segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Hoje foi um dia tão dinâmico.




Ele amava mais o Japão que ela
 involuntariamente representava
do que ela própria;
 amava a fuga, não o fato.
Daniel Piza.



O senhor, depois, me passa os dados?
Quais dados? — perguntou Pedro.
Esqueceu?
Hã?... Não, só não me lembro agora.
Pode deixar — fazendo menção de sair.
Se você me lembrasse, talvez...
Deixa pra lá. Obrigado — e deixou a sala, fechando a porta atrás de si.



Aqui, o escritório de arquitetura. Nele, Pedro está sentado, lendo alguns relatórios, com seu filho mais velho, Hans. Este se mostra pela primeira vez interessado no andar dos negócios. Faz algum tempo que não vê o pai. Saiu mais cedo da faculdade. Entrou com o meu livro na mão, lido além da metade, e o exibiu para o pai:
Estou gostando muito do livro. As histórias estão perto da faculdade, eu conheço todas as ruas. O texto tem o mesmo ritmo das batidas do meu coração, e o tempo corre, rápido como as nuvens.
O pai, olhando para mim, abre um sorriso e inclina a cabeça sobre o ombro, em seu gesto mais peculiar.

Após o aperto de mãos e do agradecimento, com a chegada da noite, apronto as luzes e a posição da câmera para registrar a chegada dos demais irmãos.
O pai sai detrás da mesa e se aproxima de uma sala de estar. Ambiente claro, sereno, todas as cores correm para o Mabe, pendurado no centro magnético da parede. Senta-se na ponta do sofá de três lugares, o filho assume uma poltrona na outra ponta do semicírculo que se forma.
Chegam duas moças, avisadas da minha presença, sussurram algo parecido com boa noite e beijam o pai, sentam-se ao seu lado.


Este é o amigo de quem lhes falei. Ele se prontificou a filmar o nosso encontro de hoje. Sem roteiro, certo? Para eu poder rever todas as vezes que eu quiser. Pedi que ele fizesse algo que me fosse um carinho.
As meninas têm vinte e vinte e dois anos, aproximadamente. Marion e Verena. Loiras de olhos oblíquos, longilíneas, maçãs salientes, rostos em planos que se cortam, lábios grossos. Parecem ter saído da Montanha de Davos. Vestidas com simplicidade e bom gosto. Marion, a mais velha, com seda na camisa e casaquinho curto. Verena, com a echarpe enrolada várias vezes no pescoço, para enfrentar a baixa temperatura e diminuir a altura; ambas vestem calça de brim com cintura baixa. Hans, o mais velho, é moreno, alto, encorpado, com barba cerrada, míope, dispara contínuos olhares indagadores, parece ancorado, amarrado. É desleixadamente jovem com a roupa, aparenta ser desligado e sonhador.
Pai, como está a vida, as suas coisas? — perguntou Marion, com olhar faiscante.
Estou trabalhando em um plano de reestruturação do centro velho da cidade. Um grande plano, para torná-la mais habitável, fluida. Sei que não será executado, mas é um grande desafio a ser vencido pela razão. Estou adorando trabalhar nisso. Já recebi quase todo o combinado, felizmente. E você, filha?
Embarco na semana que vem. Vou estudar fora. Mestrado em desenvolvimento sustentável. Consegui uma bolsa em uma fundação. Além do curso, terei mais meio ano de prática. Estou super animada. Volto apenas quando resolver levar a minha vida a sério, namorado, filhos, e ficar próxima da minha avó, quando acontecer.
Você é a sua mãe falando.
Olha de lado.
Verena, meu amor, terminou o curso?
Terminei. Acabo de voltar do estágio em Artes na China. Eles pagaram tudo, exceto as passagens. Estão interessados em familiarizar o país para os descendentes. Fiquei três semanas, trouxe as fotos para você ver.
Vamos ver lá em casa, com calma. Eles estão ocidentalizados?
(Ela parece tanto com a mãe.)
Completamente. Todos os trabalhos (inclusive as pinturas à óleo) estão voltados para a exportação. Eles querem mais é faturar.
Hansi, você conseguiu se livrar da “depê”?
Consegui pai, madruguei um semestre para me livrar dela. Agora estou cursando uma matéria do próximo ano, para ganhar créditos e compensar.
Filho, lamento por ter insistido tanto nesse curso. Acho que exagerei.
Nada a ver, pai.
Marion, a mais despachada, apontando para uma carta na mão do pai, pergunta:
Novidades? De quem é?
Uma carta do seu tio, meu irmão Paulo. Aquele solteirão solitário, que mora só. Não usa computador, escreve suas cartas à mão, não dá o endereço para ninguém, usa uma posta restante. Gosta de andar além da linha da sombra. Quer ler?


Não, obrigada. É aquela antiga mania de perseguição, não é?
Meu pai, seu avô, durante a guerra ficou solto pelos campos, para escapar dos bombardeios. Era considerado “vagabundo da bomba” e por isso perseguido. Encontrou a minha mãe do mesmo jeito. Fugindo do exército e da polícia. Fez de um apartamento-catástrofe um lar. Assim eram chamados os apartamentos construídos para abrigar os refugiados. Somos o fruto dessa época. Ele escreveu contando das casamatas encontradas em perfeito estado de conservação, da indestrutibilidade dos prédios, relacionando-os aos sonhos enterrados, mas jamais destruídos. Parece que vive no Chaco. Sua última proeza se deu em Nuremberg, na Academia de Belas Artes. Expôs seus gnomos dourados (os chamou de poisoned) fazendo a saudação nazi. A polícia deu em cima.
O tio jamais veio pra cá? — perguntou Verena.
Não, filha, e jamais virá. Bem, creio que não. E você, pelo visto você também irá para longe. Em todos os sentidos.
Não consigo mais mentir, e isso é um grande problema. Para os estrangeiros, não é falta de educação ser honesto. Aqui, as pessoas desmontam diante da sinceridade. Ao encontrar pessoas com esse comportamento nojento, não consigo ficar próxima, ao ponto de me sentir enjoada, daí, saio andando. Ao mesmo tempo, quando vejo alguém feliz ou dizendo algo tocante, já começo a chorar, chega a ser ridículo.


Desmontar?
Pedro fica pensativo, olha para um lugar indeterminado. (Essa palavra veio do latim montare. Significa ascender, aprontar para funcionar, dar o equipamento necessário. A força foi de primeira necessidade para navegar, o braço, centenas deles comandavam os remos, até contra a corrente; depois veio o desvelo, o vento enlevado assoprando as latinas, domesticado por Éolo, em Stromboli, e nos ensinou o jeito. Revelando suas manias e constâncias, a navegar com ajuda e jeito dos alísios, esquecendo aquela tolice de lutar contra. Desgarramos da costa e nos enfunamos nos mares. Espalhados por ele, como as bactérias, vírus e bacilos. E os ventos nos conformaram, moldaram as árvores, limaram as rochas e rolaram os seixos. Levou-nos a lugares desconhecidos. Desmontou-nos para remontar léguas além, completamente novos. A América, não fosse a vaidade, bem poderia se chamar Alísio. Ele  também brinca, desaparecendo em determinados lugares, provocando calmarias. Ou se mostra seco, soprando quente, produzindo o deserto e a morte. Pedro, você me enche com esse nhenhenhém. Poderia ser mais direto, pratico, objetivo? Que saco. Também se enfurece, tornando-se flagelo, mostrando-nos quem segura o cabo do chicote é ele. (Estou virado de bruços, e a mulher me cavalgando, febril, tentando me virar, me beijar, sem sucesso. Você poderia ficar quieta, por favor?) Tornado. Tufão. Furacão. Eu sou esporo, consumido no esforço da sobrevivência, navegando com meus braços contra a corrente. Vai-se o tempo como o vento. O uso constante dos braços me esqueceu de olhar os lados, para soltar a intuição de seguir o vento.)

Quebrou-se o silêncio:
Vamos para sua casa, então, pai?
Como se fosse um comando, todos se dirigiram para a porta. Desliguei o equipamento e os acompanhei. Marion mostrou-se interessada nos detalhes do projeto. E conversaram sobre aquele outro sonho humano de uma cidade perfeita. Sonho de muitas mentes. O pai escolheu os de Della Francesca (ele e sua perfeição sem homens), Canaletto, Albert Speer e Frank Lloyd Weber, como material de pesquisa. Ela se interessou pela distribuição física dos edifícios. Quanto mais espalhados estiverem, quanto mais espaço tiverem, melhor para o vento passar.
As cidades, além de excesso de população, estão sem espaço disse Pedro.

Caminhávamos em uma rua em declive, beirando o cemitério da Consolação, dirigindo-nos para Rua Mato Grosso. A conversa, que começou como pipoca, também terminou como: murcha. As últimas frases que ouvi:
Eu comprei um Buda na minha viagem, ele tem uma Hello-Kity no colo. Será que cometi algum sacrilégio?
Claro que não, filha.
Algumas pessoas vinham em direção contrária, caminhando pelo meio da rua. O número delas aumentava a cada minuto. Pessoas, marolas, grupos, ondas, vagas, multidão, mar. Todas usavam a mesma camiseta. Estavam saindo do estádio. Uma pedra voou, atingindo um carro próximo. Vandalizaram um telefone público. As vagas se abriam e fechavam ondulantes, berrando palavras de ordem. Cada horda com um objetivo fervilhante a ser depredado. O casal de namorados, que estava no outro lado do passeio, foi intimidado, gritos e gestos de dedos médios, e posto a correr. Surgiu diante de mim a camisa de Pedro: a cor errada.  Aquela cor não poderia ser usada naquele lugar, em hipótese alguma. Pedi que ele corresse.
Sai daí.
Não precisei avisar a mais ninguém. Os filhos anteciparam o meu grito,  subiram o muro lateral e se abrigaram na lápide mais próxima. Pedro continuou, ignorando meu pedido. Sequer virou a cabeça. Entrei no bar mais próximo, que fechava a porta, ainda a tempo de acompanhar o seu trajeto rumo à turba.

12 comentários:

  1. E fico imaginando o que foi feito de Pedro, no meio de todo aquele vandalismo. Ele, como seu irmão Paulo, herdou as neuroses dos tempos difíceis de seus pais, não é?

    Djabal, nosso blog está sentindo sua falta!
    Paz, amigo!

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  2. Retratos de família... Djabal, meu amigo, mais uma vez registro minha admiração por sua capacidade de construir personagens tão interessantes.Alguns deles me trazem o perfil de pessoas que tenho a impressão de conhecer de longa data.[rs] Tal pai, tais filhos.[rs] Estaria Pedro se juntando à turba do "Curinthians"[rs]...????
    O paradoxo fica com a imagem. Que dinamismo!!![rs]
    Mais um bravoooo, amigo escritor.

    Beijosss

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  3. Chega a iludir que o dia vai ser bom, de sorte, de amor.
    E como a gente acredita em ilusão!
    beijo.

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  4. Realmente, uma capacidade narrativa de alto nível, que envolve inteiramente o leitor. Vc é um talento.

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  5. Djabal
    Tua capacidade de utilizar uma história com início, meio e fim como pano de fundo para conteúdos bem mais complexos, é FENOMENAL.
    A poética, idílica-idílica predomina. Algo que só as mentes ilumindas dos estudiosos podem produzir.
    Parabéns
    Saly

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  6. Djabal:
    Viajar no seu texto, é como olhaf pela janela dos seus olhos.
    Cada dia que passa, sua escrita fica mais refinada e mais encantadora. Parabéns!
    Anny.

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  7. Djabal
    História de uma família com todos os seus tiques e costumes normais e diferentes entre si.
    A teia do enredo bem urdida que nos prende até ao fim.
    O coração bate mais depressa imaginando o que teria acontecido a Pedro...foi apanhado num gang, foi vitima de vandalismo...e num texto com este valor e capacidade, deixa-nos a mente trabalhar á procura da resposta: o que foi feito de Pedro?
    Eu penso que esta escrita...não é para todos!
    Só para aqueles que são verdadeiramente escritores.
    Parabens.
    Beijo
    Graça

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  8. Djabal,
    Dinamismo.
    "Do latim montare. Significa ascender, aprontar para funcionar, dar o equipamento necessário. A força foi de primeira necessidade para navegar, o braço, centenas deles comandavam os remos, até contra a corrente; depois veio o desvelo, o vento enlevado assoprando as latinas, domesticado por Éolo, em Stromboli, e nos ensinou o jeito".
    Você aprendeu o jeito e sabe navegar aproveitando o vento enlevado que sopra na Literatura.
    Abraços
    Luiz Ramos

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  9. O mesmo encanto, caríssimo, traz-me a este seu lugar sagrado, com estas palavras repletas de novidades e ideias que nem em sonhos eu imagino... e pra mim, este texto saiu-me que nem um sonho, daqueles bem concatenados, que se tomamos consciencia de que ele é sonho, vira um filme, e aí, no bater rápido, cada vez mais rápido dos cílios na tela e do coração quase na mão, vem este seu final sempre (incrivelmente esperada esta surpresa tão marca sua)inesperado, assustadoramente real...
    O que será de Pedro, eu me perguntei ao terminar...
    Sabe o que penso?
    Ele suicidou-se.
    Com medo do ato concreto, mergulhou na turba ensandecida e...
    Bravíssimo!!!!
    Aquela coisa toda já não basta.
    Beijos.

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  10. Da onde você tira tudo isso?

    :-)

    Parabéns pela criatividade! Muito interessante essa sua cabeça!

    Beijos

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  11. Djabal,

    aprecio muito ler os seus textos, desde o título, como se lesse um estudo de "arquitectura" que se desdobra em planos diversificados e em escalas variadas, com um potencial de discernimento e de informação que o autor explora e aproveita magistralmente.
    Parabéns!

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  12. Concordo com o Carlos, Djabal.
    E, além do mais - memo que não tenha a ilusão de que escreveria tão bem como você, com tanto requinte e detalhismo - invejo seu tempo disponível dedicado a escrita.
    Parabéns, meu amigo!

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