segunda-feira, 1 de março de 2010

Singuratat





“Sei que sou totalmente indigno de opinar em matéria política,
 mas talvez me seja perdoado acrescentar que descreio da democracia,
 esse curioso abuso da estatística.” J.L.Borges



Chego após conseguir me livrar da cidade congestionada. Um dia exaustivo, calor, umidade, pressão, ansiedade, interesses, negócios. Solto o colarinho, tiro a gravata e o paletó, e os coloco no devido lugar. Estranho o ambiente arrumado, as crianças na casa dos amiguinhos, o inabitual jantar prestes a ser servido. Trocamos beijos de boa noite. Elena está vestida de preto, em contraste marcante com sua pele muito branca. Lembra-me daquela que conheci.
Trouxe um documentário para assistirmos: Singuratat. Abrir a janela, esquecer dos meus problemas.
Conta a história de um casal e sua vida em um país europeu antigo, ex-colônia do império Romano, pobre, na região dos Cárpatos. Ele, filho de lavradores, com pouco estudo e muita força de vontade, subiu na hierarquia do poder graças ao seu senso de oportunidade. Ela também veio do campo. Frequentou por alguns anos o ensino fundamental, destacou-se em bordado.
Quando surgiu a chance de conduzir o país, ele se apresentou. Trouxe consigo a esposa, parentes, e amigos.  Administrava a nação como a sua casa. O momento econômico era favorável e o inimigo estrangeiro estava afastado para sempre. “O sucesso seria dividido apenas entre nós, e ninguém mais.”
Usou de toda a sua energia. Não se intimidou diante das dificuldades e as ultrapassou, passando por cima de todos que ousassem divergir de seu pensamento. Construiu uma rede de informações; contratou os melhores poetas, artistas e engenheiros. Encenou muitos espetáculos, contando a sua visão peculiar da História. Lembrou de reis e lutas o passado. Deixou que o chamassem de Pai da Pátria. Exilou os dissidentes. Tratou de construir e de comemorar. Erigiu palácios e distribuiu moradias. Sagrou uma comunhão eterna. Acumulou fortuna. Graças ao tempo em que trabalhou como secretária em uma indústria química, sua mulher era tratada, por exigência dele, como cientista de renome internacional. Os revisores eram punidos por qualquer erro de grafia nos seus nomes. Controlava toda a programação da tevê, imprimiu um minucioso manual das cenas, ângulos e situações permitidas. Governava por meio das imagens.
Espalhou o medo. Todos tinham medo de falar, de contestar, de apresentar qualquer sugestão. A liberdade se reduziu aos bilhetes com pedidos de casamento colocados nos bolsos dos paletós pelas operárias da indústria. Obedeciam-no submissos. Cada concessão era um pedaço oferecido pela consorte. Seus pedidos não pararam. Ao se reeleger, recebeu um cetro dourado, obra especial de seu joalheiro.
Depois de vinte anos de prosperidade, como sempre, as coisas mudaram. Toda a produção passou a ser vendida para pagar as contas. O dinheiro escasseou. Havia pouca comida. A quantidade de insatisfeitos aumentou. Ele foi para o estrangeiro e pediu dinheiro emprestado mostrando seus planos mirabolantes de sucesso no futuro. Iniciou o processo de compra de aviões de um reino distante. Para tal, exigiu ser recebido com a máxima pompa oferecida a um Chefe de Estado. Desfilou imponente perante multidões. Sua mulher foi laureada pelo Instituto Real de Química. A negociação fracassou quando ofereceu produtos agrícolas como pagamento.
Recusou todas as sugestões de mudança. Ignorou as deserções. “Todos traidores, vermes oportunistas.” Era comum o “suicídio” do responsável.   Os subordinados não mostravam os relatórios desagradáveis. Considerava-se o pastor de seu povo, e compreendia ter chegado a época das pragas do Egito. Tinha o filho, um bêbado e jogador inveterado, como sucessor.
Assistiu naquela noite à história do presidente que tanto admirava. Repetiu várias vezes a cena do cortejo na Dealey Plaza. O conversível deslizando solene. Os acenos para o povo, exatamente como ele fazia. As bandeiras.  A emoção transbordante daquela união entre o povo e o pai. Sentiu fisicamente o amor daquela esposa se jogando para trás a fim de defender o marido. A bala que esmigalhou a cabeça dele restou como um detalhe menor.
Ninguém ousou contestar a sua decisão de reunir o povo. Anunciar suas ordens. Prever um futuro brilhante. Pregar paciência e luta. Na praça de costume, o palco para seu discurso transmitido ao vivo para todo o reino. E, no transcorrer da transmissão, uma confusão prendeu a sua atenção e brecou sua fala. Viu o paraplégico se levantar da cadeira de rodas. A multidão gritava palavras de ordem e quebrava a Ordem. Aquele fragor se dirigia a ele: “Liberdade, liberdade”. Alguém cochichou: “Eles tomaram o prédio”. Ele e a mulher fugiram em um helicóptero, obrigando o piloto a decolar sob a mira de um revólver.
O casamento estava desfeito. A população dominou as instalações da tevê estatal.  Retirou as câmeras do almoxarifado e passou a gravar todos os seus movimentos. O poder se estilhaçou. Os rebeldes encontraram escondido o Primeiro Ministro e o colocaram no ar exigindo, segundo as leis vigentes, que renunciasse. “Nós queremos ficar na legalidade.” Mostravam cenas de soldados se abraçando aos manifestantes. Invadiram o prédio do comitê central e jogaram pela janela centenas de livros. Queriam encontrar os simpatizantes do ditador. Os integrantes da polícia secreta. Quase ninguém aparecia. Todos apresentavam documentos de identidade,  provando inocência. “São documentos falsos”, ouvia-se uma voz  sem rosto. Encontrou-se o filho do casal. Estava com a testa ferida, um filete de sangue, o olhar esgazeado, parecia não compreender o que estava ocorrendo.
O julgamento da dupla foi transmitido ao vivo. Apesar de nervosos, ele sempre aquietava a mão dela com a sua. Queria ter a última palavra, o último argumento. Mas era necessária a imagem; a palavra perdera integralmente o seu valor de informação, de transformação. A imagem reinava soberana. A imagem e a bala.
Ambos foram executados, a câmera conferindo as identidades dele e dela, em close, mostrando os procedimentos adotados para a acomodação dos corpos aos respectivos caixões. “Talvez aqueles sacrifícios fossem capazes de reconstituir aquele corpo quebrado, devastado e nu?”
Logo após o término do documentário, a esposa se aproxima, senta e diz: “Nicolau, precisamos conversar”.