Deserto de Gobi, Cantão, Nápoles, Santos, São Paulo, Edifício Itália, terraço, tarde da noite, estrelas, luzes, azul-marinho acobertando os sonhos, o piscar de umas e outras, indiferente. Tão indiferente quanto ele. Amanhece com névoa, anunciando um dia de sol. Ele, do seu escritório, comanda os contêineres, circulantes pelo mundo, despejando também aqui o seu conteúdo, aumentando o paraíso das coisas. A cidade espanta a névoa e se torna nítida e cinzenta. Ao olhar para baixo, vê um rio.
O rio dá cor e aquece o tempo, traz o sal do suor à flor da pele, e tudo se contamina. Os mais variados tipos caminham, desde o início, um fluxo buscando uma compra perfeita, um presente, um enfeite, uma lembrança ou a paga de algo que ainda não aconteceu. Na beira das barrancas ficam os mascates, os ambulantes, os marreteiros, mais acima os lojistas. Uma flora e uma fauna, buscando no alarido o seu espaço. Sonho os mesmos sonhos daquela mulher negra com peruca ruiva, óculos com hastes vermelhas e lentes espelhadas; do rapaz com seu panamá de ráfia, espetado por uma pena branca; da baiana e sua saia rodada, bata rendada, cabelos embrulhados no turbante; do esguio abissim rastafári e suas roupas largas; do índio boliviano com seu chapéu-coco e poncho multicolorido; do mineiro de chapéu de feltro cinza, terno amarelo gema, e seu guarda-chuva engessado no braço esquerdo colado ao corpo. A sirene da polícia ou a lâmpada giratória sobre o capô alardeia um corre-corre. Uns daqui, outros dali, bancadas de madeira retrátil são escondidas, as toalhas que as cobriam agora fechadas sobre as pontas, são partes dos trajes de outras gotas do rio. Os guarda-sóis são palmeiras raquíticas, oferecendo sombras bamboleantes para as frutas. “Antes de cantar, Ângela Maria comeu desta melancia.”
Cantando estridente em um dos braços do rio, o fliperama e o menino. Com roupa de couro agarrada ao meu corpo frágil, danço alucinado sobre o piso do quadrilátero colorido e pulsante, coloco meus pés sobre os pontos luminosos que se acendem, em uma torrente que mal posso acompanhar. Não toco nas barras de segurança, e aquela menina, pálida, assexuada, observa com gestos de aprovação e uma destemperada alegria. Desmanchado em suores, o cabelo grudado na testa, o coração empurrando o peito e a pulsando na garganta, tiro a jaqueta, coloco outra moeda, e inicio outra rodada, mais rápida, em busca do prêmio inatingível.
O mesmo prêmio da repórter que se aproxima do casal deitado sob o pórtico da União dos Bancos. Ela amamenta um dos filhos. Teve doze ao todo. Perdeu quatro. Seis a justiça tomou. Estes dois são dele, apontando para o homem ao lado. “A gente sofre muito, até cospem nele. Ninguém olha pra gente. Amamento até secar o leite. A comida é pouca, mas o leite é farto.” “Eu estou com ela faz dois anos. Ela fala por nós, não tenho jeito para isso. Não sei falar, aprendi a ‘bater’ carteira, jogar para o parceiro contar o dinheiro mais adiante, e sair na carreira; das coisas que dão sopa por aí, pego, troco, me viro para arranjar alguma comida. Cansei da competição. Até na cadeia ela existe. Quando sobra alguma coisa, arranjo umas pedras pra nós esquecermos. Durante o dia, escondo minhas coisas, e ela fica aqui na porta, as pessoas têm dó, e ‘eles sempre arranjam alguma grana’.”
Com a grana do dia no bolso, o asiático corpulento, carregador de mercadorias, termina sua jornada na hora do almoço, toma sua sopa com legumes, pimenta e vinagre, pelando de quente, e não move um músculo. Não dou a mínima. Sofri de paralisia no rosto, o médico chamou de síndrome de Möebius, e por isso ninguém sabe o que dizer de mim, minha face não tem nenhuma expressão. O rosto é sempre igual. Divirto-me com uma vara de bambu, medindo quase dois metros, toda lixada e cheia de areia, vedada e pintada com tinta imitando alumínio. Fico aqui na esquina e faço dele um poste ereto, seguro pelas minhas mãos, firme. Coloco um tripé com um aviso de cartolina junto a mim. Hoje o pessoal da tevê está fazendo entrevistas. As mulheres passam, leem o cartaz (Dança do Poste) e, ato contínuo, fazem alguns movimentos tímidos. Tentam adivinhar pelo meu rosto o que estou pensando, e não veem nada. A clareira se forma. A segunda encosta virando-me as costas, logo em seguida trepa com os pés na parte mais alta, depois desce coleando o corpo até o chão, pousando sinuosa, e recebe uma ovação. A próxima fica mais animada e, sem se preocupar com a saia, agarra-se à vara como se fosse seu parceiro, bamboleia, arroja-se para o alto e estica as pernas em espacate. A plateia vai ao delírio. Claro, algumas mulheres a xingam, mas isso apenas renova o seu ânimo.
Ânimo que atrai a reportagem para perto. Os camelôs se aproximam também, falando, gesticulando, os vendedores de lá das barrancas só observam. A repórter escolhe uma senhora de lenço verde na cabeça, sarará, olhar esgazeado, para entrevistar. Ela não quer saber de nada, nem de ninguém, está ali para vender. Ameaça o cinegrafista com um cabo de vassoura, guardado para estas ocasiões, e diz: “Sai, sai. Ninguém mexe nas minhas coisas”. Ouve-se ao fundo: “Nem os homes consegue tirar nada dela, eles passam reto. Têm medo dela. Ela é a única entre nós que se safa”. Alguém comenta: “Ela tem família, o marido é vendedor no viaduto ali perto”. A equipe se desloca, e com ela a pequena multidão. Outra ambulante pede para ser entrevistada, consegue seu intento, pede desculpas e diz que precisa ir ao banheiro. “Me espera, que eu já volto.” O cortejo segue adiante para encontrar o vendedor: um homem impecável, de terno, camisa social e gravata, caminhando com alguns cones de papel branco, brilhante, na mão direita erguida ao máximo.
De fato, é o máximo em vendas. Trabalho aqui faz vinte anos. Sempre vendendo amendoim torradinho. A senhora desculpe, mas não tenho como conversar agora. Estou no melhor do dia, é a hora do almoço. Abro o sorriso, olho para o lado e digo: Oooooiiiiiiiii. É o meu reclame. A repórter me diz: “Há problema se eu acompanhar, aqui ao lado, o seu trabalho?” Concordo com a cabeça, e, entre um grito e outro, conto as minhas peripécias. Comecei a trabalhar como todo mundo, de sandália, calção e camiseta, e um sorriso sempre estampado no rosto. Depois de algum tempo fui abordado pelo polícia, que tentou proibir meu trabalho, como ilegal. Um cliente amigo, que vinha logo atrás, se apresentou como delegado da Polícia Federal, ordenando ao outro me deixasse em paz. Este me deu seu endereço, e pediu que eu fosse até lá. Ganhei dele um terno completo, par de sapatos, camisa, gravata, tudo enfim. As minhas vendas triplicaram logo no primeiro mês. Aprendi muito com isso. Jamais abdiquei da imagem. Hoje, a senhora pode ver, estou com minha equipe me ajudando. Aponto para meus quatro sobrinhos: um cuida de trazer sempre amendoim fresco e quentinho, os demais ficam nas imediações para completar o faturamento. Logo, logo, estarão todos equipados para o trabalho. “Meus clientes dizem que deveria ter registrado o nome Oi. Que hoje eu estaria rico. Que nada, se eu tivesse registrado, eles usariam Ai. (Sorriso)”
E sorrindo, escondo o marrom da pele atrás dos meus dentes, e vou vendendo meus acarajés, famosos por toda a região. Acordo às cinco e meia para pentear meu cabelo e começo a bater a massa, deixo a comida toda preparada para o dia. Nunca ofereci comida dormida. Só a feita no dia, para qualquer criança poder comer. Não sou daqui, sou da Bahia: Ah, eu vim de Ilha de Maré minha senhora / Prá fazer samba na lavagem do Bonfim / Saltei na rampa do mercado e segui na direção / Cortejo armado na Igreja da Conceição / Aí de carroça andei, comadre, / Aí de carroça andei, compadre. Sabe? Baiano é que nem cachorro: onde encontra carinho, fica. Todo mundo me conhece por aqui. Encontrei meu homem, um pernambucano da gota serena, atleta, centroavante, jogou três temporadas no Íbis, não deu certo, não, só fez um gol. Quando dá cinco horas, arrumo minhas coisas e vou pra casa. Meu negão está me esperando, tomo meu banho, conversamos, tomamos cerveja e brincamos. Ele é bom no plantão, sabe? Não, não posso ficar nervosa, porque fico feia, e se ficar feia ou triste ele arranja outra. É mais novo que eu, fogoso demais. Não tem defeito. Só o futebol. Ele vai todo fim de semana para o diabo do campo. Outro domingo, eu o ameacei, para que ele ficasse em casa. Ia fazer arruaça, botar um par de chifres nele, se ficasse só. Ele me disse: “Pode botar, mas eu quero, vou voltar pra casa feliz. Nem Vem Que Não Tem / Nem vem de garfo / Que hoje é dia de sopa / Esquenta o ferro / Passa a minha roupa.” Vestiu os óculos de decisão de campeonato (duas estrelas: uma branca, outra preta), arruda, e a figa de guiné.
O Senhor Adib é dono de um restaurante. Ao terminar o horário do almoço, oferece uma quentinha para aquela sarará, a Saracura, o suficiente para ela, o marido e para os filhos que deixou em casa. Uma ambulante, magra, cabelo pixaim coberto pelo lenço, rosto marcado pelas rugas, pelo sol e pelo sul, aparenta ter muito mais dos trinta e cinco anos. Defende-se da polícia gritando feito maluca. Dizem que trabalha para o homem que fornece a muamba para ser vendida. Mora em um contêiner com a família. Aproveita do sono leve e faz guarda das mercadorias do patrão.
Pelo meio da tarde, o rio deságua no deserto. Todo comércio cessa, os vendedores se vão, junto com alguns fregueses, divididos em três grupos: os homens para assistir à final do campeonato, as mulheres para lavar a escadaria de uma capela próxima, ou dos Aflitos ou dos Enforcados, e os pares de namorados para preparar a festa de comemoração, à noite.
Eu e você nos encaminhamos para aquele espaço fechado, por detrás de várias portas e cadeados, que é o nosso trabalho ou lar. Com uma vontade de apagar tudo, de não pagar nossos débitos. Sim, as pessoas achavam-se dignas de um crédito pessoal ilimitado conosco. E apagar significa começar do zero em outro lugar, uma nova história. Para encontrar o dia original, depois do final dos tempos. O primeiro dia de todos os outros dias. Mas, tudo isso é um erro. As pessoas que observei (observamos?) mostraram isso, sem intermediários.
(Foto cedida e escolhida pela artista Daniela Schneider, de quem sou admirador incondicional)
Djabal,
ResponderExcluirEsse texto é uma fotografia. A gente fica olhando e toda hora percebe um novo detalhe.
Muito interessante isso aqui.
Parabéns mais uma vez.
Bjs
Amigo Djabal, só você mesmo, com sua criatividade e habilidade com as palavras, para dar esse lirismo ao cotidiano brasileiro.
ResponderExcluirA-do-rei "Geraldinos - peço licença para acrescentar "e Arquibaldos".
Mais um bravooooo!!!
Beijoss
"Eu e você nos encaminhamos para aquele espaço fechado,... Com uma vontade de apagar tudo, de não pagar nossos débitos".
ResponderExcluirUma conclusão e constatação para uma descrição Feliniana.
Fiquei imaginando uma sequência de imagens. Uma loucura, uma libertação.
Abraços
Luiz Ramos
Da admiração ao êxtase, da fatal realidade ao sonho demasiado, mas nunca vão.
ResponderExcluirVamos seguindo as tuas palavras, exímias, férteis, nunca fósseis.
Parabéns amigo. Felicidades sempre.
Djabal: adorei o texto. é uma narrativa com o seu quê de Prosa Poética.Carregado de Figuras e Recursos que o Estilo Literário pôs ao nosso alcance, o teu texto transmite uma Mensagem de Paz e Serenidade ,através da ALEGORIA , essa sucessão de Imagens , Metáforas, OXÍMOROS, etc
ResponderExcluirGOSTEI.
ABRAÇO DE MªELISA (http://lusibero.blogspot.com)