sexta-feira, 3 de julho de 2009

Dança Ritual Urbana, III








Wabi Sabi, terceiro movimento

Ezê descobriu na dança a maneira mais sutil e eficiente para compartilhar sentimentos. O gesto trai menos que a palavra: vago, mas definitivo, aberto para a interpretação de que você precisar. Após assistir ao espetáculo, saía flutuando, esperando encontrar os seus amores e lhes contar.
Acabara de ver Susana Yamauchi no teatro da Dança e saiu dali, ainda sobre as nuvens, andando, pela avenida São Luís:

“Ao nascer, ele entra no reino dos sonhos apenas para despertar para a realidade na morte. Tempera o próprio brilho de modo a se fundir na obscuridade alheia. Ele “reluta como quem cruza um riacho no inverno; hesita como quem teme a vizinhança; é respeitoso como um convidado; trêmulo como gelo prestes a derreter; despretensioso como um pedaço de madeira por entalhar; vazio como um vale; disforme como águas revoltas”. Para ele, as três jóias da vida são piedade, parcimônia e modéstia. Kakuzo OKakura”

(...os tempos que correm ensinam a mirar o próximo. Jamais temos tempo ou disposição para mirar a nós próprios. Perdemos a capacidade de nos extasiarmos com os nossos sentidos. Capacidade despertada em mim ao ver centenas de pétalas vermelhas derrubadas no palco, caídas da cerejeira da minha mente. A imagem do outono veio súbita. Surgiu a chegada do inverno através da mudança da luz, tornando o vermelho em prata, algo imperceptível, mas revelador. Lembrei de hoje pela manhã, ao sair de casa, daquela árvore tomada pelo mesmo tom de vermelho. A árvore me acudiu como amiga, explicando o wabi-sabi. Mas essas reminiscências não estavam solitárias. Incluiu as mãos e os gestos da artista e a complexa interação da permanência e da impermanência tornando-a dramática pela súbita transformação de um corpo em dois. Sobre os ombros, as máscaras ocupando um só corpo, todo feito de frente, sem as costas. Um de face alva, outro de face rubra, nos confundindo, fazendo-nos esquecer o eu, e se comportavam de forma a indagar em qual rosto deveríamos nos reconhecer. Talvez fossem a mesma pessoa, segundo a tradição do Noh. O monge de face bárbara indicando um roteiro para a imóvel, branca face do ser.
Do palco, esvaía uma névoa, nos convidando para um mergulho naquela água em partículas, e mergulhados observaríamos. Os elementos naturais do vento feito gestos me estremeciam, como se eu estivesse sendo golpeado. O frio, a caçada aos animais, o rio, todos mostrados com brevidade e leveza, entremeados com a cerimônia do chá. O rico quimono branco ritual, deixando à mostra as mangas, davam um tom erótico ao movimento, os cabelos que jamais foram cortados da cortesã, enfeixados por uma faixa vermelha, sinais que viajaram através de mil anos e me transportaram ao período Heian, ao tempo em que se respondia uma poesia com outra completando e ampliando o seu significado, ao tempo em que não se olhava nos olhos de ninguém do sexo oposto, e as mulheres estavam protegidas pelos pequenos biombos. O suave movimento das mãos mostrava como se raspava a pedra de chá. Tudo preparando o espírito, para a culminância do ato de amor, praticado com ductilidade, centenas de vezes, com uma harmonia e um senso do frágil que eu pensava perdida para sempre. Relegada ao código genético do Dodô, e ela ressurgiu no palco, com um entrelaçar de mãos que jamais esquecerei. Um traje negro poderia ser o fim trágico daquela história, mas isso não importa. Eu passeei por todas as sensações inexploradas, percebi apenas esquecidas. Elas me revelaram. Para se entrar no recinto onde o chá é preparado, toma-se um caminho levemente tortuoso, preparando o espírito. A roupa flamejante de preto e vermelho, me alertou, durante a cerimônia, para que eu me preparasse para ver. A impermanência que torna tudo mais belo. Fugidio. Sei. Não consegui compreender tudo, mas sei também que consegui saber mais de mim do que em muitas e muitas leituras. Onde o nada me tocou, marcou.).

A avenida está deserta. Ando com um pé na calçada, outro no leito, para meditar.

Nono dia do mês de Av, finale

David caminhava pela Avenida São Luis, próximo ao teatro. Passou por um bar e ouviu:

Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir prá não chorar
Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar...

Chegou ao máximo do desprezo por si mesmo. Acarinhava a arma a todo instante, como se estivesse testando a possibilidade dela também o abandonar. Queria encontrar algum caminhante solitário. Precisava dar fim àquele sofrimento. Sempre achou o samba um tédio, aquela poesia daquela música, chamou sua atenção agarrando seu casaco como se tivesse braços.

7 comentários:

  1. No principio, Ezequiel, o ator do comércio. Depois, Ezê, o judeu ateu. David, o jornalista assaltado e sem amigos, armado de revolver.
    Ezê, o judeu ateu, amante de dança.
    David permanece fechado e armado. "Ao nascer, ele entrou no reino dos sonhos apenas para despertar para a realidade da morte"... a se fundir na obscuridade alheia".
    A beleza nas coisas imperfeitas e incompletas nos leva a caminhar com um pé na calçada e outro na pista.
    Mas, seremos admitidos na Cerimônia do Chá?
    Acompanho a preparação para a Cerimônia do Chá, ao mesmo tempo que limpo o jardim na expectativa de saber se eu assimilei a essência do Wabi Sabi.
    Luiz Ramos

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  2. A "mudrá"(linguagem gestual),na Yôga
    é um sinalizador das nossas emoções. A linguagem gestual é tão instigante como seus textos.
    Seu terceiro movimento é "belo", "perfeito" e "completo". Eu diria... uma nova adaptação da expressão japonesa "Wabi Sabi".rsrs

    Um beijo, amigo talentoso.

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  3. Retificando: a "mudrá,(linguagem gestual) na Yôga, é tão instigante quanto seus textos

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  4. Parabéns, Djabal, você cuida como ninguém das palavras "que caem da cerejeira de sua mente". É mesmo tudo o que o escritor pode fazer, enquanto a vida se esvai como água num ralo de banheira...
    Pra você, um trecho comovente doLobo Antunes, no Segundo livro de crônicas: "A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão. Vai a gente muito devagar da sala à cozinha, com aquela louça toda de dias, de semanas, de meses em equilíbrio uns sobre os outros, a tilitarem e a tremerem, mais dúzias de garfos e facas escorregando lá em cima, no meio dos restos de comida e dos restos de infância... os dias, as semanas, os meses deslizam uns a seguir aos outros, devagar primeiro, depressa depois, tudo junto por fim, e eis a vida em cacos no linóleo".
    Bom domingo!

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  5. Djabal
    Às vezes as coisas, fatos, fenômenos são tão simples que não acreditamos na "verdade", veracidade, pureza. Será que é pelo fato de "o impefeito" ser tomado sempre a partir de idéias de acabamento, de valor monetário?
    Estou divagando, mas adentro profundamente na questões em pauta.
    Tomo os textos mais recentes, esse o terceiro faz com que possamos voltar o olhar para outras direções, a escuta para outros sons.
    Uma proeza do escritor, que se atreve, planar e pairar, ficar suspenso, (como já fiz a analogia em outro texto) para ter tempo de abstrair, compreender, entender, colocar-se no lugar, na pele de quem vê protagonizando as cenas que descreves em teus textos. Então;

    Pairar, no ar nem sempre ao pé da letra/
    Quizá, pode-se chegar ao topo dessa montanha incandescente/
    Onde a riqueza do detalhe é a própria natureza em criação/

    Pairar, suspenso por penas que ao traçarem/
    idéia antes contaminadas/
    pela imensidão, antes visada/
    num outro plano, de outros ângulos, em outros momentos.
    Mirar no vise-versa e versar sobre o sentir.

    Parabéns pelo texto, afinal, nem só de coisas e fatos desagradáveis à evolução (dança, ritmo, coreografia) levam para o "mais belo", o "mais puro", genuino do que o ser que sente deseja.
    Beijos, y hasta breve

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  6. Confesso que sempre passo aqui para ler seus textos e aprender. Amo demais literatura. E amo escrever.
    É sempre bom ler coisas diferentes, ver estilos diferentes de se escrever e se expressar diante da vida. Cada um tem seu modo e cada um vai deixando uma marca em quem lê.
    Pra terminar, um trecho do amado Caio F. Abreu!
    Acredito que você também goste das obras dele, né? =)
    “E só vamos em frente porque começam a acontecer urgências. Enquanto a manhã dispara e o telefone toca e a campainha soa e as crianças vão e precisam sair para a escola e o relógio de ponto ou qualquer coisa assim – incluindo os outros, sobretudo os outros – não esperam. Nada espera, ninguém.”

    Beijãoooooo!!!!!

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  7. Confesso que me agarrei
    logo no primeiro parágrafo,
    ao apreciar o trecho:

    "o gesto trai menos que a palavra"

    Inspirador...
    Um abraço,
    Renata
    *doce de lira

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