segunda-feira, 20 de junho de 2011

Autorretrato



 









Nos olhos já se vê dissimulada
Preocupação de si, e amor terrível.
A incessante notícia de uma luta
Com as panteras bruscas do invisível
É como a sensação de sede e fome.
Mudo, na cor translúcida da face
Já se insinua o pálido comparsa.
Na fronte existe um vinco que disfarça
Qualquer coisa... se acaso disfarçasse.
Mas não se vê o coração que come
O sangue espesso da melancolia.
Na boca, outro sinal de uma disputa
- Discórdia, dispersão e covardia –
E um traço calmo buscando a castidade.
No rosto todo, a usura de uma saudade.

Paulo Mendes Campos




Passados alguns anos do enterro do pai, encontrou um velho amigo. Este estava acompanhado do filho e conversavam, distraídos, sem animação, sobre um contrato a ser assinado. Órfão, lendo e tentando deixar a poesia entrar em si, encontrando sob o iceberg dos fatos armazenados o real significado de si, ouvia sem atenção a série de palavras expelidas por aquelas bocas amigas. Exibiram um maço de papéis escritos, e o significado deles, por mais que depusesse os olhos sobre, não lhe concernia, as palavras não serviam, não se intrincavam em linhas e significados, recomeçava a leitura, enquanto os outros se calavam, aguardando o seu parecer a respeito. Ele gostou daquele momento de paz. E se ausentou.


A grande sensação que o assaltou foi a da inevitabilidade da morte. Ela o atingira profundamente ao levar seu velho. Aquele com o qual jamais trocara palavras sem significado, mas amizade e carinho, sem levar ou ser levado a qualquer lugar: tudo se resolvia em uma demonstração de afeto humano. Não, todas as palavras que trocaram, obrigatoriamente, tinham que significar algo transcendente que valeria, dali por diante, para assegurar seu futuro, suas responsabilidades, como se ele, pai, fosse o Oráculo de Delfos, sempre disponível para adivinhar seu futuro. Mas, para quê? O futuro é a morte. Talvez tenha sido esse o grande sentido, que em geral os oráculos revelam por palavras interpostas e arrevesadas.  Percebeu as lágrimas descendo sobre as faces, primeiro tímidas, escapando uma a uma da sua prisão [tira os óculos, alega uma conjuntivite, que droga], mas logo depois rebentado, descendo em cascatas brilhantes, salgadas, rios de amargura que afastaram os interlocutores mudos da sua dor [não sem antes pegar o documento que trouxeram para a análise e avisar que alguém passaria depois para lhe fazer uma surpresa]. E se viu sozinho, sem ninguém por perto. Incomensuravelmente só. Não conseguia sequer saber em que lugar estava. Ao redor, tudo limpo, seco, sem som, sem eco, sem céu. Pela primeira vez, estava só. Queria, precisava se lembrar de tudo que não ficara gravado em sua memória, de tudo aquilo que estava submerso nos fatos que relembrava, é era isso o que importava. Nadaria naquelas águas geladas azuis profundas. Era o que de fato possuía relevância em sua vida: encontrar aquilo que estava sob a água, e que geralmente, como nos icebergs, é oitenta, setenta por cento daquele pedaço de gelo que se deixa mostrar. Mas, tampouco é algo que se aprenda ou se mostre com as palavras; é algo anterior a elas. Seu pai, como pálido comparsa? Aquele que se revelou em uma fotografia antiga, roubada de um parente que a guardava em suas gavetas estéreis, mofadas. Festa de natal, em branco-e-preto, anos idos, e o pai com o mesmo olhar longínquo, o mesmo olhar em que se pegava depois de momentos de silêncio e abstração como no começo desta história. E ele entrou naquele cromo, transformou-se em pai. Viveu aquele momento. Cheio de parentes ao redor, irmã, pai, mãe, tios, tias, primos e primas, todos formando uma pirâmide para se enquadrar dentro daquele foco a ser guardado para a posteridade. Todas as relações familiares, transformadas em relações de poder e de interesse. Existia uma segunda agenda, que seria revelada oportunamente, mesclada ao amor filial. Todos desgarrados do seu lugar original e submetidos ao tratamento de choque de obter o sustento, a qualquer custo, e todos os sentimentos foram afastados como móveis velhos a serem encostados contra paredes nuas, sem serventia, para formar um palco onde se encontrariam os pares provisórios que por alguns minutos se harmonizariam em corpos perfeitamente complementares, sem nenhuma fissura que os separasse, apenas dançando a música ambiente, exibindo uma comunhão que mais tarde se revelaria impossível. Ele, o pai, e agora pegando outra foto, olhando o pai afastado do foco principal, observando também a mãe avó, separados pela mesa farta de Natal, um defronte ao outro, rindo exagerados, mostrando a alegria [mera dádiva de estranhos]. Em casa, nunca se via nada igual, apenas silêncio. Um tio contara que o pai avô era muito mulherengo, tinha várias muitas mulheres e pelo menos duas famílias. Para eles: usura de uma saudade. E descobriu, como um raio caído do céu: jamais conheceu o pai. Assim como o pai jamais conhecera o avô. Era filho, neto e bisneto de desconhecidos. Apenas relacionou-se com um corpo, desdenhando de todos os sentimentos filiais. Era um amigo distante, que jamais pôde, quis ou conseguiu participar ativamente da vida daquele que gerou. A mistura entre os sangues resultou em um ser anônimo, estranho, e que para cada um deles sempre era o outro, o estranho, o inatingível. Era esse o significado da orfandade: ela sempre existira, sempre estivera presente. Mesmo quando o corpo tinha vida, ele não tinha sentido. Agora sem vida, o sentido se revelava por inteiro: oco. Essa foi a explicação do vinco invisível que disfarçava coisa alguma. Ele só conseguia conversar com a imagem de seu pai. Com os fatos exteriores captados por uma lente fotográfica. Por isso, quem sabe, ele passava horas e horas vendo álbuns de fotografias de estranhos, milhares de imagens das quais ele jamais conseguira sonhar que significado tinham, apenas as escolhia por uma ruga, um detalhe, uma cor, um olhar. Em sua grande maioria, imagens sem rosto, ou de costas, ou cobertas com os cabelos, sempre em lugares isolados, outras mostrando apenas a parte inferior do corpo, com pés próximos, sempre de corpos diferentes. Se algum clarão de luz havia, era para mostrar a sombra que fazia no chão. Adorava a imagem que vinha do fotógrafo de Gotemburgo.  Mostrava sempre os rostos lanhados, com expressão grave: foi neles que encontrou o mapa do tesouro. Era ali, naquela prega anônima, que estava a grande revelação. Foi filho de um estranho. Órfão desde sempre. Todas as sensações que possuía foram construídas artificialmente para mostrar aos circunstantes que ele foi um filho natural, não adotado, de mesmo sangue e imensa [mas imanente] distância. Ele apenas recebera a herança espiritual; a material, deixara para a mãe. Recebera apenas o rancor, o interesse e a ignorância. Como se fosse um personagem satírico-cômico de um romance, sempre se relacionou com os demais com uma subalternidade abjeta. Com o interesse precípuo de obter as suas vantagens, o seu sustento, raspava diariamente a sua dignidade mostrando a todos a ferida da sua impotência, clamando, silencioso por piedade. Uma mensagem sempre perdida. “Pela minha experiência não podemos, de forma alguma, depender das relações humanas para qualquer recompensa duradoura.” “Só o trabalho realmente satisfaz?” “Sim. Não há muita gente que acrescente algo às nossas vidas.” Um recado enfiado no gargalo de uma garrafa para sempre jogada no mar aberto da insensibilidade. Perdera a vergonha de exibir seu defeito, mostrando-o como se fosse uma virtude que ele já sabia inexistente. Ele fora dotado apenas de paixões inferiores, aquelas para as quais não encontramos razões outras que não o medo, e a fome, e o isolamento: “planos superiores as comandam, e existe nelas um apelo perene que não se cala pela vida inteira; e hoje essa paixão já não parte de mim, e a minha fria existência se encerre naquilo me derrubará por terra um dia, diante da sabedoria celeste.” Ele, o pai e o avô aprenderam apenas a calar diante da ameaça. Paralíticos. Nenhum deles aprendeu a se defender, a socar, a bater no oponente, e ele representou o apogeu da resistência. Sem poder correr, aprendeu a calar, suportar, não demonstrar qualquer emoção, até cansar todos os músculos da face, que dobraram sobre si mesmos, cansados.

Ao olhar adiante, viu um carro aberto se aproximando. Um carro antigo, grande, com três mulheres dentro dele. Elas estavam fantasiadas, mas não como as que vemos no carnaval de tempos em tempos: trajavam roupas fora de época e com uma maquiagem exagerada, também fora de lugar. É dia claro, sol a pino, seus rostos mais pareciam máscaras do que qualquer outra coisa. Entrou para fazer um passeio, e o seu convite era a porta aberta. Nada mais.  Subiram de ré por uma alameda que não lhe permitia ver o lugar. Só quando estacionaram na frente do lugar é que ele percebeu se tratar de uma grande construção, magnífica, larga.




14 comentários:

  1. Olá Djabal
    De fato Freud, em o Mal-estar na cultura escreveu, com que eu concordo, que três são os motivos de sofrimento de todo o humano: 1- A impotência desse em relação a natureza; 2 - A fragilidade, entre elas a finitude de nosso próprio corpo e 3- As relações com outras pessoas, sendo que essa última é a que gera maior mal-estar e sofrimento.
    Não podemos negar que a vida de alguém é contituída a partir do outro, e que a cada dia que passa, mais e mais pessoas fazem parte e tem influência direta sobre nossa subjetividade.
    Daí, um belo escrito teu, escritor.
    Bjs.

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  2. Oi :)
    Que bom ver texto aqui! Gostei muito. E gostei do comentário da Salete. Me fez lembrar de quando li o Mal-estar, época em que eu estava enterrada em meio a algumas mortes. Coisas da vida e sua finitude. Aí lembrei o que realmente pesquei do livro e grudei nas minhas escamas, que foi me perguntar até que ponto o desenvolvimento cultural da nossa espécie conseguirá dominar a perturbação de nossas vidas comunais causada pelo nosso instinto humano de agressão e autodestruição, porque a gente cresce, a gente aprende, a gente cria e ainda assim o impulso do abismo segue.
    Beijosss :)

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  3. "A unidade do pensar e do ser só tem sentido e verdade quando se concebe o homem como fundamento, como sujeito dessa unidade". (Ludwig Feuerbach)
    Estranhar-se entre os "iguais" - e pensar a vida para além do pensamento, tem seus custos: o curso da vida inteira! Parabéns Erwin, pelo texto, e pela publicação dele na "Histórias Possíveis 61".
    Abraço.

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  4. Saudade de te ler, Djabal.(Pegando carona no comentário da Sally), Freud diz que os seres humanos, por serem desejantes, são condenados a sentir primeiro mal-estar e angústia, depois por serem impulsionados para algo que se supõe trazer a felicidade, um estado de completude de não falta.

    Sim, há muita gente que acrescenta-e muito- às nossas vida.O trabalho soma, sem dúvida,mas somente por um período.
    Ler seus escritos já é um prazer, acompanhado de Murilo então...

    Beijosss e bravooooo!!!!!

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  5. Por mais inescapável que seja a morte é ela que dá sentido à vida e a dor das relações humanas é o que nos faz mais fortes, mais poéticos. É uma concepção trágica (à la Nietzsche) afirmadora da alegria e da dor. Muito bom o seu texto.
    Abraço
    Iracema

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  6. Sabes, amigo: este "negócio" de blogs é espectacular. Por um lado só requerem o nosso empenho para serem...e por outro, a presença dos leitores , que trazem água fresca às nossas plantas.

    Ler-te é levar o espírito à "academia", a alma ao "altar" e o coração ao jardim das palavras que sabem dizer.

    Obrigada, mais uma vez por me levar a pisar o ar :)

    1 Bj*
    Luísa

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  7. Meu querido Amigo
    Este é um texto que aborda tantas vertentes...Que medo nos persegue tão violentamente, obrigando-nos a exigir de tudo uma certeza? Há certeza que nunca chegarão e no fundo, todos o sabemos!No pensamento, equacionamos tantas possibilidades e impossibilidades,dúvidas e probalidades,margens de segurança e erro,acertos e falhas, que esbanjamos o nosso tempo, enredados em questões de que não chegamos a sair.
    A finitude, é uma sombra numa vida que desejaríamos sem fim...a orfandade de pais vivos
    uma tragédia que nunca recomporá o coração...Depois de muitos anos de ausência, a voz do sangue ainda fala? Duvido muito! Mas, felizmente que há valores que nos fazem sentir gratos pelo pulsar da vida...e são tantos!!
    Os teus textos, sempre óptimos, têm a faculdade de me deixarem a pensar...talvez porque tenha conhecido algumas vidas assim|
    Obrigada pela postagem e por me levar a pensar que a vida pode ser boa mesmo...sem rede!!
    Beijo amigo.
    Graça

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  8. Djabal,
    Com o passar dos anos, se os olhos não fecharem e a memória não falhar, o nosso mundo é o cemitério cada vez maior por onde temos andado. O incontornável dessa constatação é que tentar ignorar essa realidade é como tentar morrer. Mas não ver que há vida para além da morte é recusar a vida que se tem.
    Um grande abraço

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  9. "Dá-se o nome de autorretrato, quando o retratista procura descrever o seu aspeto e o seu carácter, revelando o que captou da expressão mais profunda de si mesmo. O autorretrato constitui um exercício que permite revelar traços do criador artista. O mestre da pintura holandesa Rembrandt (1606-1669), através dos seus auto-retratos, permite, por exemplo, conhecer o percurso da sua vida, desde a juventude à velhice, mostrando-nos o homem de vontade indomável, mas solitário.
    No autorretrato, o artista procura mostra-se (ou descobrir-se) de uma forma mais nítida, mais verdadeira e pode mesmo não gostar daquilo que vê, pode não aprovar, e, por isso, pode modificar a imagem que de si encontrou.
    Assim, um autorretrato é um retrato, uma imagem, que o artista se faz de si mesmo. Muito usado na pintura, na literatura ou na escultura, o autorretrato nem sempre representa a imagem real da pessoa, mas sim como o artista se vê: aceita e assume ou tenta mudar e isso depende de cada pessoa ou mesmo de cada momento.
    Alguns artistas afirmam que existe sempre algum temor em cada autorretrato, pintura, fotografia ou escultura. Teme-se a análise introspetiva, teme-se o conhecimento que ultrapasse a barreira da fantasia, que faça desmoronar um ideal. Como não é um desafio fácil para o artista, ele tende a esconder alguns traços físicos ou psicológicos. Por isso, o autorretrato, tal como a auto-biografia ou o livro de memórias, tende a ser uma mentira".
    Bela mentira, meu amigo! Bravo!

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  10. Sensível, detalhista, Djabal. O quanto deste texto é de fato auto-retrato? Lembra-me um conto chamado Casa Damasco, do Ziyad Hadi. Abs. Danita. pingodeprosa.com

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  11. Passei para conhecer as novidades literárias mas, concerteza, estamos no...repouso do guerreiro!!
    Beijo e um fim de semana.
    Graça

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  12. O poeta é um fingidor.
    Finge tão completamente
    Que chega a fingir que é dor
    A dor que deveras sente.

    E os que lêem o que escreve,
    Na dor lida sentem bem,
    Não as duas que ele teve,
    Mas só a que eles não têm.

    E assim nas calhas de roda
    Gira, a entreter a razão,
    Esse comboio de corda
    Que se chama coração.


    A imobilidade psíquica é a mais terrível das paralisias.
    Belo texto, amigo
    beijos

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  13. E eu volto para sublinhar o interessante e inspirador comentário da amiga Ana Guimarães.

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  14. No rosto todo talvez exista também , dialogando com Paulo Mendes Canpos, as plenitudes da saudade. O que seríamos sem elas? O que seríamos sem nossas saudades?

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