segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O Chaveiro





Faixa de couro debruada nas extremidades, preta, aberta e dividida em três abas. Pelo anverso e no centro, uma barra de metal cravada como cabeçalho dotado de encaixes para receber cada um dos olhais dos seis ganchos ou anzóis. A curvatura deles forma uma garganta de abertura estreita, cuja ponta, não tendo barbela, mas a minúscula glande, elegantemente se volta para fora, dispondo-se como amistosa clave para pescar, penetrando o orifício de cada chave que agora por diante lhe pertence. Já existiram chaves que só abriam por fora, chamadas “lacônicas”, talvez originadas pelo desastre ocasionado pela última porta que esqueceram aberta em Constantinopla, a qual deu acesso às tropas do sultão dominador; e outras que só abriam por dentro, restando delas apenas a mítica imagem do cavalo de Tróia com seus guerreiros aguerridos, embutidos e trancados. Elas têm diversos tamanhos e variados formatos, desde a pequena que abre a mala, ou o cadeado, até a grande, a pantográfica e a eletrônica. Também foi sinônimo de bens imóveis e da fidelidade da mulher. Esta deveria trazer consigo os utensílios e entregá-los quando solicitada, e se entregasse, por desgraça, algum falso, seria repudiada com o mesmo tratamento reservado às putas. Chaves importantes eram guardadas no pescoço, enfiadas em correntes à vista de todos. Hoje, no centro de uma cidade, distante alguns quilômetros de Budapeste, existe um chaveiro com a forma de gradil, afixado no canto entre duas paredes. Nas suas barras, são guardadas chaves perdidas por toda a cidade. O segredo do qual a chave é a cifra e ardil se iniciou com duas argolas, uma em cada painel da porta, e o prego que as selava. Estes vieram limpos do latim clavus, transformando-se com o passar do tempo, tornando-se únicos, a ponto de apenas o proprietário descerrar o segredo. A cabeça se achatou e se arredondou para acomodar o polegar, a ponta recebeu um dente e um corte lateral. Depois o dente se espalhou pela haste e dela cresceram serrilhados. Multiplicando seu mistério. Um inventor inglês, nos tempos do rei George terceiro, filho mais novo dentre cinco, frequentou a escola até os dezesseis anos, aleijou-se em circunstâncias não esclarecidas; passou a estudar em casa, não podia mais trabalhar na fazenda do pai, escolheu mecânica e carpintaria. Colocou a mente para observar e conseguiu produzir o melhor cadeado da época. Vendeu milhares de exemplares e se tornou um homem rico. Oferecia um prêmio de duzentos guinéus àquele que conseguisse violar o segredo do seu invento: a tranca de Bramah, que servia como escudo contra os ladrões, na porta de sua loja, em Londres. Depois de trinta e cinco anos, um gaiato finalmente conseguiu a façanha. Após alguma controvérsia, tanto pelo tempo utilizado quanto pelo método, a promessa foi paga. Anos mais tarde, contraiu um resfriado, transformado em pneumonia, e sua alma inventiva o abandonou. Não sem antes ter inventado a bacia sanitária com descarga hídrica. Época em que outra família emigrada das montanhas de Gales para a planície da republicana americana, em Connecticut, e conhecedora do funcionamento e andamento das coisas, enriqueceu-se concebendo artefatos agrícolas, debulhadoras e fechaduras. Seu filho mais ilustre, Linus Jr., interessou-se pela pintura, mas com a morte do pai tomou para si a administração dos negócios. Após estudar engenharia, apresentou o seu conjunto inexpugnável. O prêmio concedido para o improvável violador era de três mil dólares, à época uma soma respeitável. O seu invento correu o mundo e se metamorfoseou em fábricas (Yale), riqueza e poder. Entretanto, com uma mensagem é possível ir se desvendando segredos, em um quarto, ou biblioteca, um banco, da igreja, da gaveta; ou abrir uma gaiola, exibir sem mostrar a fraqueza humana. Como símbolos de segurança, ofereciam acesso exclusivo àqueles que a penetravam, e suavemente conseguissem uniformizar pelo tamanho ou altura todos os tambores e molas embutidos na tranca após um tranqüilo clique. Outras chaves eram feitas de papel e ficavam à mostra nas paredes. Algumas elaboradas apenas como desenhos ou palavras. Agora, juntas, estão no chaveiro. Ele contém seis chaves e nenhuma delas é mixa ou mestra. A dobra lateral direita se fecha sobre o molho acolhido no metal. Elas estão deitadas em posição paralela, com a face dentada voltada para as costas da outra, afastadas milimetricamente para não se comunicarem entre si. No seu dorso, há uma presilha com uma reentrância. Aguarda a outra, à esquerda. Fechando o conjunto, exibindo outra presilha com a forma pontiaguda com um cone esférico na extremidade, acomodando-se sobre a ranhura, que com uma pressão estala e se fecha. O chaveiro tem o tamanho de um terço da tira, exibindo no exterior um brasão dourado sobre o couro, com um desenho que não se consegue decifrar. O conjunto não faz o barulho característico das chaves se batendo e fica guardado no bolso. Hoje, o conjunto inteiro – exceto uma única chave – é guardado em uma gaveta, que contém, além do chaveiro, a Bíblia, algum dinheiro, jóias, folhas de contrato, bilhetes, inseticida, pomada para dores lombares, atlas históricos e diários. Doravante, ele perdeu o hábito de frequentar lugares que necessitam de chaves para se obter acesso. Nada com a corrente, não luta mais contra ela. Esqueceu como se faz para abrir as bandeiras e portas: apenas entra e sai dos lugares sem segredos. Avulsa, no bolso, fica pendurada no cadeado após ter aberto o viveiro com os tangarás. Deixou a portinhola aberta de par em par e observou a saída. De um em um, como um ritual, colocando a cabeça, vestida com a touca vermelho laranja, para fora, compondo a plumagem azul clara e ajustando as penas compridas da cauda para o vôo. A cerimônia da dança, dos machos se colocando diante das fêmeas, exibindo-se um de cada vez, ao cabo da qual cada um vai para o fim da fila, aguardando sua outra vez, até que a fêmea se decida, não mais será representada para outras testemunhas, nem o som intrincado da voz e do bater das asas não mais despertará a atenção pela originalidade. Ele segue o seu caminho de monótonas paredes. Resta a última chave, e toda vez que ele põe a mão para apanhá-la ela escapa, adiante, mais adiante.

“abre-se o portão gradeado do jardim
com a docilidade da página
que uma freqüente devoção interroga
e lá dentro os olhares
não necessitam fixar-se nos objetos.”

14 comentários:

  1. É muito bom visitar o teu blog.
    Gosto do que encontro.
    Desejo-teu uma semana produtiva.
    bjs

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  2. Djabal

    Adoro quando tem texto novo...é so vir aqui para se deliciar com boa literatura. Se o assunto é chaves temos mais um mistério a destrancar. Mesmo quando elas já não são mais necessárias.
    bjs.

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  3. Djabal,

    é extraordinário o seu labor na atenção dada ao pormenor, todos são relevantes, marcando o tempo, sem pressa nem ansiedade de chegar a um fim, que não tem enredo, e suscitando enquadramentos inusitados e impressivos, pelas imagens, pelas próprias palavras redescobertas, enfim, pela carga de sapiência de certas alusões e considerações, como por exemplo «é guardado em uma gaveta, que contém, além do chaveiro, a Bíblia, algum dinheiro, jóias, folhas de contrato, bilhetes, inseticida, pomada para dores lombares, atlas históricos e diários. Doravante, ele perdeu o hábito de frequentar lugares que necessitam de chaves para se obter acesso. Nada com a corrente, não luta mais contra ela. Esqueceu como se faz para abrir as bandeiras e portas: apenas entra e sai dos lugares sem segredos.».
    Fez-me pensar na sabedoria que é necessária para não querer nem fazer nada para abrir o que está fechado por alguma chave, no que pode haver de cilada ou engodo, ou intencionalidade, ou armadilha, em tais cuidados. A sabedoria, talvez, de quem conviveu profundamente com os fenómenos humanos da manipulação.
    Em cada texto seu, de surpreendente imaginação, grande noção das proporções, criatividade e cultura.
    Obrigado pela partilha.
    Grande abraço.

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  4. Agradeço ao seu comentário, e agradeço por vir conhecer tão lindo blog.

    bjs.

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  5. Djabal,
    A chave é sempre mágica e misteriosa.
    A chave é simples e misteriosa, pois ela abre uma simples porta ou nos mostra grandes mistérios, sejam eles religiosos, filosóficos, da Natureza, magnéticos, mágicos, práticos ou científicos.
    Veja, por exemplo, a obra de Eliphas Levi, em a Chave dos Grandes Mistérios.
    Luiz Ramos
    PS. Por sua causa, eu estou começando a pesquisar muito!!!

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Djabal, todas as vezes que leio seus contos meus neurônios (tenho?) rs dão tilti. Lendo mais essa obra maravilhosa, "O Chaveiro", viajei...como sempre.
    Voltei ao filme Matrix, quando Neo (Keanu Reeves), sua amada Trinity (Carrie-Anne Moss) e Morfeu (Laurence Fishburne) têm a empreitada de salvar a humanidade do massacre que 250.000 máquinas estão prestes a executar no planeta Zion.
    Para que eles sejam bem-sucedidos nesta tarefa, eles terão de encontrar o “chaveiro” que fornecerá o instrumento de entrada na Matrix. Que responsabilidade tem esse "chaveiro! !!!
    Que papel importante desempenham os "Chaveiros"!!! Não só os que “guardam” chaves, como o que vc minuciosamente (d+) descreve, mas os que "moldam chaves" que vão abrir “portas” tão "herméticas".
    Por outro lado, não posso deixar de associar a figura de um "Chaveiro” a um verdadeiro amigo. Àquele que somente com um "clic" consegue abrir nossas portas e gavetas e passe a ser cúmplice dos nossos segredos.

    Meus parabéns e cumpro o ritual: mais uma gargalhada ...e das boas. Rs

    Um beijo

    E.T. Lindíssima a foto
    Desculpe, republiquei porque "engoli" uma frase.rs

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  8. Manuseia a palavra encontrada com a destreza que faz girar uma chave na fechadura. Nada tem essa de enferrujada. Viaja pelo tempo do homens, corre nas história sensíveis...faz-me ver, lugares com cheiros e luzes..és um escritor de sons, imagens e sentidos percebidos.Não digo nada que já não tenha em melhores palavras ouvido. Enquanto você consegue brincar com fatos e coisas do tempo tão conhecidas e tão mal percebidas.
    Prazer em conhecer e levo a chave para poder voltar e novamente te ler.

    abraços,
    Selena.

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  9. Todos temos algo que queremos esconder,fechar e ficar só para si,na mente de cada um há um segredo,uma exclusividade.
    Bom texto,bom blog,por isso fiquei.
    Um abraço
    Gemária Sampaio

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  10. Com ou sem chave
    saímos ou entramos e
    às vezes no outro lado encontramos
    cheiro de flores, um jardim, um pomar provedor de sensações agradáveis. Mas assim como encontramos o agradável podemos encontrar também o desagradável. Importa sabermos como vamos lidar com esses. Nem sempre fugir resolve.
    A questão é que registramos, sabemos e daí que as questões precisam ser resolvidas, redimensionadas la dentro. Dentro da alma.
    Texto meticuloso, detalista e complexo. Tens esse talento da profundidade mesmo em frases, parágrafos curtos que exigem atenção para conhecer a associação entre um e o outro parágrafo ou frase. Mas elas estão ali. Metenimicamente mais que metafórifas.
    Bom final de semana, beijos

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  11. Curioso este teu texto! Mesmo sem chave, fui entrando sem cerimónias e vasculhando tudo. Achei que é um sítio diferente, algo misterioso e que, num estalar de dedos, nova magia vai aparecer. Será sempre surpreendente vir aqui.
    Um óptimo mês de Setembro.Abraços Graça

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  12. Meu mestre Djabal fazia tempo... mas na minha imaginação adentrei esse belo texto. E na minha simplicidade recebi de ti uma chave mágica. Que permitiu-me ler esse belo têxto como todos que você meu amigo aqui posta.Um abraço desse gachinho pois assim me chamas.

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  13. Um segredo revelador...isso para dizer o mínimo do que apreendi com "o chaveiro" e suas portas treliças.
    Beijos

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  14. estou de volta a ativa ;)
    só um comentário bobo talvez, o chaveiro do quadro lembra um pouco você na fisionomia! rs


    abs

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