo negócio. Eu sofria com isso. Não daria certo, não compreendia o negócio, nem as pessoas. Procurei trabalho em uma companhia que me possibilitasse viajar. Faria qualquer tarefa, desde que não fosse responsável por ninguém, apenas por mim mesmo, e pudesse conhecer outros lugares. Consegui trabalho em uma fábrica de interruptores, caixas de luz, tomadas e variadores de luminosidade. Este foi meu escudo diante da vida; eu aguardava o meu manual de instruções. Algo repentino, que abrisse as cortinas de algum lugar secreto e feliz. Eu tocava o meu dia, esperando. Não me lembro de estar parado, pensando em nada de prático. Não me lembro de tentar conhecer o outro. Treinei a vida inteira não estar à vontade, mas parecer à vontade. Adquiri o hábito de subir e descer escadas, para descansar. Percebi que as escadas das igrejas são as mais íngremes; subia e descia com passos firmes e ritmados. “Somente os príncipes têm ritmo”, dizia o meu velho. Ah, Candelária, você fazia meu sangue bater aqui no pescoço. Gostava de dançar. Não apagava o pensamento ao dançar, pelo contrário: dançava para dizer alguma coisa, para acobertar algo. Conheci minha mulher no Cartola Danças. Tudo passou muito rapidamente, casei, tive uma filha: Penélope. Minha filha é um doce. Linda e inteligente. Divertida. Alegre. Adora dançar, mas é diferente; dança pela necessidade do corpo, não como presságio ou pensamento. O corpo é maleável, musculoso, belo e jovem, seios fartos como a mãe, cadeiras largas. Ela não precisava fazer nada, apenas se exibia. Apenas dançava molejo, malemolência, perícia e sensualidade. Fez curso de literatura, para dar aulas e ter a sua própria vida. Mas gostava mesmo era de exibir-se. Casou e teve uma filha. Parecia seguir o mesmo ritmo. Apesar de não conversarmos muito, percebi a sua corrida. Adorava o marido, conterrâneo do meu pai, e se parecia um pouco com ele, nos gestos, nos olhos. Sério, trabalhador, áspero. Ele se envergonhava toda vez que Penélope dançava para ele. Por exibição. Ela guardara trinta alianças de pretendentes e não aceitara nenhum deles, esperava o seu homem, até que o achou: “o melhor homem do universo”. Nenhum pretendente quis receber de volta a aliança de compromisso. Elas ficaram lá em casa, como penhor. Ela dá aulas para o Colegial. Por algum motivo, incompreensível, algumas fotos dela, de biquíni, caíram nas mãos dos alunos, que fizeram a maior folia exibindo a “gostosa” da professora. Fizeram um campeonato de “cuspe” à distância com elas. As fotos caíram nas mãos dos pais e, por fim, do Colégio. Ela perdeu o emprego, foi taxada de vagabunda e corruptora de menores. Deu no jornal. Ela voltou lá para casa, o marido a abandonou, está lidando para segurar a guarda da filha, e eu, que fiquei viúvo, cuido delas – pouco, é verdade. Ela se meteu a fazer filmes. Agora, véspera de ano novo, saí para comprar tênis. Encontrei uma liquidação e acabei comprando dois, um para neta, outro para a filha. Gastei todo o dinheiro da féria. Restaram cinquenta e cinco reais.

Hoje, trabalho com táxi. Dou carona para as pessoas das redondezas e recebo o pagamento pelo trajeto. Agora mesmo levei a dona Therezinha para o médico, lá no largo do Socorro, defronte ao Cartório. Pescoço: dez reais. Passando, atendi ao sinal de um rapaz que saía de lá. Calça azul-marinho, camisa engomada, branco Omo. Disse que queria ir ao centro. Bem, uma corrida longa não é de se desprezar nestas alturas. Dou um corte no pescoço. Quem sabe, com sorte pegaria outra corrida na volta. Não dou sorte, a rifa não gosta de mim. Eu não gosto do centro. Feio, sujo, intransitável. O rapaz entrou e começamos a conversar. Dei o meu nome: Pio. Aliás, esse nome só criou problemas para mim. Quando era garoto, fui chamado de pintinho, piu, piu, galinho e o que mais a imaginação cruel das crianças inventava. Pio também é uma rima fácil para “Brasil” e “pariu”. As minhas respostas eram rimadas e sem educação.

O passageiro pediu licença para fazer uma ligação para o escritório. Coisa mais estranha, uma pessoa educada assim. E na conversa explicou do trânsito (de fato, estava parado), e que seria impossível entregar os documentos no escritório (ainda bem). Recebeu autorização para ir embora. Pediu-me que o levasse para casa, informou-me que morava no Jardim Filhos da Terra (bem longe). Concordei, fiz a volta e nos encaminhamos para lá. No caminho, uma tremenda confusão. Polícia, moradores, carros de assalto, fumaça, fogo e uma multidão. Pessoas desconsoladas olhando para as ruínas descompostas das ruínas onde moravam, dentro de armários e de beliches, tudo amontoado em um terreno da Viação Santa Cruz dos Enforcados, terreno desocupado há vinte anos, sem muros e cheio de carcaças de carros roubados. Correu o boato de que a empresa não pagava mais o imposto, correu o fato de as pessoas não terem onde morar. Os políticos eleitos fizeram passar asfalto fajuto de “cimento” e condução. Os boatos de evacuação corriam soltos, mas eles se acostumaram também com isso. Precário é o sobrenome de cada um deles. Oferta da cidade. Fomos obrigados a parar. Tropa de choque. Tudo quebrado, chorado. Prazo de trinta minutos para dar o fora. Criança perdida. Atearam fogo em seus barracos. Tudo queimado. Fumaça. Tosse. Conversamos com ex-moradores. Impossível não ser solidário. Eles foram até a bica pegar água e passar um café, que nos foi oferecido. Pensei no livro “Pare de Sofrer”, escrito pelo espírito de Silveira Sampaio, que me fez tão bem, poderia também ajudá-los. Eles se mudaram para a calçada. Têm agora a caixa d’água como banheiro e a igreja como pensão.

Fomos liberados. Passei pelo enorme e abandonado parque, entrei em uma rua transversal. Do lado direito, um boteco cheio de gente jogando bilhar. As crianças corriam pela rua, mulheres lavavam suas calçadas e conversavam. Uma cena tranquila, não fosse pelo fato de a rua não ter saída. Do lado esquerdo, três pessoas paradas diante de um Passat antigo. Todos mal encarados. Os rapazes do bilhar saíram à porta, comecei a sentir que algo estava estranho. E ouvi:

– Pio, a casa caiu.

Parei o carro aos poucos, demonstrando uma calma que estava longe de sentir. Os outros se acercaram com armas automáticas, e encostaram o cano de uma delas na minha têmpora. Saí do veículo. O gelo do metal atravessou a minha cabeça, saindo do outro lado, fazendo um cilindro de ponta a ponta. Queriam furar a minha cabeça. O menino que estava atrás saiu. Todos muito nervosos. Um deles pediu ordem para me matar. Foi negada. “Afinal de contas”, disse um deles, “o cara tá na boa, não agitou nada.” “Quedê a grana?” “Está ali no cinzeiro do console. Pode pegar. Tranquilo, tranquilo.” “Me dá a lupa, apontou.” Entreguei. Estava inteiramente dominado pelo terror. Ofereci os tênis que estavam no bagageiro antes que eles revistassem. Consegui explicar onde os comprei. Estava muito barato, ali, atrás do Pão de Açúcar. Apontando para qualquer lugar. A cabeça foi serenando, senti que não estavam atrás de complicações. Aprendi a responder quando perguntado, entender a gíria deles, tornar-me um igual. Pela primeira vez, vivi a minha vida; tive segurança; estava em contato comigo. O que queria me matar desandou a reclamar dos ladrões bacanas que moravam ali por perto. Eles exigiam a saída dos demais e chamavam, a toda hora, a atenção da polícia com esses crimes pés-de-china. Queriam paz e sossego, tinham cobertura. E instalaram uma guerra ali no loteamento. Ele sabia que acabaria com a boca cheia de formiga.

Contei da minha filha, da minha neta, pedi para ficar com o documento do carro, afinal tinha pagado uma nota para conseguir a licença do táxi, o carro estava em bom estado, e conseguir novos documentos é quase impossível, ficaria um tempão sem poder trabalhar. “Você sabe, motorista de praça não pode carregar arma”, disse. “Não queremos dico, nem a caranga, tá ligado?” “Posso sair?” “De fininho, sai sem fazer barulho. Pega seus bagulho e sai” “Será que você pode me deixar uns cinco contos para eu poder faturar a grana do rango?” Cruzaram os olhares. Ficaram calados. O tempo necessário para jogar no barro a nota de cinco.

“Some. Vai.”

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O Chaveiro





Faixa de couro debruada nas extremidades, preta, aberta e dividida em três abas. Pelo anverso e no centro, uma barra de metal cravada como cabeçalho dotado de encaixes para receber cada um dos olhais dos seis ganchos ou anzóis. A curvatura deles forma uma garganta de abertura estreita, cuja ponta, não tendo barbela, mas a minúscula glande, elegantemente se volta para fora, dispondo-se como amistosa clave para pescar, penetrando o orifício de cada chave que agora por diante lhe pertence. Já existiram chaves que só abriam por fora, chamadas “lacônicas”, talvez originadas pelo desastre ocasionado pela última porta que esqueceram aberta em Constantinopla, a qual deu acesso às tropas do sultão dominador; e outras que só abriam por dentro, restando delas apenas a mítica imagem do cavalo de Tróia com seus guerreiros aguerridos, embutidos e trancados. Elas têm diversos tamanhos e variados formatos, desde a pequena que abre a mala, ou o cadeado, até a grande, a pantográfica e a eletrônica. Também foi sinônimo de bens imóveis e da fidelidade da mulher. Esta deveria trazer consigo os utensílios e entregá-los quando solicitada, e se entregasse, por desgraça, algum falso, seria repudiada com o mesmo tratamento reservado às putas. Chaves importantes eram guardadas no pescoço, enfiadas em correntes à vista de todos. Hoje, no centro de uma cidade, distante alguns quilômetros de Budapeste, existe um chaveiro com a forma de gradil, afixado no canto entre duas paredes. Nas suas barras, são guardadas chaves perdidas por toda a cidade. O segredo do qual a chave é a cifra e ardil se iniciou com duas argolas, uma em cada painel da porta, e o prego que as selava. Estes vieram limpos do latim clavus, transformando-se com o passar do tempo, tornando-se únicos, a ponto de apenas o proprietário descerrar o segredo. A cabeça se achatou e se arredondou para acomodar o polegar, a ponta recebeu um dente e um corte lateral. Depois o dente se espalhou pela haste e dela cresceram serrilhados. Multiplicando seu mistério. Um inventor inglês, nos tempos do rei George terceiro, filho mais novo dentre cinco, frequentou a escola até os dezesseis anos, aleijou-se em circunstâncias não esclarecidas; passou a estudar em casa, não podia mais trabalhar na fazenda do pai, escolheu mecânica e carpintaria. Colocou a mente para observar e conseguiu produzir o melhor cadeado da época. Vendeu milhares de exemplares e se tornou um homem rico. Oferecia um prêmio de duzentos guinéus àquele que conseguisse violar o segredo do seu invento: a tranca de Bramah, que servia como escudo contra os ladrões, na porta de sua loja, em Londres. Depois de trinta e cinco anos, um gaiato finalmente conseguiu a façanha. Após alguma controvérsia, tanto pelo tempo utilizado quanto pelo método, a promessa foi paga. Anos mais tarde, contraiu um resfriado, transformado em pneumonia, e sua alma inventiva o abandonou. Não sem antes ter inventado a bacia sanitária com descarga hídrica. Época em que outra família emigrada das montanhas de Gales para a planície da republicana americana, em Connecticut, e conhecedora do funcionamento e andamento das coisas, enriqueceu-se concebendo artefatos agrícolas, debulhadoras e fechaduras. Seu filho mais ilustre, Linus Jr., interessou-se pela pintura, mas com a morte do pai tomou para si a administração dos negócios. Após estudar engenharia, apresentou o seu conjunto inexpugnável. O prêmio concedido para o improvável violador era de três mil dólares, à época uma soma respeitável. O seu invento correu o mundo e se metamorfoseou em fábricas (Yale), riqueza e poder. Entretanto, com uma mensagem é possível ir se desvendando segredos, em um quarto, ou biblioteca, um banco, da igreja, da gaveta; ou abrir uma gaiola, exibir sem mostrar a fraqueza humana. Como símbolos de segurança, ofereciam acesso exclusivo àqueles que a penetravam, e suavemente conseguissem uniformizar pelo tamanho ou altura todos os tambores e molas embutidos na tranca após um tranqüilo clique. Outras chaves eram feitas de papel e ficavam à mostra nas paredes. Algumas elaboradas apenas como desenhos ou palavras. Agora, juntas, estão no chaveiro. Ele contém seis chaves e nenhuma delas é mixa ou mestra. A dobra lateral direita se fecha sobre o molho acolhido no metal. Elas estão deitadas em posição paralela, com a face dentada voltada para as costas da outra, afastadas milimetricamente para não se comunicarem entre si. No seu dorso, há uma presilha com uma reentrância. Aguarda a outra, à esquerda. Fechando o conjunto, exibindo outra presilha com a forma pontiaguda com um cone esférico na extremidade, acomodando-se sobre a ranhura, que com uma pressão estala e se fecha. O chaveiro tem o tamanho de um terço da tira, exibindo no exterior um brasão dourado sobre o couro, com um desenho que não se consegue decifrar. O conjunto não faz o barulho característico das chaves se batendo e fica guardado no bolso. Hoje, o conjunto inteiro – exceto uma única chave – é guardado em uma gaveta, que contém, além do chaveiro, a Bíblia, algum dinheiro, jóias, folhas de contrato, bilhetes, inseticida, pomada para dores lombares, atlas históricos e diários. Doravante, ele perdeu o hábito de frequentar lugares que necessitam de chaves para se obter acesso. Nada com a corrente, não luta mais contra ela. Esqueceu como se faz para abrir as bandeiras e portas: apenas entra e sai dos lugares sem segredos. Avulsa, no bolso, fica pendurada no cadeado após ter aberto o viveiro com os tangarás. Deixou a portinhola aberta de par em par e observou a saída. De um em um, como um ritual, colocando a cabeça, vestida com a touca vermelho laranja, para fora, compondo a plumagem azul clara e ajustando as penas compridas da cauda para o vôo. A cerimônia da dança, dos machos se colocando diante das fêmeas, exibindo-se um de cada vez, ao cabo da qual cada um vai para o fim da fila, aguardando sua outra vez, até que a fêmea se decida, não mais será representada para outras testemunhas, nem o som intrincado da voz e do bater das asas não mais despertará a atenção pela originalidade. Ele segue o seu caminho de monótonas paredes. Resta a última chave, e toda vez que ele põe a mão para apanhá-la ela escapa, adiante, mais adiante.

“abre-se o portão gradeado do jardim
com a docilidade da página
que uma freqüente devoção interroga
e lá dentro os olhares
não necessitam fixar-se nos objetos.”

sábado, 15 de agosto de 2009

Histórias Possíveis





"Entrei pisando ora o branco, ora o preto do chão de cerâmica descascada. Do lado esquerdo, uma estante vazada de metal, com diversos tipos de chás, aspirina e outros remédios para constipação, pacotes de “Unha de Gato” e “Baba de Caracol” com nácar. Com nácar, a madrepérola, fabricam botões. Nos fundos, um balcão onde é vendido pão integral, e de onde se retiram as roupas agora embrulhadas, lavadas e passadas, em pacotes uniformes....."

Entrem e se divirtam.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Dora Maar




"Bem, agora que nos vimos, um no outro”,
disse o Unicórnio,
” se acreditar em mim, vou acreditar em você.
Feito?"
Através do Espelho e o que Alice encontrou lá,
Cap VII, Lewis Carrol



Sentado na posição de Lótus, diante da planície, um interminável deserto, não fosse um quase regato, riacho Amele. Diante dele, à beira de uma cacimba, as fieiras de tijolos arranjadas sobre o círculo perfeito, feito à mão livre por Giotto, tempos atrás. Não. Ele não se serve daquela água que caiu, gota após gota, do céu ou das calhas, para beber. Comida e água são aquelas dos viajantes, jamais do rio, que param ao ver a cena, sentam, contemplam e alguns oferecem dividir, e ouvem as histórias do homem.
Emanam do poço gotas translúcidas, subindo no caminho da evaporação por entre o éter. Apesar de microscópicas, quando as observamos com atenção, vemos dentro delas, seres animados e inanimados. Em seguida, descreve uma tela de cristal com páginas de palavras fotografadas. Chama a atenção dele e lê: “Poço. Terra profundamente cavada em redondo, e guarnecida de pedras, donde a água, ainda que manancial, como a de fonte, não corre, e ainda que parada, como a da cisterna, não mendiga dos telhados a gotas que caem, mas na sua própria prisão tem todo o seu cabedal. ... Cavar um poço na margem de um rio, era o adágio com que os Gregos significavam a necessidade de quem faz qualquer obra inútil, e supérflua. Brigar com cães em um poço, era outro adágio, com que também os Gregos significavam o trabalho de quem lida com gente impertinente, de que se não podem desembaraçar, Poço. Puteus.”
Os homens são os que sobem mais rapidamente, quase sem tempo de parar a não ser que vejam aqui algum comerciante e sendo assim, sempre encontrarão tempo para fazer negócios. A parada se chamará, doravante, amizade. As mulheres ao subir giram o pescoço em torno do tronco, buscando alguém e, como os peixes, conseguem controlar melhor a velocidade da subida ou descida, não raro são atraídas por alguém, naquele estranho oásis, pela pose, companhias, aparência ou algo inexplicável. Dizer que o asceta é ouvinte e observador minucioso? As crianças sobem num ritmo errático e frenético, seu percurso lembra o das moscas varejeiras, com súbitas alterações na rota e ao final ficam paradas, imóveis no ar por segundos, sem aviso prévio. Os animais veem de ordinário, seja dia ou noite e são de vários filos. Cordados domésticos ou selvagens. O contato é para os domésticos uma proposta de troca da caça pelo abrigo, e, para os demais, a visita é furtiva, solerte ou parasitária. Passam agentes de toda ordem e inanimados.
Tamás Tomek, esse é seu nome, contou dos viajantes que conheceu. Até hoje nenhum conseguiu ver essas bolhas, nem subindo, nem descendo, muito menos objetos, sequer a cisterna. Ao fazer a descrição da situação, os viajantes parecem se incomodar com aquela insanidade, e, depois da refeição, raramente a história conserva o fôlego para uma segunda rodada, e eles se vão, meneando a cabeça, exibindo um sorriso de canto de boca, mas com uma rapidez sensível aos olhos. Enquanto conversa com os visitantes, ele explica, também faz contato com os que estão naquelas ampolas. Ele prefere os de língua estrangeira, pelo contato duradouro, fruto do tempo que levam para ajustar o diálogo, o fôlego e a compreensão, para além do som e do tom. Em especial aos marroquinos, eles falam árabe, francês, inglês e espanhol. A conversa passeia por todas as línguas. As palavras são escolhidas com a ajuda de uma sintaxe particular do momento, às vezes com simples gestos. Conta histórias dos animais domésticos. São os mais afáveis, sempre nos julgam úteis ou benéficos. (... um deles estava a jogar pôquer, e ganhava sempre do homem. Uma mulher, ao observar a partida, disse: “o cão joga bem, mas não é perfeito, ele balança o rabo quando tem boas cartas”.) Relata de outros organismos agindo como as artimanhas da noite que penetram as artimanhas do dia e após invadir as células do seu corpo, se espalharam feito o fogo original e criador, replicaram-se e alimentaram-se do próprio calor até encerrar seu ciclo; deixaram-no com uma coxa de prata, que não teve ainda oportunidade de mostrar a ninguém.
Ele, o só, apresentou-se como sucessor de Dora Maar, a façanhuda, que conseguiu a proeza de viver dentro de um desses globos por muitos anos, junto com um espanhol, que pintava a dor, e quase não se sentava mais aqui, a não ser por alguns momentos em que a parede de sua partícula de névoa se rompia. Mas, graças a sua habilidade extraordinária, o ambiente se regenerava e ela conseguia entrar e sair repetidas vezes, sem destruir aquele equilíbrio instável, um etéreo labirinto. (Ela conseguira o primeiro ingresso manejando seu canivete aberto e pontiagudo com a mão esquerda, mostrando a lâmina saltitante e rápida, por entre seus dedos abertos da mão direita vestida com a renda da mitene deixando as unhas rubras de fora. Nem sempre acertava a mesa e se magoava. Chorava. O homem que se tornou seu, observava atentamente se aproximou e pediu a luva manchada de sangue como presente, e disse: “Foi uma linda exibição e um belo gesto.”).
Aqueles que falam a sua língua têm um contato mais fácil e eficaz, os assuntos parecem compreendidos com maior clareza. As palavras são jogadas de lado a lado, um jogo que adquire velocidade e fluência, parece ser uma promessa de felicidade ofertada pelo pingue-pongue. A promessa é o convite para dentro da bolha. Lá dentro tudo é mais faiscante, como cristal sob a luz, até o instante em que homem utiliza a palavra proibida. Foi falada. Terminado o impulso daquele ar no pulmão, após ele percorrer a faringe e passar pelas cordas vocais, atravessar a boca e atingir o ar exterior, soando como a palavra de Poe, bate na parede e estoura. A palavra é a ponta que rompe a bolha e cria estrelas e somente estrelas. Ela continuará levando quem, ou o que estava, dentro dela, e o observador voltará ao posto à beira do buraco. O centro daquela cena não pode contê-lo. Foi assim o que ocorreu em determinado dia com Dora.
Depois disso, Tamás quedou-se ali observando, até encontrar a mulher que o possuiu. Passava bem longe, enigmática. Ficava em seu ambiente, calada, não tomava conhecimento dele. Não se aproximava, nem subia ou descia; tampouco conversavam, apenas mostrava seu corpo, seus homens, seus amores. Esqueceu-se de tudo para olhá-la. Encheu o seu peito. Usou uma tesoura para magoar seus dedos, sem sucesso. Lastimou sua mão, a dor causou prazer. Ele forçou sua aproximação, até que um olhar autorizou sua entrada. Sentaram-se frente a frente. Joelho contra joelho. Ela cobriu seu corpo com um tecido fino e ofereceu-se. As mãos de Tamás se aproximaram, hesitantes, e pararam a milímetros de distância da pele, trêmulas, suadas. Não houve propriamente o tato, apenas a impressão, sensação dele. Foi emoção suficiente. A ansiedade para usufruir daquela felicidade o inundou como um vírus e se alastrou arrastando tudo dentro dele, remexendo líquidos, fluídos, acelerou a corrente sanguínea, atingiu uma velocidade alucinante, o calor o queimou até a ebulição e procurou, desesperado, o canal para sair. A corrente se fez fluxo e escapou para o mundo exterior. Borrou; espirrou; empurrou para adiante o oceano, piracemou. Ela percebeu o que havia acontecido e disse: “Amor é isso. Agora você já sabe tudo que deveria saber.” O ambiente se estilhaçou. Ele saiu violentamente. Apenas se lembra que abriu suas veias em uma bacia de água morna.
Conheceu Philippe Petit. Pensa agora em convidar o equilibrista, para ocupar seu posto. Não o quer mais, vai se fundir na areia, desaparecer. Petit não mostra seu pensamento por meio de palavras, mas com atos. Assim como o jogador profissional de cartas, ele não fala, ele apenas joga. Uma nova era será inaugurada. Mostrou o seu equilíbrio sobre um fio, distante quatrocentos metros do chão, e o atravessou oito vezes e se deitou sobre ele. Apesar do vento, do frio, do perigo. Milhares de pessoas avistaram aquela figura sobre uma linha, invisível, entre os dois edifícios que não mais existem, lembrando a cauda de um cometa. Ele emitiu naquele momento o mesmo tom, a mesma irradiação sonora de cada planeta do universo. Ele fez parte da musica das esferas. Tudo estava consigo, não mais havia desencontro, tudo se equilibrou, e foi apenas por um instante. Ele não sabia o porquê, sabia como.
“Calcas, filho de Testor, de longe o melhor dos adivinhos.
Todas as coisas ele sabia, as que são, as que serão e as que já foram.
Guiara até Ílion as naus dos Aqueus, graças aos vaticínios
que lhe tinham sido concedidos por Febo Apolo.”