Um dia, caindo de bêbado, liguei. É, liguei para a minha ex-namorada. De alguns meses atrás. Doze, para ser exato. Uma mulher genial, de ótimo humor, bonita, alta, magrinha. Aliás, falsa magra. Tudo correto. Você está curioso de saber o porquê do fim?
Ela perdia o controle com muita facilidade. De uma hora para outra, sem mais nem menos, saía a brigar comigo. Que eu não dava a mínima importância para o que ela dizia. Que eu não contava meus segredos, que era muito calado. E me desancava, a mim, a minha geração, os homens, e tudo mais que era possível. Desatava a chorar lágrimas com peso e densidade. Dentro delas, as microscópicas desilusões vinham à tona. E eu naufragava. Não havia sexo de reconciliação. Durava ao menos dois dias. Depois deles, tirávamos ao redor de quatro semanas como férias. Lua-de-mel. Passeávamos no parque, e, se não havia ninguém por perto, ou se houvesse alguém por perto e não fosse ameaçador, ou mesmo ameaçador, se encontrássemos algum lugar mais ermo ou fechado mesmo com uma trinca de plástico, ela me agarrava, me jogava no chão, e lá ficávamos alucinados de amor. Trançando pernas, braços, aproveitando todas as posições anatômicas que estivessem à disposição pela fisiologia, coreografia ou fantasia. Até que o cansaço pedisse licença. Assim: desmaiando um ou outro. Sem prévio aviso. Como se a luz apagasse, Te Deum cantado pela voz invisível do sonho. Se houvesse alguma seriedade, ou consequência em mim, jamais ligaria novamente. A última discussão foi digna das docas do porto. Eu tentando ser calmo e ponderado. Mas ela estava do outro lado, atirando potes, pratos e pires. Apoplética. Cismou que eu a traia com sua amiga. A melhor amiga. Eu sequer a conhecia direito. Apenas fiz menção ao tamanho da bunda, do corpo, ao jeito sacana de ser. Homem não diz nada sem abrir a calça. Não diz do que não conhece, já sabia que você estava a fim. Sentia. Quer que eu ligue para ela e arranje as coisas? Não, obrigado. Ah, não! Você já conseguiu sozinho, né? Não consegui nada, pare com isso, por favor. Por favor o cacete! Você é um merda de um conquistador barato. Com essa conversinha mole, fica dando em cima de todas as mulheres, não há ninguém que arrume você. Pensa que eu não sei? Covarde. Aproveitador. Sabe do quê mulher, falei olhando para a ponta do sapato. Olha pra mim, seu bosta. Encare a situação de frente. Olhei ainda calmo. Tá vendo? Sua calma é a de quem tem culpa. Sai daqui. E atirou o primeiro pote. O segundo: prato. Depois o pires. Eu tentei me desviar, mas este me pegou no ombro. Ela abriu a gaveta de talheres, e dali coisa boa não sairia. Tentei subir para o quarto dela. Com um pulo felino, ela se interpôs entre mim e a escada e avançou com um garfo na minha direção. Não me restou alternativa. Agarrei sua mão com a força do medo e a fiz soltar. Foi a minha confissão assinada de culpa, testemunhada pelo talher e pelo roxo do pulso.
Ela perdia o controle com muita facilidade. De uma hora para outra, sem mais nem menos, saía a brigar comigo. Que eu não dava a mínima importância para o que ela dizia. Que eu não contava meus segredos, que era muito calado. E me desancava, a mim, a minha geração, os homens, e tudo mais que era possível. Desatava a chorar lágrimas com peso e densidade. Dentro delas, as microscópicas desilusões vinham à tona. E eu naufragava. Não havia sexo de reconciliação. Durava ao menos dois dias. Depois deles, tirávamos ao redor de quatro semanas como férias. Lua-de-mel. Passeávamos no parque, e, se não havia ninguém por perto, ou se houvesse alguém por perto e não fosse ameaçador, ou mesmo ameaçador, se encontrássemos algum lugar mais ermo ou fechado mesmo com uma trinca de plástico, ela me agarrava, me jogava no chão, e lá ficávamos alucinados de amor. Trançando pernas, braços, aproveitando todas as posições anatômicas que estivessem à disposição pela fisiologia, coreografia ou fantasia. Até que o cansaço pedisse licença. Assim: desmaiando um ou outro. Sem prévio aviso. Como se a luz apagasse, Te Deum cantado pela voz invisível do sonho. Se houvesse alguma seriedade, ou consequência em mim, jamais ligaria novamente. A última discussão foi digna das docas do porto. Eu tentando ser calmo e ponderado. Mas ela estava do outro lado, atirando potes, pratos e pires. Apoplética. Cismou que eu a traia com sua amiga. A melhor amiga. Eu sequer a conhecia direito. Apenas fiz menção ao tamanho da bunda, do corpo, ao jeito sacana de ser. Homem não diz nada sem abrir a calça. Não diz do que não conhece, já sabia que você estava a fim. Sentia. Quer que eu ligue para ela e arranje as coisas? Não, obrigado. Ah, não! Você já conseguiu sozinho, né? Não consegui nada, pare com isso, por favor. Por favor o cacete! Você é um merda de um conquistador barato. Com essa conversinha mole, fica dando em cima de todas as mulheres, não há ninguém que arrume você. Pensa que eu não sei? Covarde. Aproveitador. Sabe do quê mulher, falei olhando para a ponta do sapato. Olha pra mim, seu bosta. Encare a situação de frente. Olhei ainda calmo. Tá vendo? Sua calma é a de quem tem culpa. Sai daqui. E atirou o primeiro pote. O segundo: prato. Depois o pires. Eu tentei me desviar, mas este me pegou no ombro. Ela abriu a gaveta de talheres, e dali coisa boa não sairia. Tentei subir para o quarto dela. Com um pulo felino, ela se interpôs entre mim e a escada e avançou com um garfo na minha direção. Não me restou alternativa. Agarrei sua mão com a força do medo e a fiz soltar. Foi a minha confissão assinada de culpa, testemunhada pelo talher e pelo roxo do pulso.
O silêncio foi o tutor do término. Não nos falamos mais. Aos poucos amigos restantes que perguntavam dela, eu desconversava. Tinha vergonha de contar, e não pretendia assumir nenhuma separação, e muito menos o motivo dela. Usava a frase predileta dos americanos nos filmes: “Não quero falar desse assunto”. Arrumei amigos de uma nova safra. Saíamos para beber e conversar. Grande circuito da cerveja. “Uma cerveja não faz mal. Duas também. Nem dez. O que faz mal é o exagero.” Quando começávamos a discutir o porquê da nuvem de álcool no firmamento ser a causadora da marcha da multidão de borboletas desde o Canadá até o México, sabia que devia ir embora. Só trabalhava e bebia. Amortecido. Anestesiado. Não atinava. E ainda não compreendo aquele comportamento. Uma hora boa, outra ruim. A boa, fantástica. A ruim, infernal. As duas de outro mundo, não o das pessoas normais. Algumas aventuras mornas, nesse meio tempo. Algum amor pago. Todas assim. Meia-boca. Uma válvula preênsil contra um êmbolo transmissor. Aulas práticas de mecânica de leve fricção.
Até o dia em que, ao me levantar, percebi que estava prestes a perder completamente a consciência. Todo o cenário começou a girar à minha volta. Estava leve, o corpo sem peso. Minha mão atingia as coisas antes ou depois da hora. A visão nítida dos objetos, mas eles estavam sob o fundo azul-cobalto do céu, antes da tempestade, onde perdemos a noção de distância. Resolvi sentar e esperar um pouco. Com o tempo adquiri uma capacidade muito grande de absorver álcool. Jamais dei vexame, e este não será o meu primeiro dia. Já sei, vou ligar para ela. Sentado e senhor de mim, disquei.
- Alô?
- Oi. Você pode falar agora?
- Espere um pouco.
- ...
- Pronto, pode falar.
- Quero ver você.
- Quando?
- Amanhã.
- Que horas?
- Oito horas.
- Onde?
- Vamos jantar?
- Pode ser.
- Na nossa bodega?
- ‘Tá bem.
De manhã cedo, tomo a mezinha salvadora: uma dose de conhaque, uma gema de ovo e vinagre. Salpico bastante tabasco e molho inglês. Engulo de uma só vez. Pronto, ficarei novo em folha.
Depois de tanto tempo. Pontualmente às oito, ela chega. Está mais linda. A pele clara, sem nenhuma mancha. A separação lhe fez bem. Não mudou nada, se mudou foi para melhor, espero. Não dá para perceber ainda. Olho dentro dos seus olhos. Hoje é o dia bom. Eles estão claros, consigo me ver, límpidos como espelhos. Pergunto o que ela quer. O de sempre. Faço a nossa escolha. Não esqueceu nada? Ah, sim. O vinho: Chiante. Agora, sim. E desatamos a falar de generalidades. Assuntos sem controvérsias, o que estou lendo, o que ela está escutando. Quem apareceu de novo no cenário. Duas horas depois, estou, estamos agitados. E pergunto se ela quer esticar o jantar. Vamos para minha casa, na Granja Viana. Eu a reformei e pintei, está nova. Ela hesita um pouco. Pensei: É agora. Vamos. Acendo a lareira. Adorávamos o fogo. Despertava-nos a compreensão das coisas que não podem ser descritas. Ficávamos deitados olhando as fagulhas e bruxuleios, caracóis de luz saídos da morte da madeira. Raramente nos beijávamos, conversávamos com as mãos e os olhos. Revivemos a nossa melhor noite. Cada mês ausente foi recompensado. Em doze movimentos plenos de ação, ardor, coragem e saudade. Parecia que jamais estivéramos separados. Eu quase a penetrei por inteiro, para morar dentro dela, tamanha a fusão entre nossos corpos. Suados. Amados. Banhados. Suados. Amados. Salgados. Quebradiços e tesos como biscoitos prestes a quebrar com um estalo dos dedos. Atemorizados por algo que quebrasse todo o encanto. Interiormente, fui invadido por uma paz sem igual. Nenhuma ressaca. Simples momento de indecisão. Para qualquer lugar que eu olhasse ou me movesse seria bom. Sem angústia. A pressa foi afastada para sempre. A paz. Invadido pelo sentimento de paz. Leve como uma pluma. Um fio de teia de aranha que caísse sobre o membro o tornaria rígido outra vez. Assim que um raio cortou o céu, ouvimos o trovão, eu me levantei para entrar, estendi a mão:
- Vamos?
- Aonde?
- Para dentro da casa.
- Eu preciso ir.
-...!?
-... Casei.
CuriosA!
ResponderExcluirrsrs
Uma linda crônica nos mostra que "a fila anda..."
ResponderExcluirAndou para ela; para ele, não.
Um bom ensinamento e ponto para meditação.
Gostei muito do texto.
Luiz Ramos
É, seu Djabal, você é bom nisso.
ResponderExcluirE vou te dizer, eu duvido que ela tenha casado. Para mim ela mentiu.
Ela tem todo esse perfil.
Beijos
Adorei.
Djabaaaaal,eu não conhecia esse seu lado de escritor "atração fatal" .[rs] Brilhante!!!
ResponderExcluirTái, na minha opinião ela quis fazer um "tipo".
Beijos e meus parabéns!!!!
E.T. Adorei o comentário do Luiz Ramos.[rs]
Haja destreza literária, querido amigo. E aliado a isso, sensibilidade, capacidade narrativa e concerteza uma boa dose de criatividade, sem descurar a realidade.
ResponderExcluirParabéns, Djabal!
1 Bj*
Luísa
Djabal,
ResponderExcluirum texto brilhante, como já foi dito. E também sublinho os comentários do Luiz e da Elika.
Mas acrescento: excepcional a densidade psicológica e dramática das personagens ao ponto de falar-se em perfil. O do narrador é como se ficasse na penumbra, mas à primeira análise ressalta um extraordinário poder de observação e uma competência descritiva exímia. Para não falar do autor, cujo génio está suposto nos pormenores das percepções e nas elocubrações.
A literatura ainda é surpreendente, pelo menos tanto quanto o futebol.
Um abraço
Um tear onde os fios fazem jus ao tecelão.
ResponderExcluirA curiosidade cativa, e o final surpreendente.
Parabéns, uma vez mais!
Abraço
Djabal
ResponderExcluirVindo de ti...já nada me surpreende!Ficção? Verdade? A vida assim burilada, talhada...num desafio constante...portas fechadas...estradas em curva...inversões de marcha...recuos...no final...uma saída de emergência...BRILHANTE!!
Beijo
Graça
Meu caro amigo Djabal falar sobre seu texto poderia se dar atravéz da continuação de seu comentário lá em meu site, daquelas verdades em tons e jeitão de segredos da felicidade de quem sabe do que fala mas ainda assim se mostra modesto e com garra por mais, o saber vem em paulatinas e homeopáticas doses não sem por vez ou outra nos invadir, faço das suas as minhas palavras aqui, coisa para poucos.
ResponderExcluirParabéns e obrigado pela amizade, grande abraço.
Essa mulher é muito chata. Como ela conseguiu casar?
ResponderExcluir(pelo menos isso me mostra que devo ter alguma esperança!)
Assim que li o texto me ocorreu uma letra musical do Biquine Cavadão que diz: "Eu sou do povo, eu sou um Zé ninguém/ Aqui em baixo as leis são diferentes."
ResponderExcluirE cada vez que leio ou lembro do texto só me ocorre essa analogia entre o texto, com sua complexidade e essa música.
Óbvio que reconheço que em relação a posição de magnatas e ministros e a população em geral há sim essa diferença, mas não concordo com o fato de que todos os demais são um Zé ninhuém. Só é Zé ninguém quando se quer. Quando alguém só dança conforme a música proposta por outros. Nunca escolhe a sua.
Quanto a questão central de teu texto. Risos.
Nem sempre os tempos coincidem, e então cada um tm que arcar com o que lhe cabe. Não é asim?
Continua...
Beijos
Saudades que eu estava disso aqui...
ResponderExcluirPara variar você mais do que acertou a mão no texto...
pena que nem sempre as pessoas se encontram no tempo certo. "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida" Vinicius de Moraes
um grande abraço
É o máximo quando o escritor consegue isso: a dúvida do leitor. Lembra de Dom Casmurro e a traição ou não traição de Capitu? Aqui, seus leitores estão achando que ela mentiu, que não casou. Adorei a leitura.
ResponderExcluirObrigada pela visita ao Leitora; seu comentário suscitou em mim um sorriso grato.
Parabéns pelo belíssimo texto!! Um prazer lê-lo!! Vc tem o dom!
ResponderExcluirNão acho que isso importe nem um pouco (se a moça se casou ou não). Quero ver a continuação... se o ruim da relação também vai se repetir, como naquelas séries matemáticas.
ResponderExcluirEsse autor tem várias facetas, escreve 'sob várias direções'. :) Adoro essa sua característica!
Abraços
Muito bom, Djabal. Excelente texto. E obrigada pelo gentil comentário lá na Pausa do Tempo. Volte sempre.
ResponderExcluirForte abraço,
A gente liga para confirmar o que já sabe.
ResponderExcluirÓtimo conto!