segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O resgate do mineiro.

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E, meu infeliz modo de ser –
que não posso evitar, pois nasci com ele –
consiste em sussurrar uma mansa exortação
 a quem está fora de juízo.
 F. Kafka.


Intimidade planejada. Conseguira arquitetar a casa com detalhes que a transformaram em um lugar só seu. Confortável e seguro. E, dos poucos compartimentos da casa, o quarto foi objeto de atenção especial. Ficava ao final, compunha-se de quatro paredes e um pequeno anexo para roupas. Dos quatro limites, um não fazia ângulo de noventa graus, mas subia em rampa na direção do teto, alongava-se para a vista, dando a sensação de se estar dentro de uma casca de noz, com o  piso sem aquelas ranhuras e reentrâncias. Na parede, protetora e amiga, pendurou uma grande tela de tevê.  Um estofado confortável, com várias almofadas, fazia dupla com um momento retangular feito tapete: um convite para se deitar. Outra parede se destinava às reproduções dos seus artistas prediletos. Aceitava-os como um momento de paz, para olhar a composição e imaginar suas cores. Contra o fundo cinza e seus holofotes.  Outra parede foi destinada à janela em forma de escotilha. Fazia oposição à das pinturas, e mostrava a parte que lhe coubera do mundo. Ali, também instalara uma escrivaninha com papel, lápis, borracha e telefone. Sobre o tampo, havia um quebra-luz para as noites de insônia. Na última parede, ficava a cama de casal e uma grande banheira. Estavam separadas por paredes de vidro corrediço. Esse era o seu grande luxo, o banho de água morna, o momento sublime entre o sonho e a realidade. Utilizava invariavelmente um grande número de toalhas. Dois discretos lavatórios e sanitários não conversavam entre si, muito menos com a ducha. Exagerou no branco e nos metálicos, dando uma aparência dura, que a névoa da água amaciava e o calor dos corpos atenuava.

Preparava-se com a calma costumeira para seu dia. Dormira nu, como sempre; primeiro se livrava dos excessos do dia anterior. Depois, gostava de relembrar o gosto da água da fonte e tomava um copo com indisfarçável prazer. Uma oração à mente. Tinha à mão uma jarra de água, trocada diariamente para preservar o frescor. Estava inteiro nesse momento, vazio, sem pensamentos, revigorando-se. Acostumou-se a ficar perdido dentro de si na maior parte do tempo. Naqueles minutos, seu corpo se reconstruía. Ocupava-se em acomodar a pasta sobre as cerdas da escova. Seis horas da manhã.

Por um pequeno instante, pensou ter visto a mulher conversando ao telefone. Não permitiu que isso abalasse seu método. Seguiu gole a gole, até a metade daquele cristal feito copo. Podia sentir o efeito de cada um deles no seu organismo. Um revigorante formidável. Água sorvida aos poucos, com calma e intimidade. Levava a macia escova à boca.


Outro corpo de mulher, trajado com um tailleur escuro, adentrou o ambiente. Explodiu o instante.  Encaminhou-se para o banheiro, depois de um olhar curioso sobre aquele copo d’água. Conseguiu exortar a mulher deitada sobre o que estava acontecendo. ‘Não posso falar agora, use o outro banheiro’.


Momentos de paz: sua coleção de filmes. Escolhera pacientemente cada um deles. Crescera em um ambiente monótono e hostil, onde cada um se preocupava apenas com sua própria vida. Não sabia se fora um fruto desse ambiente, ou se já nascera com a disposição de obedecer às ordens que recebia. Constituiu-se nela a irresistível natureza de criado. Embaraçava-se para negar a opinião alheia.

                                                                                          
Não buscara a razão como base para a escolha. Todas as opiniões tinham a mesma validade das nuvens. E se comportavam como elas, belas, indiferentes e inúteis, a não ser quando o distraíam. Dava como exemplo o pensamento embutido na seguinte frase: “Todos os Romanos que conheço são velhacos”. A maior verdade dele era inútil para todos os outros. A primeira coleção se constituiu de fitas de vídeo-cassete. Fez um armário próprio para elas. Organizadas pelo nome do diretor. Não as separou por categoria ou gênero. Seu critério: subjetivo. Também não catalogou por títulos. (Observou alguém entrar em uma livraria pedindo: Crime e Castigo, e o vendedor indicando os fundos da loja, dizendo que os livros de Direito estavam na última estante à direita.) Assistiu à vida dos outros transcorrendo no suave desenrolar da fita magnética (ignorava os rangidos rascantes do mecanismo), e conseguiu dar mais cor à própria vida. 


Com a sua primeira separação, não restara uma fita sequer. Todas ficaram armazenadas em seu local de origem: o armário dentro da casa, agora dela.


Iniciara outra coleção sob outra plataforma. Reconstruíra o armário em outra casa, ambos menores. Os pequenos discos versáteis digitais ocupavam menos espaço. Reeditou o seu catálogo original. Operou nele duas alterações. Adicionara um diretor: Eric Rohmer. Gostava de ouvir os longos diálogos, sabia alguns de cor. Ouvia-os com frequência, com ou sem legendas, para apreciar a música das palavras. O Raio Verde: a sua história predileta. Apesar de todas serem regulares, sem ápices ou sopés, deixavam um sabor especial destinado ao futuro remoto, algo que ameaçava irromper e modificar a história. Adicionara um filme: Os Duelistas.

Quando alguém pedia um filme emprestado, alegava a necessidade  de fazer algumas anotações (mentira) em seu bloco de notas (mentira) antes do empréstimo (mentira). Em seguida, saía e comprava uma cópia  para o “empréstimo”. Porque ninguém os devolvia.

Encontrara uma moça nua, sentada diante do seu armário. Pernas cruzadas apoiadas sobre os tornozelos, com flores coloridas tatuadas subindo desde as faces externas dos braços. Escolhia calmamente alguns filmes. Formou uma pilha de oito unidades (conseguira contar). Ouvira dela uma antologia dos bons sentimentos  (a promessa de devolução) e uma opinião:  não há na coleção nenhum DVD de alta definição. Blu-ray. Começarei hoje. Esta fora a última frase entre ambos.

Almoço na praia. Um lugar com uma rede para jogar vôlei, aproveitar a temperatura agradável e brincar com os filhos.  Duas crianças que logo encontraram outras e formaram dois times. Deixavam o tempo passar com preguiça. Fim de semana. Um pequeno ambiente particular.  Aquela faixa de areia que se estendia desde um quiosque redondo com telhado de sapé, abrigando a grande mesa afundada na areia fina, onde todas as roupas ficaram jogadas, passando pela “quadra” até atingir a fímbria do mar. Combinaram de tomar sorvete, comer camarão ou peixe, asinhas de pintado, enfim, o que a praia oferecesse. O que apareceu primeiro foi a água de coco. Logo depois, uma tartaruga. Ficou por ali, deitada; parecia apreciar o jogo. Os filhos se divertiam muito. O mar estava calmo. Depois da primeira partida, as outras crianças se espalharam e eles se atiraram no mar. Ficaram os três boiando. Salgando o corpo. Crescendo juntos. Voltaram às suas toalhas, deitaram sonolentos até que a fome os despertasse. Resolveram andar um pouco.


Adiante encontraram uma grande tenda branca, em estilo oriental, fazia uma grande sombra na areia. Lotada. Diante dela vários guarda-sóis quadrados cobrindo conjuntos de mesa e cadeiras (metal e acrílicos em azul). Tentavam confundir-se com a paisagem. Espreguiçadeiras brancas ladeadas de apoios (tocos troncos rústicos). Garrafas de champanhe, suados baldes de gelo, cesta de frutas. Maçãs, mangas, uvas, amoras, bananas e abacaxis. Uma alameda de madeira subia pela elevação onde árvores suportavam redes e os corpos bêbados de sol e sono.


Eles passavam por ali quando foram chamados por um homenzarrão de bigode vermelho. Uma sunga sumária continha com muito custo partes do seu corpo.  Agitava as suas mãos fazendo sinal para que se aproximassem.  Quando a imagem ficou mais nítida e próxima, reconheceu o cliente que o contratara para decorar suas propriedades. Ele arquitetara o final de semana para ficar com os filhos. Filhos cujas mães, diferentes, se odiavam.  Respondia educadamente a cada indagação. Não possuía casa por ali, estava apenas em uma pousada durante o final de semana (mentira). Ele foi apresentado à esposa e ao casal de filhos. A moça, bem parecida com o pai, alta, desengonçada, de feições duras, largas e sérias. O menino se parecia com a mãe, mirrado, moreno, pilotava um pequeno veículo próprio para as dunas e se vangloriava de tê-lo desmontado e montado completamente, sem a ajuda do pai. Seria um ótimo engenheiro elétrico, algo que o pai não conseguira. Ele importava móveis e utensílios de bambu da China. Passava todos os finais de semana naquela praia e aproveitou para fazer ali uma exposição dos seus produtos. Convidou-os para o almoço, junto com seus outros amigos. Ele agradeceu (não encontrou nenhuma desculpa viável para a recusa) e chamou os filhos para perto, contou do convite. Já se dirigia com os anfitriões para uma das mesas, a principal, do pater familias, quando seu o filho o interpelou: Eu não vou, pai. Quero ir para a nossa casa.

O pai tentou argumentar. O filho abaixou o tom de voz, o suficiente para ser ouvido. Aqui tem muita gente. Eu não os conheço. Queria ficar lá em casa. Rejeitado, o cliente argumentou que estava  preparando  pessoalmente os caranguejos. Havia reservado três, daqueles bem grandes (garra enorme), e pediu para alguém os trazer.  Chegaram agora. O filho, quando os viu, aquelas pinças, as couraças da cor da sua própria pele,  o martelo, olhou para o dono e decretou. Não, muito obrigado. A não ser que meu pai queira. Aí eu fico. Só o par de olhos do pai respirava ao encontrar os do patrão.

Fazendo o caminho de volta, deram de cara com a eclosão dos ovos das tartarugas. Puseram-se sobre os joelhos para acompanhar o caminho dos filhotes, inúmeros deles, até o regaço das águas. Exceto um, enredado em uma cova daquele areal úmido.