terça-feira, 19 de outubro de 2010

Perdição das árvores


Pai, lá no alto, são fogueiras ou estrelas?
Cesare Pavese.


Aquietando o pensamento, rodo até encontrar a lareira. O fogo será preparado por um jovem meticuloso, um cadete de cabelos grossos, curtos, claros e espetados. Ele escolhe da pilha, cada indivíduo, e os coloca um ao lado do outro, formando um quadrado; dispõe os demais lenhos em simetria, de sorte que cada um se apóie sobre o outro pelas extremidades, subindo quatro paredes ventiladas. Resta ao final uma coluna de centro oco. Ele preenche aquele miolo com aparas, cavacos, varetas, ripas e gravetos. 

A assembléia está organizada, mas ainda não está pronta.

Entre aqueles seres diferentes e organizados, insere os provocadores: feitos de folhas de antigos jornais amassados, enrolados, adquirem a forma de línguas, e são enfiadas, calcadas, em cada brecha das paredes da torre. Ficou produzido um todo indistinguível em suas partes. Lenho, lignina, celulose.  Canetti a chamaria de massa ou multidão.
O cadete responde ao patrão quando perguntado se a madeira estaria boa para fazer fogo: “Sim, é boa, é seca e não é verde. A verde queima devagar e faz muita fumaça. Faz um fogo ardido, pálido, esfumaçado.”
Pronto: pega do seu isqueiro, bate a pedra e faz a chama; aproximando-a das pontas daquelas línguas, aqui, ali, acolá, todas colocadas, estrategicamente, em seus cantos. E aquela labareda primitiva ganha corpo insano: brasas, línguas, incêndio, vir a ser carvão.
Não é o fogo gordo do Braga, é magro e alto e irritadiço. As pequenas labaredas formadas na lenha que ficou no rés do chão se atraem e se lambem, mesclam-se com os cavacos, e assumem o discurso único. Escandescer.
De repente, aquela figura se desestrutura.
Há um estalar, uma explosão surda, e as peças ruem. Cada uma se derruba em direção ao centro, e, ao cair, faz uma farândola de faíscas sugadas com estardalhaço pela chaminé.
Os gases liberados vão se transformando numa só rampa de borboletas.”
Resta um ser solitário. Caído ao lado, ainda íntegro, próximo ao centro, foi parcialmente atingido, ardeu ao ponto de criar uma cresta negra na superfície. Está livre da ameaça da queima completa (Eppur si muove).
O crepitar das chamas se apazigua, e o fogo parece querer deitar e dormir: não passa de uma ilusão.
O cadete toma do atiçador, começa a bulir, e logo a fogueira espirra e recompõe a força da destruição, retomando o vigor daquela conspiração entre os jornais e a arraia, sem seiva, miúda. Pipoca das cinzas um tição que pula e bate na tela da lareira, e ao voltar cai em cima dos outros salvados. Eles, que resistiam até aquele momento, também enrubescem e não conseguem resistir mais.

“Fogos azuis não geram fogos azuis. Fogos crepitantes não herdam a crepitação do fogo-pai que cuspiu sua fagulha iniciadora. Os fogos apresentam reprodução sem hereditariedade.”

Aqui, no alto da montanha, não houve eternidade, não se cultuou os deuses, não se buscou a justiça entre os homens. Apenas segui duas delgadas nuvens em forma de linhas paralelas até este ponto, onde a nuvem cúmulo se esgarçava em mil outros pedaços, por sobre a casa, sugerindo-me o destino: o de fecundar céu quando queimado.

21 comentários:

  1. Nossa, Djabal, uma poesia todo esse preparo, esse ritual para acender a lareira. Do princípio ao fim. Você sempre nos surpreendendo. Brilhante, seu texto. Entre a denúncia (fogueiras são devastadoras)e o lirismo.
    Adorei os períodos abaixo, considero-os uma perfeição de detalhes, poéticos e repletos de lirismo filosófico...
    ... ( As pequenas labaredas formadas na lenha que ficou no rés do chão se atraem e se lambem, mesclam-se com os cavacos, e assumem o discurso único. Escandescer.
    De repente, aquela figura se desestrutura.
    Há um estalar, uma explosão surda, e as peças ruem. Cada uma se derruba em direção ao centro, e, ao cair, faz uma farândola de faíscas sugadas com estardalhaço pela chaminé.
    “Os gases liberados vão se transformando numa só rampa de borboletas")... Que isso??? Muito lindo!

    Djbal, lá no alto são fogueiras ou estrelas? :)

    Um beijo, amigo querido. Muitos parabéns. Muitos.

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  2. "E aquela labareda primitiva ganha corpo insano: brasas, línguas, incêndio, vir a ser carvão".



    Sua escrita é espetacular...Fisga e prende até o fim. Visualizo cada detalhe. Dizer o quê? Você já é mestre nisso, é o que penso cada vez que venho aqui.
    Abraços,

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  3. Djabal,
    Das impressões colhidas, ficou-me mais evidente - se é que se pode nominar algo de evidente dentro da subjetividade - que a acha mediadora entre o fogo e o céu, é o intervalo entre um sentimento e outro, entre um ser e outro, entre uma sociedade e suas "notícias" incendiárias. Sempre bem conseguido o resultado da tua narrativa.
    Meus parabéns!
    Abraço

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  4. Descrição belíssima, prende o leitor. Há poesia na sua forma de contar. O léxico também me fez lembrar sons que não ouvia há tempo.
    Muito bom.
    Abraço.

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  5. Gostei do blog querido, seguirei e voltarei!
    Seja meu amigo nos meus dois blogs? Será um prazer!
    B-Jos.

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  6. Eppur si muove...

    Galileu Galilei fora de contexto mas muito bem aplicado.

    beijo e parabéns. Tá bonito o blog!!!

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  7. Nesse caso a fogueira fez iluminar mais uma estrela aqui na terra. Aqui, lá, ao escrever, ali, onde tua alma lírica se encontra de quando em quando.
    Um texto que dá vontade de ler tantas vez, quantas não sei ainda. Mas para mim esse tem algo mais que os demais. É AINDA MAIS, mais fogo, mais leveza. Acho que são as labaredas que predoominam apesar de que tenhas te dedicado a descrever com detalhes, de foma minucuiosa o preparo dos elementos, assim com o movimento desses elementos antes de deter-se nas 'CHAMAS' - na labareda que diminui e pode ser realimentada.
    Parabéns, gostei, especialmente gostei.
    Bjs

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  8. Grande prosa poética com um poder descritivo de primeira, D.

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  9. Obrigada pelo comentário, você já está me seguindo?
    Abração...

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  10. Sempre desejei atear fogo no céu, finalmente, sei como. Por favor, não me dêem fósforos e escondam logo as nuvens!! :)
    beijo

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  11. Eu tenho loucura pelo fogo, mas não gosto de ver a natureza em chamas.
    saudações Educacionais !

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  12. O ritual, tão bem argumentando, permitiu que este leitor extrapolasse e tecesse outras compreensões possíveis, enquanto metáforas da vida. Como se uma grande avalanche de acontecimentos estivesse a remexer nas acomodações instaladas no tempo, "incandescendo" vontades em novos despertamentos.

    E, de repente, bate o desânimo: "... o crepitar das chamas se apazigua, e o fogo parece querer deitar e dormir: não passa de uma ilusão."

    Enfim, a rica e bem cuidada argumentação permitiram extrapolações. Ainda volto, para ler mais vezes. E, claro, viajar mais! Soberbo!

    Grande abraço, Djabal

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  13. Esta sua poesia horizontal, acalentando o sonho atávico do Homem: domínio do Fogo, fonte de Força, Sabedoria, Poder e sabe Deus sabe o que mais... escrito assim tão espantosa... Fiquei sem folego, espantada, com a riqueza dos detalhes que fazem a cena se abrir aos olhos e quase se pode sentir o calor daquela chama...
    Monumental.
    E sempre com aquele seu domínio do léxico, sem perder a naturalidade.
    Já disse hoje o quanto admiro você com suas letras acompanhantes.
    Dito então está.
    Aquela coisa toda e beijos.

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  14. Eu também contribuo para a perdição das árvores, meu querido amigo Djabal. Infelizmente!

    E sabes que sinto isso a cada folha de papel que imprimo no escritório?

    Neste caso, o escritório é a minha fogueira!

    Resta-nos aquietar o pensamento....que sempre é o nosso melhor amigo, certo?

    Obrigada sempre, pelas reflexões que prolongas a cada um de nós!

    1 Bj*
    Luísa

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  15. Amigo
    Deixei aqui um comentário...até falava no acender da minha lareira... Onde está? Ardeu...
    Beijo
    Graça

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  16. Que textos você tem, Djabal.
    Seu blog é dos bons.
    Valeu o comentário, valeu te conhecer.

    Abraço com admiração.

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  17. Passando pra marcar presença!
    Adoro aqui!
    Abraços.

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  18. CARO AMIGO BLOGUEIRO DJABAL,

    COMO SEMPRE, LENDO SUAS POSTAGENS, FICO ADMIRADO COM TAMANHA ARTE NO USO DAS PALAVRAS.
    REALMENTE, NESTE MUNDO, TÃO GRANDÃO, TÃO CHEIO DE PROBLEMAS, ENCONTRAMOS PESSOAS ESPECIAIS, TALENTOSAS E CHEIAS DE POESIA E ARTE.
    ESTAS REALMENTE, SÃO AS TRANSFORMADORAS E ATUANTES NO MUNDO, POIS ENTENDEM O QUE É IMPORTANTE, MAS NÃO FICAM SOMENTE NO ENTENDER, AGEM TAMBÉM.

    OBRIGADO PELO SEU COMENTÁRIO, E PELA VISITA NO MEU ESPAÇO.
    FICO MUITO ORGULHOSO QUE NESTE PEQUENO ESPAÇO QUE EU TENHO, POSSA RECEBER VISITAS COMO A SUA.

    UM GRANDE ABRAÇO E FINAL DE SEMANA ESPECIAL PARA TI.

    DO AMIGO.

    FÁBIO LUÍS STOER

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  19. Uma rara música permeia esse conto, com cenas descritas como se fosse prosa poética e com variações ritualísticas em tono do fogo bem impregnadas pelo autor.

    Parabéns por essa proficiência. Conto requer técnica quanto uma retórica bem resolvida no desenvolver do texto.

    Um abraço. Saudações minhas.

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  20. Djabal,

    Ainda ontem, em conversa com uma professora de literatura sobre escritas e talento e criatividade falei neste texto, que tinha lido apenas de relance, mas marcou e marcará. Era a propósito de se poder escrever um texto extraordinário, criativo, original, interessante e rico, sobre qualquer coisa, embora muitas vezes se procurem temas e assuntos que, pela sua importância, já dão relevância ao texto. E lá falei deste texto. Quem se lembraria de pegar no acto de acender uma lareira (tem que se lhe diga, tem, mas não é por isso)e de escrever deste modo, de construir um cenário em que se representam figuras com o seu tempo e o seu papel, no teatro da nossa vida?
    Um abraço

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  21. O fogo queima, destrói; e recria. O fogo é meio e fim.
    "De repente aquela figura se desestrutura", mas , na verdade, ela está se estruturando para queimar, destruir e recriar.
    A boa escrita é como o fogo: parece destruir, desestruturar. Mas, na verdade está sempre recriando.
    Abraços
    Luiz Ramos

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