sábado, 17 de julho de 2010

Moar




 “Esta noite vou estar com você
  quando o sol morrer
e  A-M-R-O não será mais escrito assim... “
Bret Easton Ellis

 Ainda bem que não são muitos os anagramas de “amor”. Senão, pelo visto, ficaríamos horas e horas falando de suas aventuras.  A não ser que seja possível acrescentar letras. Amora também vale? É claro que vale, não?

O café onde estávamos promoveu um concurso para premiar o autor de uma frase usando o nome do local. Daquelas que fazem rimas tolas ou um jogo infantil de palavras. A premiação corria solta. Um casal de rapazes com uma criança de colo recebia o prêmio. Trocavam olhares amorosos. Um deles esboçava o agradecimento de modo quase inaudível.
São cento e vinte possibilidades; se acrescentarmos uma letra, serão setecentas e vinte. Quem começou o assunto foi você – ela retrucou. Não tenho necessidade de me exibir, de mostrar nada para ninguém. Aliás, lembre-se de que estou contando meus meses, porque você me telefonou. Pediu.
Pois sim, mas eu não queria estar sentado, com a perna engessada e com uma luneta, olhando para as cenas do prédio em frente, tentando descobrir o que você está fazendo.
E eu, de vez em quando, sinto falta de um rosto de pele escanhoada, azulado pela lembrança da barba cortada, de queixo quadrado, de nariz romano, cabelos pretos e ombros largos. O último deles me apanhou vestida com uma bata chinesa, vermelha, e me conduziu pela cidade. Entramos em alta velocidade em uma alça de acesso à Avenida Vereador Zé da Farmácia e nos deparamos com um auto em sentido contrário. Ele freou violentamente. Passado o susto, gesticulou furioso, xingou, e indicou a placa de contramão, pedindo que o motorista se afastasse de ré, dando passagem. O automóvel continuou imóvel. Dele, saíram dois homens, com muita carne, vestidos com calças jeans, camisetas de alças, braços e ombros à mostra. Vieram em nossa direção, abaixaram na altura da janela e disseram: “Caiam fora, dê você a porra da ré, e suma da nossa frente. Tá sabendo, mermão?”. “Você está errado, cara. É contramão.” “Chama a polícia. E bem rápido, enquanto você pode falar  e a gostosa aí está inteira”, o outro rosnou. Ele deu na partida. Nesse momento, aconteceu algo inimaginável: eles nos deram as costas. Imediatamente, o meu namorado bateu com a mão  no porta-luvas, tirou de lá uma Glock automática e ficou esperando que eles entrassem. Assim que se acomodaram, ele saiu.  Aproximou-se do outro carro, disparou três vezes, uma em cada vidro lateral e a última no de trás, vociferando: “Quero saber quem é que vai se afastar: eu ou vocês?”. E engatilhou a arma para disparar outra vez. “Saiam do carro, agora!” As veias do pescoço saltadas, as pernas fincadas no chão,  suas mãos agarrando a arma, fazendo mira. “Não precisa disso, mermão. A gente sai”, disse o carona. “Sai o cacete”, disse o outro, “a gente dá a ré e vaza. Falou?” O silêncio e a tensão da cena foram quebrados pelos tiros que ele deu no vidro dianteiro, um em cada lado e outro bem no centro. Os ocupantes não esperaram mais nada e deram o fora, batendo com as laterais na mureta de proteção, até desaparecer completamente. Ele voou  para o carro, engatou a marcha e correu desabalado até encontrar um fluxo de trânsito para se esconder. Em seguida, retomou a marcha normal até chegar em casa.  Jantamos alguma comida chinesa. Delivery. Nossa noite foi maravilhosa.
A nossa é uma história de desencontros. Lembra quando me perdi no Aeroporto de Los Angeles procurando você?  Você já tinha embarcado.  Você está cada vez mais distante. Aqueles milhares de quilômetros entre nós continuam aumentando. Adolescente e adulta, vivendo a sua vida e agarrando todas as suas chances. Você não interpreta seus instintos. Apenas os vive. (Digo isso querendo o contrário.) Eu também vivo a minha vida, sem tantas variações, mas cuidando de ser feliz, considerando o que há para ser considerado. Por exemplo, as coisas celestes, cuja consideração está reservada apenas aos homens.
No alarms and no surprises
No alarms and no surprises
No alarms and no surprises
Silent silence
Vou até o balcão e pergunto o nome da banda que está cantando a música de fundo. Radiohead. Em todo o lugar não há mais nenhum casal como o nosso. Flagro alguns beijos. Há apenas uma mulher sozinha, com fones de ouvido, longas pernas descobertas pelo vestido bem curto, sentada em uma banqueta alta. Simula uma pose sexy, não conseguindo disfarçar o enfado. Outras duplas de homens ou de mulheres. Pais com filhos ou filhas. Lá adiante, uma mesa farta de executivos de ambos os sexos, rostos brilhantes, limpos, descolados, olhos vidrados, muitos óculos com lentes escuras. Cada um com seu escudo em forma de computador, a silhueta opaca de uma fruta. Estão conversando sobre o psicopata chinês que ataca os berçários e mata as crianças. Um deles menciona algo como liquidar a próxima geração.
Vamos embora?
Você não quer emendar? Podíamos dar uma volta.
É?... Não.
Então vou conhecer o iFly.  É um tubo vertical de vento, a duzentos quilômetros por hora. Você paga uma taxa, recebe as instruções e um uniforme e fica planando, subindo ou descendo, dando piruetas, uma simulação do salto de para-quedas. É uma delícia. Meus amigos me falaram que as instalações são novíssimas, o lugar é seguro. Dá para reunir até seis pessoas.
Se você quiser saltar de para-quedas, eu topo. Subir de avião, olhar, sentir o frio na barriga e saltar. Considerar. Vamos?
Saímos. A avenida está atulhada, em obras, o leito desviado em várias curvas para dar vazão ao imenso fluxo dos veículos. As grandes estruturas antigas estão sendo demolidas para dar lugar aos edifícios de vidros de cristal, que distorcem as imagens que refletem. Um formigueiro humano de capacetes amarelos e verdes e azuis caminha por entre as vigas de metal. Alguns manejam as escavadeiras, abrindo espaços para novos túneis. Precisamos pular de bloco em bloco, na calçada, para caminhar. Encontramos um templo antigo, que ainda resguarda algumas colunas e carrancas femininas suportando as vigas lá de cima. E de lá nos olham com as bocas e olhos bem abertos. Parecem horrorizadas.  O prédio da Igreja foi vendido para uma casa de shows. Por um tempo foi o maior point da cidade, até que foi fechada após o homicídio de um traficante, no auge de uma balada. O público se assustou e sumiu. Foi vendido novamente. Hoje, é a festa de inauguração de um centro comercial. A fachada foi restaurada para remeter à dignidade antiga. Manter a pose. Ele oferecerá a maior variedade de artigos com marcas famosas, acessíveis apenas para uns poucos privilegiados. Caminhamos até o estacionamento, cada um entrega seu bilhete para o manobrista. Um ambulante passa em frente ao estacionamento, nos vê e oferece, discreto:
Tenho um estoque de camisinhas retardantes. O doutor vai querer?








16 comentários:

  1. O que pode surgir a partir de um anagrama...Situações, as mais inusitadas, sempre instigantes, e com final surpreendente. Elementos da boa escrita."A fachada foi restaurada para remeter à dignidade antiga." Um incentivo amplamente sutil.
    Parabéns. Abraço

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  2. Everything is possible.
    The desire for silence and alarming!
    There are no spelling sufficient to express love.
    Teus textos são sempre uma surpresa!
    Beijos

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    1. Vamos a tradução do queescrevi em inglês:

      Tudo é possível.
      O desejo de silêncio e alarmante!
      Não há ortografia suficiente para expressar o amor.

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  3. Djabal, "a lot of alarms and a lot of surprises".
    E uma única possibilidade: a de "sempre" ficar boquiaberta, encantada com a sua imaginação.
    Já estou com meu "kindle" a postos, aguardando novas "histórias impossíveis"...de não surpreender seus leitores.[rs]

    Um beijo, escritor, e mais um "bravooooo".

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  4. Amor, Omar, Roma, Ramo, Mora. Não importa, quando todos são motivos para bons textos.
    Você teria um estoque de palavras retardantes?
    Abraços
    Luiz Ramos

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  5. Djabal
    Cada vez que tu pegares num anagrama... o que vai acontecer? As mil e uma noite...só pode! Xerazade ao pé de ti... era um grãozito de areia...
    Obrigada pela tua Amizade!
    Graça

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  6. De um anagrama vc monta uma história super cativante......

    eu gosto muito!

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  7. Oi!
    Vim te convidar para participar do blog Mínimo Ajuste e do blog Contos Marginais. Acho que já andei te rondando feito um coelho, no caso, coelha, atrás de cenouras, mas é que o seu texto é super bacana, você é um escritor e tudo o mais, então, seria bacana se outros blogueiros pudessem te ler. O Mínimo é para qualquer tipo de post www.minimoajuste.blogspot.com e o Contos é bem novinho, um bebê para contos, ora para que mais seria? :) http://contosmarginais-ged.blogspot.com/
    Faz uma visitinha a eles, Djabal. Se te interessar por algum, escreve para o bipedefalante@gmail.com
    Eu ficaria muito contente se você participasse. Pode ser com textos antigos.
    Bj.
    BF

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  8. Do anagrama resultou uma história, muito bacana a leitura que fiz.

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  9. DJABAL: de como um anagrama nos pode fazer viajar nas asas do AMOR(ROMA). O amor mora aqui, ao lado de nossos corações, prontinho, com palavras como as suas, a desabrochar ,neste mundo de espinhos ardilosos!
    BEIJO DE
    Mª ELISA

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  10. Djabal, Querido Amigo
    Fiquei sensibilizada com a tua dedicatória tão ternurenta e... emocionada!
    Não sei se conheces a música deste fado...que é tão lindo... Vale a pena juntar os dois: letra e música!
    Eu penso,Djabal, que o Atlântico...nos une mais, do que nos separa: Está aqui o exemplo neste gesto tão lindo de Amizade!
    Um beijo muito carinhoso
    Graça

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  11. Djabal, amigo, aceite o convite da bípede falante, por favor: seus textos precisam ser divulgados!
    Parabéns! Abraços.

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  12. O amor e seus desdobramentos, as suas diferenças, as suas estórias mais verdadeiramente inverossímeis. Um flagrante no caos urbano, as possibilidades. Interessante a linguagem como anatomia desse caos.
    Grande abraço, e já pesquisei sobre o William Byrd, e adorei.

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  13. Querido, obrigada por estreiar meus comentários da nova fase. Agora me diga! Vc acorda 5h da manhã pra escrever? É por isso que é tão onírico? Pega matéria do sono e do dicionário?rsrsrsrs
    Beijinhos

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  14. E o senhor acha que o beluária veio de onde? rsrsrs. Agora, eu disse DICIONÁRIO e não enciclopédia! Se entregou! rs. Já conversamos sobre isso, não? Sobre caçar idéias em enciclopédias e dicionários... É lindo!
    Não acordo cedo, apenas não durmo...

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  15. Djabal,

    a sua escrita explora múltiplas dinâmicas dos dramas de que se faz a história e têm o mérito, que é muito grande, sobretudo em comparação com escritores de estórias com história dentro, de acrescentarem "verdadeiras" estórias à história.
    Mais uma vez, admirável.
    Um grande abraço.

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