sábado, 16 de janeiro de 2010

Exílio



Acordo como aquela gota d’água com areia caída de uma nuvem. Guardei na memória a visão: uma cordilheira lá embaixo, aconchegante e verde. Olho ao redor, um quarto branco, cama e criado mudo, saio pela porta balcão. Gramado em retângulos perfeitos, cercados por um bosque de araucárias, caúnas da serra, capororocas, carobas, canela-podre, paus-leiteiros, tucuns, sarandis, jaborandis, guaperês, guajuviras, jerivás e louros-moles. Cadeiras Rietveld e guarda-sóis formam vários conjuntos. Flores azuis e tucanos empoleirados. Essa é a moldura que cerca a grande casa, de estilo montanhês. A esmeralda domina o piso exterior, exceto nas áreas de circulação; lá existe algo de concreto, mas vazado e quase imperceptível ao olhar.
Silêncio: este o ingrediente principal para a cura. Para a desintoxicação do corpo. Naturopatia. Tirar a força de dentro do próprio corpo. Os alimentos ativam o tratamento: sucos de clorofila de fontes como a spirulina, usada desde os astecas, chinos e sahelianos. Além de sucos de cenoura crua, folhas de trigo e alfafa, além de verdes das mais variadas, exóticas, remotas e longínquas procedências. “O gosto? Ah, esse é um ponto que ainda não pudemos levar em consideração. Nossa beberagem é melhor do que ingerir talidomida, não?“
Eu sou a enfermeira. Passo o dia inteiro preparando os alimentos. Acordo antes deles e durmo depois. Apresento meus pupilos, eles passarão os próximos meses aqui.
A médica: solteira, pediatra, média estatura, cabelos louros e áridos, olhos e pele cinzentos; trabalha em dois empregos na saúde pública. Formada de alguns anos, cursa especializações aqui e no exterior. Acaba de chegar de Berna. Assim que confirmou o diagnóstico, exigiu licença. Trata de se associar a outro plano de saúde. “Eu pago tanto imposto que prefiro pagar mais um plano, desde que dedutível pela Receita.” Lembra um graveto seco, friccionado, soltando faíscas. Irritada. Esgotou-se no trabalho ultimamente. Cobriu três colegas que também caíram enfermas. “A Secretaria não está nem aí. Na minha ausência, aí sim, darão valor ao meu trabalho.” Retirou um seio e agora enfrentará a primeira quimioterapia. Câncer agressivo (HER2). Sabe que o protocolo da químio é o mesmo desde os tempos de academia. “É impossível que não se tenha avançado nada,” Filha de emigrantes. Seus pais montaram uma empresa de produtos brasileiros na Alemanha, um pouco antes de estourar a Segunda Grande Guerra.
O engenheiro: divorciado, desde e para sempre, alto, corpulento, cabelos pretos, pele muito branca, meia-idade, sempre se dedicou ao mercado de ações e com isso consegue tocar sua vida. Hipocondríaco. Sofreu um sequestro relâmpago. Ouviu a voz da filha pedindo ajuda no celular, entrou em pânico e se rendeu completamente. Mesmo sendo judeu, declarou-se evangélico, portanto irmão em Jesus, para evitar uma tragédia, desenhada em sua mente. Seguiu todas as instruções, resgatou seu dinheiro no caixa automático e comprou créditos para os números indicados em lotecas e bancas de jornal. Na última delas, a jornaleira percebeu a situação, viu o suor alagando aquele corpo e escreveu em um pedaço de jornal: “É um sequestro?”. Recebendo a confirmação com a cabeça, pediu que escrevesse o telefone da filha dele; cada número devolvia um pouco mais do seu raciocínio. Ele viu o polegar positivo, desligou o telefone, abraçou a jornaleira. Comprou uma caixa de chocolates dias depois, como um agradecimento, e ficou surpreso quando a jornaleira não o reconheceu.
A zoóloga: moça ao redor dos vinte e três anos, com muito esforço mede cinquenta centímetros acima do metro, esguia, olhos da cor e do tamanho das ameixas, rosto oval e simétrico, cabelos lisos, finos, fala baixa e mansa. Natural da ilha de Sado, encerrou o curso, empregou-se em uma ONG. Embarcou para a Amazônia. Cuidando da população ribeirinha no Negro e afluentes. Aprendeu a pescar e a limpar peixes: acarás, acarauaçus, traíras, sarapós, jandiás, jejus, mandubés, maparás, surubins, tambaqui, tucunaré, matrinxã, curimatã. Orgulha-se de saber limpar o curimbatá. Caso não se tire um fio branco que corre desde a guelra até a cauda, o pitiú invade o peixe tornando-o intragável. Na sonolência do calor, sentada com um pé riscando, inutilmente, a água, raspava e jogava as escamas no rio, trabalhando com método e atenção; quando subiu, do nada, um jacaré-açu de três metros e abocanhou a perna direita, girou sobre o próprio corpo, puxando-a para dentro do rio. Ela conseguiu se safar, socando, alucinadamente uma parte “mole” do bicho. Nadou até a margem, de onde ligou para um médico, visto que o caboclo inchou e desatou a chorar atarantado diante de tanto sangue, ponta de osso e carne dilacerada daquela moça machucada. O animal foi localizado e morto. Tarde demais. O membro estava inútil para o implante.
O físico: alto, claro, forte, cabelos escuros ondulados, olhos azuis, cavanhaque ruivo, natural de Roncador, uma das menores províncias espanholas na América do Sul, poliglota. Fala: espanhol, esloveno, basco, albanês, finlandês, húngaro e romeno. Declara-se livre pensador, homem que não precisa acreditar. Ele compreende as razões, é investigador incansável e determinado, usa a Matemática como linguagem e a Física é sinônimo de beleza e elegância na natureza. Já fez dois transplantes. O corpo insiste, renitente, recusando-se a refazer seus ossos. Submeteu-se a um rigoroso e intensivo tratamento; está devastado. “Ao ver a chapa da minha cabeça, ela parecia um balaio.” Vive sob o efeito de analgésicos. O pai o animou a procurar o Conselheiro. Enfrentou chuva, tempo, vento e fila. Ao chegar a sua vez, o homem, dominado pela “Entidade”, que acolhia afável todos os desvalidos, ordenou-lhe desde as sobrancelhas, ríspido: “Vá até aquele canto; reflita. Depois, eu te chamo.” Ele foi para o lugar indicado, ficou sem saber o que fazer ou pensar; por que pensar?; por que eu? Observou o lancetar de tumores, o esvair e empapar de sangue, se afastou para alguém costurar os doentes, fez isso várias vezes, até ser chamado de volta. Recebeu algumas secas instruções secas de preparo, e só depois disso deveria visitá-lo em Mihragem. Rejeitado, observou o homem sair do pátio, em uma caminhonete, saudando a população ululante, em estridente êxtase a cada aceno.

(continua...)