segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Dingo




Wednesday morning at five o´clock as the day begins
Silently closing the bedroom door
Leaving the note that she hoped would say more
She goes downstairs to the kitchen
Clutching her handkerchief
Quietly turning the backdoor key
Stepping outside she is free
(Lennon&McCartney)



Meus tios, meu pai e minha mãe estão envolvidos na briga pela herança de Artur Alves Reis, litigando para receber algo, acreditando seu, o direito. E as brigas e discussões e reuniões infindáveis em que eles estão envolvidos desde a cremação do corpo perdem seu peso sobre mim quando me lembro de um deles, que não está aqui e faz muita falta.



Segredo é um atributo de toda família. A minha, contudo, possui algo diferente, um enigma: meu tio Dingo. Um homem esquivo e impassível. Alto e magro, com marcas fundas variadas e irregulares na pele. Estava sempre vestido com apuro, mas de maneira simples. Deixava à mostra apenas o rosto e as mãos. Os cabelos cortados na altura exata para ficarem como cerdas, cinzas, de uma escova. Tivemos uma, se posso dizer assim, intensa convivência por um período. Uma pessoa instruída que se alimentava apenas de frutos, folhas, sementes, legumes e raízes. Tinha bom humor, mas entranhado. Não extravasava suas emoções; ele as sentia e sabia que jamais poderiam ser descritas; evitava, pois incompreensão e discórdia. Quem quisesse encontrá-las devia ouvir as suas histórias, a alegria dos seus apelidos, sua delicadeza.


Manuel veio das Minas Gerais, de uma família de tropeiros, e parou no interior de São Paulo, região de Sorocaba. Trabalhou como escriturário pelo Brasil. Estivera em Manaus e de lá me deixou boquiaberto com a história do calor do lugar. O ar era tão abafado e perfumado de floresta que poderíamos servi-lo como sobremesa, cortado em rodelas e cobertos com massa de sorvete. Descreveu a pesca do peixe-boi. Uma prática comum aos índios e caboclos, que ele narrava com tristeza serena: “Esquentavam uma melancia e a jogavam no leito do rio, e subitamente ela era abocanhada pelo animal. Após algum tempo de agonia causada pela alta temperatura do miolo, ele se virava de borco: morto. Uma maneira prática de retirá-lo da água, sem grande esforço ou luta, visto que seu peso chegava até os quinhentos quilos”. Hoje se sabe que os poucos sobreviventes já têm nome, sobrenome e registro no IBAMA.


Ele me contou as histórias do nosso folclore: do Saci-Pererê, do Boitatá, da Curupira e da Mula-sem-cabeça. Leu todo o Monteiro Lobato. Nas refeições, fazia uma “vitamina” de cevada, lúpulo, levedo, aveia. Apesar do gosto horrível, experimentei várias vezes o seu preparado, com medo de desapontá-lo. Ele comia cerveja, nozes, tofu e suco dos frutos. Perambulava pela cidade para encontrar suas frutas prediletas: acerola, açaí, cajá, caju, cupuaçu, graviola, limão (uma variedade vermelha e doce), umbu, manga e maracujá, as de melhor sabor. Lembro que ele ficava horas escolhendo. Conhecia todos os tamanhos e variedades, aprendi com ele a gostar delas. Não tomava nenhum remédio, curava-se com plantas. Aprendera com uma índia no Mato Grosso.

Evitava, também, falar de sua vida pessoal. Apenas relatava nomes e lugares, não sabia de suas relações, se elas existiam ou não. Foi um enigma bondoso. Conversava muito com minha mãe. Parecia dar conselhos e acalmá-la. Trabalhava com escrita: fazer declarações ao fisco dava-lhe muita autoridade. Possuía uma caligrafia equilibrada e cuidadosa. Escrever tinha o método e o esmero da cerimônia do chá. Ensinou-me a empunhar o lápis ou a caneta. Você deve escrever assim: mostrava os três dedos (polegar, indicador e médio) juntos e esticados à frente, com o instrumento preso entre eles, naturalmente, sem forçar a pena ou o grafite no papel, dando forma às letras e palavras, e pousando a base da mão no papel. A mão que escreve deve deslizar sobre o papel fazendo o caminho do texto, jamais se retesando ou tomando uma posição perpendicular à folha. Regularmente trazia grandes livros para casa, com folhas em branco, pautadas e com linhas verticais formando colunas. Descrevia os atos das pessoas, logo após as quantificava, para no final fazer um balanço provisório, cujo resultado poderia ou não carregar para a próxima página. Todo final de ano, fazia algumas simples operações aritméticas e calculava o saldo das ações, o que foi acumulado, o que foi consumido, a quantidade de devedores incobráveis e o imposto que deveria ser pago. Explicava-me que cada papel que eu jogava na rua havia que ser retirado por alguém e isso logo mais apareceria também naquele livro. Eu não queria aparecer no livro dele, não assim; queria aprender com ele, não que ele soubesse de mim. Até hoje guardo meu papel no bolso.


Minha única irmã era a “pixoxó”. Foi assim que descobri meu primeiro pássaro. Até então, minha atenção jamais havia se prendido a nenhum deles. Sabiás, canários, azulões e bem-te-vis cantavam em grande quantidade e variedade por aqui, há muito tempo. Entretanto, o primeiro que vi foi esse extravagante e sonoro pixoxó. A voz estridente e canora daquela pequena garganta guardava semelhança com a da minha irmã. Logo, o apelido não era por acaso. Meu tio também a chamou algumas vezes de saracura. Minha mãe ria muito e dizia ser esse também o seu apelido de criança, diziam que ela também possuía perna fina. Assim que minha irmã ouviu, franziu a testa, suas feições ficaram vincadas e nunca mais usou esse apelido.


Tenho certeza que se daria muito bem com Fernando Pessoa, como se dava o tio Artur. Talvez alguém encontrasse seus cadernos e manuscritos em algum caixote perdido de suas várias mudanças. Encontrou a Rua dos Douradores em Manaus, talvez Araçoiaba da Serra, não sei. A frase que cotidianamente vem a mim: “Dar a alguém os bons-dias por vezes intimida-me. Seca-se-me a voz, como se houvesse uma audácia estranha em ter essas palavras em voz alta. É uma espécie de pudor de existir – não tem outro nome!”. Era um sussurro o seu ... dia.


Ao chegar do trabalho, sempre com o guarda-chuva pendurado no braço, sentava-se para o café, preto e forte, e o cigarro de palha, ardido e cheiroso. Era o momento das lamúrias. Minha mãe o assediava com pedidos de dinheiro emprestado para a compra de algo; não reprovava, tampouco intercedia nas brigas do casal, nas discussões entre os irmãos da minha mãe e o cunhado, acusado de infidelidade. Serenava os ânimos com sua calma de bom ouvinte. Jamais interferia, mesmo quando eu era espancado pelo meu velho. Apenas se recolhia.


Filho último de oito irmãos, vagueou pelo mundo afora sem nunca ter falado de ninguém. Viveu em pensões e com parentes em períodos alternados. Sempre que a convivência se estreitava, ele se mudava. Amizade não exige confidências, tampouco precisa de confirmações periódicas. Ele dava seu carinho dessa forma: convivendo. Quando do carinho se caminhava para a invasão e curiosidade, fosse amor, fosse algum outro sentimento humano qualquer, ele mudava de emprego, de cidade, e pronto. Ia embora. “Toda pessoa é morta pelo que ama.” Os seguidos empréstimos não pagos tampouco o prendiam onde quer que fosse. Um pesadelo o assolava constantemente: um tribunal do júri composto de rostos conhecidos o condena. Foge e encontra o caos em um redil de cães selvagens australianos com presas prontas para dilacerar sua carne.


Gostava de visitar o manicômio judiciário. Sentia necessidade periódica de conviver com os doentes. Observava e aprendia com a imperfeição deles. Passava as tardes de sábado conversando e ouvindo. Fez um resumo do que ouvia e me deu de presente a folha escrita à mão:

“Metafísica. o homem é uma criança com medo de castigo venera o suborno e morre com o taco de golfe nas mãos aos oitenta anos seu rosto e de qualquer outro é divino e horrível não sei pensar rosebud me compra um cigarro ninguém está vendo na Itália era porteiro da mais famosa exposição do Museu do Futuro haverá apenas veneno como alimento faço com a uva mais podre o vinho mais doce apoiado sobre o casco da tartaruga está o mundo onde músicos tocam instrumentos dourados de sopro uma canção inaudível das torneiras e dos homens apenas água é despejada inundando a maior e a menor coleção de notas do mundo seus detentores têm em comum sua inutilidade a vida inteira é um relatório dos fatos escrita no monólito negro a realidade é algo completamente distinto do que nos dão nossos sentidos me dá a sua guimba ao final encontramos o corrimão dourado de uma sólida e circular escada com degraus que levam sempre ao início é percorrida por esplêndidas mulheres em passo lento e ao serem indagadas pelo criador da tartaruga da utilidade respondem foi feita para a profanação para a noite do amante rosebud dois internos estão transando entre si não com monitores”


Às vezes, ele volta. Mas não consigo ver ou me lembrar de detalhes do seu rosto. Sei que era tanto sereno quanto horrível. Voltou hoje pela manhã, simultaneamente à leitura da história daquele velhote marido de dona Santinha, que havia lido mil e duzentos livros e chegara à conclusão de que isso não servia para nada. Foi embora nu, montado em seu burro. Depois de algum tempo, encontraram uma sandália à beira de uma cratera.

Minha ansiedade diminui ao contemplar o mar e decifrar os sinais que enviam as nuvens com seus mapas brancos e gordos em fundo azul. Fiz uma visita ao centro de atendimento aos alienados e a primeira frase dirigida a mim foi: “Me compra um maço de cigarros? Tá aqui o dinheiro, ó. Vai lá, ninguém tá vendo”.






12 comentários:

  1. Fala, meu amigo blogueiro!

    Esta foi uma narrativa delicada e com muito sentimento.

    Viajei com a(s) história(s) do tio Dingo!

    Perfeito!

    Parabéns, amigo!

    Beijos

    ResponderExcluir
  2. Olá querido Djabal

    O texto é perfeito ! Também tive um Tio Dingo que ficou na lembrança como um homem único, cheio de artimanhas. O tio era tão " pão duro" que todo mundo o chamava de tio minero.O pior é que ele economizava até os banhos.

    beijos

    Rose

    ResponderExcluir
  3. Querido Djabal
    Não, nunca tive um tio Dingo...mas não calculas quantos "Dingos" encontrei na vida...Pessoas que adulteram o sentido da vida..".têm uma espécia de pudor de existir"...São pessoas que estão perenemente em luta contra o que possam sentir...como se evitassem uma doença contagiosa...
    Mais uma vez um texto lindissimo que alimenta o meu gosto de te ler...
    Beijo e uma semana perfeita.
    Graça

    ResponderExcluir
  4. Olá amigo escritor, amei o perfil do seu personagem!
    Queria tanto ter um tio como esse... seria muito divertido.

    ..."Gostava de visitar o manicômio judiciário. Sentia necessidade periódica de conviver com os doentes. Observava e aprendia com a imperfeição deles".
    Segundo o também escritor Edgar Poe, a ciência não averiguou ainda se a loucura é ou não a mais sublime das inteligências. [rs]
    Sua narrativa é primorosa.Parabéns!!!
    Um beijo

    ResponderExcluir
  5. Olá Djabal,

    Narrativa que expressa a lembrança de personagens familiares quase míticos. Um tanto surreais. Mas, "de perto ninguém é normal". Só que alguns deixam marcas indeléveis. Muito bom compartilhar isso contigo. Teu texto é cativante.

    bjs.

    ResponderExcluir
  6. Djabal,

    Coincidências e coincidências. Nossos recentes textos “contábeis” e nossos tios mineiros. Eu também o tive. Também contador de causos das Minas Gerais, fumante de cigarros de palha e fumo de rolo.
    Seu texto não resgata só um personagem, mas, também, um modo de vida, uma mineirice que se espalha por esse Brasil. E, ainda, nos mostra que a insanidade é apenas um detalhe ou maneira de ver a vida.
    “O homem é uma criança com medo de castigo venera o suborno e morre com o taco de golfe nas mãos”. ”Tá aqui o dinheiro, ó. Vai lá, ninguém tá vendo”.
    E eu digo: escreve mais!

    Luiz Ramos

    ResponderExcluir
  7. A narrativa é tão envolvente e o tio Dingo tão atraente que a vontade é que estivesse aqui, que o conhecêssemos, que fosse íntimo: para béns!
    Obrigada pelos comentários sensíveis no Roxo.
    Abraços,
    Tânia

    ResponderExcluir
  8. Se engana o que observa a narrativa simples mas intrincada e ilucidadora, instigante e à mostrar parte de uma realidade na qual todos estamos sujeitos à passar ou conhecer!
    Meu amigo parabeniaza-lo parace cair no lugar comum mas ainda assim o faço e agradeço pela visita.
    Abraço grande.

    ResponderExcluir
  9. Grande figura a do tio Dingo. O texto, ótimo.

    ResponderExcluir
  10. I was surprised to read that text.
    What perfection! Moreover, the text is one of the best I ever read, by linearity and sequence of contents, is fantastic delicacy in dealing with the issues addressed here.
    Congratulations writer
    Kisses

    ResponderExcluir
  11. O multiplicar de viagens voluntárias e induzidas sobressaem sempre dos teus escritos. Supra-sumo. Grata também caro escritor Erwim pelo "Dança Ritual Urbana e Outros Movimentos". Folha à folha!
    Abraço

    ResponderExcluir
  12. Tão bom e edificante ter alguém assim para lembrar, para seguir..... eu tbm tenho os meus ausentes queridos.

    E olha, não tem nada pior do que família brigandi por posses.... triste.

    Deixa te dizer que não me segurei e fiz um post com seu comment.
    bjão

    ResponderExcluir