terça-feira, 14 de julho de 2009

Tartã




Se pudéssemos ver o homem, o entenderíamos


Ascídio desce a escada que ascende do subsolo. Trabalha lá embaixo. Perna esquerda mais curta e braço esquerdo mais longo. Gosta de comer ouriço do mar, sempre diz que são parentes entre si, mas não é canibal, o parentesco é distante, tampouco se considera um marciano, talvez uma deformação de estrela marinha. Queda-se lá, mesa cheia de papéis que passam, param e tomam outro destino. Guarda alguns para suas anotações naqueles sem mais serventia. Dentro do gabinete resta como paisagem, enterrado em uma pedra submersa, apenas aparecendo em festas e reuniões com muitas pessoas. As tarefas do trabalho para o qual foi contratado terminaram, entretanto sua movimentação constante, sua atribulação aparente e seu ar sempre ocupado simulam a sua indispensabilidade.

Em tempos passados usou um boné pensador, chamando a atenção sobre si de maneira inconveniente. Todos o olharam e viam algo que o conduziria à morte. Pessoas desconhecidas, tendo ouvido falar do chapéu, vieram vê-lo; não assim frente a frente, mas, arranjando algo para fazer no departamento, olhavam para ele de soslaio. Ascídio compreendeu, então, o destino dos olhados em demasia. Todo examinado é uma cópia fiel do examinador. É a si próprio que o outro vê. O chapéu é um acumular dos ódios alheios. Teve apenas um amigo no passado, já distante, um boxeador. Depois dele, seus amigos residiam no futuro. Não conheceu, ao longo da vida efêmera, outro alguém que o olhasse para compreendê-lo, para pensar sobre diferenças. Considerava-se um ponto fora da curva, desprezado para efeito de análise ou consideração. Era o raciocínio que lhe dava segurança. E foi assim que deixou de usar o seu chapéu.

Consultou um ortopedista. Queria saber se havia alguma maneira de tratar o crescimento ímpar de seus membros. Sonhava em ter um aspecto normalizado. Foi atendido pelo assistente do Doutor Nicolau Capote, tirou suas roupas e deitou-se na maca do médico. O assistente apalpou, examinou, consultou os reflexos por todo o corpo, perguntou de sua ascendência, de seus hábitos, analisou todos os exames de laboratório pedidos preliminarmente. E, passo a passo, passou suas impressões ao doutor Capote. Este, de repente, levantou-se e fez algumas considerações a respeito daqueles resultados ao residente. Uma pergunta ou outra, e deu o seu diagnóstico. O mestre mandou. E disse bem: coloque um salto maior no pé afetado e mande fazer suas roupas sob medida e ninguém notará.

Mesmo insatisfeito com o resultado, conformou-se e seguiu sua vida. Encontrou um galego residente no Brasil, há muitos anos, alto, gordo, calvo, claro e sardento, um negro faiscante no olhar curioso, um ligeiro tremer de mãos, adorador de tangos, dançarino desde moço, aprendeu a costurar e fez o seu primeiro terno em linho ‘cento e vinte’. Altivo e formal, conheceu aquela com quem se casaria em um baile e se apaixonou. Pediu a ela autorização para ir ao seu último carnaval sozinho. Autorizado, se esbaldou e nunca mais foi boêmio. Só alfaiate. Combinou com ele o preço, a forma de pagamento. Fez provas intermináveis onde contava as gravações do Gardel, do seu acervo de discos de setenta e oito rotações, gabava-se de ter a maior coleção da América, jamais tivera conhecimento de outra que lhe chegasse aos pés. Experimentei o conjunto e percebi que a perna esquerda da calça estava mais longa e o braço esquerdo mais curto. Olhou para o senhor Salvador e disse: “Está fora das medidas, senhor Salvador.” “ É, mando fazer a calça em um calceiro e o paletó é costurado pela minha mulher. Talvez ambos pensaram que eu me enganei nas medidas. Deve ser isso.”

Ele amarra e desamarra seus sapatos pelo menos uma vez, todos os dias. Os cadarços não chamam a atenção, auxiliam e atacam seus furos, sem reclamo, exigência, eles estão sempre lá no seu lugar, semiprontos para o dia seguinte. Certo dia, o ourelo se racha, o do pé esquerdo. O capuz cônico e brilhante dia após dia vai se desfazendo. Logo pensa em trocá-lo, por outro, mais novo, ele passa a requerer mais atenção. Deve juntar primeiro os fios da ponta, agora soltos, numa forma afilada, para penetrar o buraco do ilhó da aba esquerda que cobre a lingüeta, e preparar o laço final. Ao mesmo tempo passa a olhá-lo com desvelo, concluindo não ser justo atirá-lo fora pelo problema no cabeço. Ele ainda serve. Além de não jogar fora o outro, do par. (A compra é sempre feita aos pares.) Amarrar os sapatos é agora uma tarefa cuidadosa e demorada, não mais automática. Faz uma escultura instantânea e fugaz dos fios. Existem fios longitudinais e transversais, cada um forma uma estrutura, o urdume ou urdidura, este último a trama, eles se juntam em duas pontas agudas e passam perfeitamente para o outro lado e se encontram no laço final. Olha cuidadosamente para o calçado, e descobre a alma dele, assim como o atacador também. Ele é uma síntese. Durante um bom tempo, ele esculpe todas as manhãs. Um dia, um dos fios fica mais comprido que os demais, ele se estica à frente colocando o pescoço de fora, talvez um ato de rebeldia, pela torção constante que passou a sofrer. Ele o puxa para fora, e corta com as unhas. No dia seguinte, andava por uma calçada, quando alguém que o acompanhava, parou se abaixou e puxou um fio que aparecia e se arrastava sob a barra da calça, fazendo-lhe o favor. Chegando a casa, Ascídio percebeu. A trama se desfez até metade do cadarço, ele agora se resume numa rama de fios soltos até a metade. Antes de jogá-lo fora, amarro o meu pé esquerdo com ele pela última vez, apenas até o penúltimo dos ilhoses.

Folheando o jornal, uma notícia de falecimento trouxe à lembrança, a presença quase física do amigo, depois de vinte anos de sua morte. Um escritor que se exilara de sua terra natal, viveu grande parte de sua vida em uma remota ilha na Ásia. Escrevia apenas sobre o futuro, o passado servindo para mostrar as várias probabilidades dele. O presente ele vivia apenas para o mergulho e as crianças. Essa ilha e sua Grande Barreira de Coral davam-lhe beleza, o mar tirava-lhe a força da gravidade e ele flutuava, olhava as semelhanças, as diferenças, no silêncio absoluto das eras anteriores ao próprio homem. Via e compreendia como funcionava a natureza, sem intermediários. Acreditava que o mar e o espaço se confundiam. Costumava dizer que deveríamos não acrescentar anos na vida humana, mas, vidas nos anos que faltavam. Nós já vivíamos o suficiente.

Nesta noite sonhou com corais, cores, profundezas, azuis. No dia seguinte, ao se aproximar do trabalho, deu uma esmola a um velho, e ouviu a pergunta: “O senhor é inglês ou americano?” “Por que?” ”É o seu paletó.”

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Dança Ritual Urbana, III








Wabi Sabi, terceiro movimento

Ezê descobriu na dança a maneira mais sutil e eficiente para compartilhar sentimentos. O gesto trai menos que a palavra: vago, mas definitivo, aberto para a interpretação de que você precisar. Após assistir ao espetáculo, saía flutuando, esperando encontrar os seus amores e lhes contar.
Acabara de ver Susana Yamauchi no teatro da Dança e saiu dali, ainda sobre as nuvens, andando, pela avenida São Luís:

“Ao nascer, ele entra no reino dos sonhos apenas para despertar para a realidade na morte. Tempera o próprio brilho de modo a se fundir na obscuridade alheia. Ele “reluta como quem cruza um riacho no inverno; hesita como quem teme a vizinhança; é respeitoso como um convidado; trêmulo como gelo prestes a derreter; despretensioso como um pedaço de madeira por entalhar; vazio como um vale; disforme como águas revoltas”. Para ele, as três jóias da vida são piedade, parcimônia e modéstia. Kakuzo OKakura”

(...os tempos que correm ensinam a mirar o próximo. Jamais temos tempo ou disposição para mirar a nós próprios. Perdemos a capacidade de nos extasiarmos com os nossos sentidos. Capacidade despertada em mim ao ver centenas de pétalas vermelhas derrubadas no palco, caídas da cerejeira da minha mente. A imagem do outono veio súbita. Surgiu a chegada do inverno através da mudança da luz, tornando o vermelho em prata, algo imperceptível, mas revelador. Lembrei de hoje pela manhã, ao sair de casa, daquela árvore tomada pelo mesmo tom de vermelho. A árvore me acudiu como amiga, explicando o wabi-sabi. Mas essas reminiscências não estavam solitárias. Incluiu as mãos e os gestos da artista e a complexa interação da permanência e da impermanência tornando-a dramática pela súbita transformação de um corpo em dois. Sobre os ombros, as máscaras ocupando um só corpo, todo feito de frente, sem as costas. Um de face alva, outro de face rubra, nos confundindo, fazendo-nos esquecer o eu, e se comportavam de forma a indagar em qual rosto deveríamos nos reconhecer. Talvez fossem a mesma pessoa, segundo a tradição do Noh. O monge de face bárbara indicando um roteiro para a imóvel, branca face do ser.
Do palco, esvaía uma névoa, nos convidando para um mergulho naquela água em partículas, e mergulhados observaríamos. Os elementos naturais do vento feito gestos me estremeciam, como se eu estivesse sendo golpeado. O frio, a caçada aos animais, o rio, todos mostrados com brevidade e leveza, entremeados com a cerimônia do chá. O rico quimono branco ritual, deixando à mostra as mangas, davam um tom erótico ao movimento, os cabelos que jamais foram cortados da cortesã, enfeixados por uma faixa vermelha, sinais que viajaram através de mil anos e me transportaram ao período Heian, ao tempo em que se respondia uma poesia com outra completando e ampliando o seu significado, ao tempo em que não se olhava nos olhos de ninguém do sexo oposto, e as mulheres estavam protegidas pelos pequenos biombos. O suave movimento das mãos mostrava como se raspava a pedra de chá. Tudo preparando o espírito, para a culminância do ato de amor, praticado com ductilidade, centenas de vezes, com uma harmonia e um senso do frágil que eu pensava perdida para sempre. Relegada ao código genético do Dodô, e ela ressurgiu no palco, com um entrelaçar de mãos que jamais esquecerei. Um traje negro poderia ser o fim trágico daquela história, mas isso não importa. Eu passeei por todas as sensações inexploradas, percebi apenas esquecidas. Elas me revelaram. Para se entrar no recinto onde o chá é preparado, toma-se um caminho levemente tortuoso, preparando o espírito. A roupa flamejante de preto e vermelho, me alertou, durante a cerimônia, para que eu me preparasse para ver. A impermanência que torna tudo mais belo. Fugidio. Sei. Não consegui compreender tudo, mas sei também que consegui saber mais de mim do que em muitas e muitas leituras. Onde o nada me tocou, marcou.).

A avenida está deserta. Ando com um pé na calçada, outro no leito, para meditar.

Nono dia do mês de Av, finale

David caminhava pela Avenida São Luis, próximo ao teatro. Passou por um bar e ouviu:

Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir prá não chorar
Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir prá não chorar...

Chegou ao máximo do desprezo por si mesmo. Acarinhava a arma a todo instante, como se estivesse testando a possibilidade dela também o abandonar. Queria encontrar algum caminhante solitário. Precisava dar fim àquele sofrimento. Sempre achou o samba um tédio, aquela poesia daquela música, chamou sua atenção agarrando seu casaco como se tivesse braços.