terça-feira, 19 de abril de 2011

Era da Pedra



Tenho a impressão de que, caso fosse possível aceitar a existência tal como ela é, participar dela com plenitude, o mundo se tornaria mágico. O grilo em minha sacada, no momento espetando a noite repetidamente com suas afiadas agulhas de som, seria bem vindo apenas por estar ali, e não uma fonte de aborrecimento por me distrair do que tento fazer. Paul Bowles.


Ele andava sob o sol do meio-dia, abrasador em pleno inverno. A região era desértica, varrida por lufadas de vento quente com odores indistintos, ventos que arrastavam, afastavam e encaminhavam as pessoas contra a vontade. Ventos dominantes. Talvez por não encontrarem obstáculos. Estacionamento vazio, de solo cinza granulado, todo rabiscado por uma infinidade de espinhas amarelas de peixes, separados em intervalos regulares pelos fios buscando o céu, os postes de luz. Aquele aquário árido se iluminava ao anoitecer, formando cones enevoados, iluminando ponto a ponto a fria escuridão, alimentando cada uma daquelas costelas.  O contraste da temperatura dos ventos, diurnos e noturnos, agradava as pessoas pela previsibilidade que ofereciam.  Um exemplo da aragem entre o sim e o não. Os autos deveriam oferecer a carne, a cor, vida, ao preencher aqueles espaços entre as vértebras, mas só havia um: o carro vermelho que ele abandonara há pouco. O latido de um cão ou o cantar de um pássaro foram substituídos pelo rascar rouco e monótono do vento na concha da orelha, apressando sua busca por abrigo: uma corrida até o prédio do centro comercial. À esquerda, os cinemas múltiplos. Carpetes, vidros, separadores com fitas para filas e imensos sacos de pipocas formavam uma pirâmide de mel, manteiga, milho e sal. À direita, um espaço com brinquedos para crianças, de cores e formas variadas. Ele pegou a alameda central, ladeada por vitrines de lojas, encaminhando-se para a área de alimentação. O ar inodoro, não havia o ruído do ar condicionado. A perspectiva da visão dali até o final do corredor não era atrapalhada pelo movimento das pessoas, e sim pelos vários acidentes geográficos colocados em cada esquina. Ele ouviu o som dos próprios passos. No primeiro cruzamento, encontrou um balcão redondo de informações; no segundo, um painel com um mapa de orientação e vários bancos de madeira. Leu a indicação dos sanitários. Pegou outro corredor estreito, encaminhou-se até o final, fez um grande esforço para abrir a porta que teimava em se manter fechada Ele pensou: deve ser problema da mola, muito nova, ainda não se ajustou. No terceiro, um elevador panorâmico estava estacionado com as portas abertas ao lado de um viveiro com carpas. Ele gostava de se aproximar da beira d’água e saborear a aproximação dos peixes, Os animais sabem que serão alimentados, apesar da proibição de costume; mas isso não aconteceu. Pela primeira vez, percebeu que estava sozinho. Não havia ninguém por ali além da mulher e da cunhada. Primeiro imaginou, equivocadamente, que todos já haviam se encaminhado para o almoço. Depois, a sensação de mistério, do ignorado, que vinha daquele lugar vazio, aumentou proporcionalmente ao som dos seus passos. Cada um deles martelava a sua cabeça. Olhou em torno. Um caminhante solitário passou ao seu lado. Logo mais, outro. E foi só. Finalmente, encontraram a praça de alimentação, entraram no primeiro restaurante italiano que encontraram. Lendo o cardápio e os preços, descobriram uma enorme variedade de pizzas. Ele odiava pizza, mas não importava. Encostaram no caixa para fazer o pagamento. Ninguém. Aguardaram um pouco. Os três discutiam entre si. Foi acusado por sua falta de planejamento. De fazer as coisas ao léu. Você é um perdido, disse a mulher. Apareceu uma senhora falando espanhol, de uniforme, com um esfregão na mão. Avisou que chamaria alguém.  Acho que não é uma boa solução, comer em um lugar deserto, a comida deve ser dormida e preparada em micro-ondas, e sabe-se lá desde quando a massa está descansando, esperando a gente, disse a mulher. A cunhada também se voltou contra ele, embora com algum recato.

Pressionado, ele decidiu sair dali. Adotou uma direção segura: o centro da cidade. Não havia erro. Cairiam nos braços da multidão. Foram parar em Little Saigon. Uma rua apinhada de gente. Orientais, baixinhos e sorridentes. Pensa no que o seu amigo oriental dissera, que o sorriso deles é uma reação automática do rosto diante de algo embaraçoso. Como uma expressão facial pode representar algo tão diferente? Ele era um viajante, gostava de saber dos costumes estrangeiros, admirava o caminho que o pensamento do homem fazia para resolver os mesmos problemas. O fim era o mesmo, os meios são infinitos. Alimentar-se, por exemplo. Como criticar alguém que come ou deixa de comer determinado alimento? Cada pessoa tem alternativas limitadas e escolhe apenas entre as disponíveis. Por que censurá-las? Viajar é a escola para compreender o homem. Ao ver e refletir sobre os costumes alheios, abrigamos aquele estrangeiro dentro do nosso corpo por algum tempo, abandonamos a recusa violenta do juízo comum. Ele não contava todos os seus sonhos, não queria aborrecer as pessoas. Imaginava que a maioria delas eram turistas ou pessoas de negócios que passeavam pelo mundo quando estavam em férias. Elas apenas descansam os olhos em outras paisagens, não se interessam em compreender outros costumes, apenas querem ver novidades, sem risco algum. Acumulam lugares. Eu fiz a Hungria, a Áustria, a Romênia e a Bulgária, em dez dias. Elas estão doentes pelo progresso e orgulhosas de suas posições, não querem riscos. Ele aprendeu isso na prática, desde a sua primeira viagem acompanhada. Como antídoto, adorava levar crianças, seus sobrinhos, nas viagens. Crianças são corajosas.

Naquele bairro, as ruas eram mais estreitas, ou o número de pessoas era muito grande, ele não conseguia saber ao certo. O horizonte era feito de edifícios e antenas, os anúncios de neon berravam pela sua visão; o vento, encanado, passava por sobre as cabeças e, quando cessava, o aroma predominante era o de alimentos sendo preparados. Picante e exótico. Ele observou por algum tempo as letras vietnamitas: são latinas, algumas com sinais acima, uns poucos abaixo, anunciando uma dicção particular e lembrando um passado menos remoto. Uma recordação agradável.  As do alfabeto cambojano e do siamês têm uma grafia muito simétrica e parecem originárias da Índia. Os sinais, entretanto, começam a se arrojar e adquirir uma vida autônoma. No khmer, os sinais têm um ligeiro sobressalto, um primeiro sinal de loucura, mas ainda respeitam a pureza das letras guardando uma distância crítica. Ele parou, tirou uma foto para apreciar a beleza gráfica entre as letras e os diacríticos. O próximo letreiro ele reconheceu como do Sião. As linhas, tão belas, começam a dar adeus à tipografia. Os diacríticos penetram as letras, não guardam mais distância, nem compostura. A escrita é quase alegórica. Eles sugerem que foi na Cochinchina que a imagem se desfez em letras. Ou foi na China que os sinais se transformaram em imagens? Ou nenhuma dessas opções?


As mulheres encontraram um lugar para comer. Um ambiente quadrado com mesas retangulares cobertas com plástico branco e um losango de pano vermelho fazendo o papel de toalha. Pediram o cardápio em inglês. Enquanto ele escolhia Miojo com formigas vermelhas, elas tentavam conversar com a garçonete, pedindo explicações a respeito dos pratos. É muito apimentado? Não é cachorro, né? Macarrão de arroz? Broto do quê? A mesa ao lado chamou a atenção de todos. Nela estavam sentados oito homens, trajando bermudas, camisetas e tênis, ocidentais, e de cabelo cortado à escovinha. Um deles fazia o papel de mensageiro entre o cardápio na mão da moça e a mesa. A garçonete não se aproximava. Descrevia o conteúdo para o rapaz e ele anotava o pedido dos demais. A nora, nascida em Taiwan, ouviu a conversa de outra mesa próxima: tratava-se de um veterano psicótico, que desde a baixa no exército procurava se habituar à presença de chinas. A presença de um deles, muito perto, avançando sobre sua rota de fuga, era o suficiente para desequilibrá-lo, Ele fazia o tratamento por aproximações sucessivas há muito tempo, para suportar a presença deles sem o perigo de uma explosão de raiva descontrolada. Seus companheiros o ajudavam no processo. Eles faziam do almoço um teste, e da presença estrangeira um sensor de explosão de mina. As mulheres resolveram se retirar do local, sem almoçar.     

หากสิ่งที่ไม่สามารถเอาได้ตอนนี้ ... มันไม่ใช่เหตุผลที่จะไม่ต้องการให้พวกเขา เศร้าที่ถนนก็ไม่ได้รับการแสดงตนของดาวที่ห่างไกล

Ganharam a rua novamente. Ainda indecisos, tomaram a decisão de seguir à esquerda, na direção do local onde estava o carro estacionado. Almoçariam no primeiro lugar que encontrassem. Uns poucos metros adiante, finalmente encontraram um prédio ocupando uma grande frente. Convidativo. Térreo, sem varanda ou degraus, dividido em quatro portas, altas, pintadas há muito tempo em vermelho, cada uma com duas bandeiras, a de cima com persianas, e a de baixo repleta de ideogramas chineses pintados em dourado. No topo do prédio, dois luminosos em vietnamita, fundo branco e letras azuis. Magotes de pessoa entravam com um andar calmo. Elas resolveram fazer o mesmo, e ele as acompanhou. Todos silenciosos, encaminharam-se para o fundo, para encontrar o esperado salão das refeições. Dos fundos, saiu um rapaz, sem barba, e de cabeça raspada, fita atravessada no peito, sobre o manto pregueado e ensolarado, um par de óculos desproporcionalmente grandes, um ideograma perfeito para magérrimo. E se ouviu um diálogo em mandarim, depois resumido em uma frase, assim: Sejam bem-vindos ao nosso monastério. Temos apenas pão para o espírito.

O marido ficou constrangido pelo equívoco. Depois de sair, rapidamente deflagrou-se uma discussão áspera, iniciada pela mulher, acusando-o  pela manhã desastrosa.  Ele se defendeu dos golpes, chamando-a de analfabeta, que não sabia ler o seu próprio idioma natal. Foram chamados à realidade pela cunhada, mostrando o carro deles sendo arrombado e ocupado por um estranho, enquanto abria a porta, em segundos, olhava para os lados. Corre lá, prenda o cara, rápido, disse ela. Deixe que ele faça o seu trabalho. Vou ligar para o seguro, ele respondeu.

...太多了頭部和崇高的理想,她反映,而沒有足夠的心...保羅鮑爾斯

Estava paralisado pela dor do arrependimento. Profundo, largo, revolvido em bile negra. Ele era a etapa final de um ritual repetido há tempos. Ritual que o tirava completamente da razão e da civilidade, arrancados de si os sentidos educados. Estes, que entravam na arena, não tinham controle, desfigurados, aleijões contendo só impulsos. Produziam efeitos de corte de lâminas compradas em supermercados no caixa da saída. O corpo era todo autômato, comandado por um ignorado centro nervoso, esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma. Apesar de abominar a violência, ele a utilizou e vibrou. Ofegante, rápido como o movimento do fumante ao jogar fora o palito de fósforo depois de acender seu cigarro, e queimar com ele a pele do outro. Naturalmente. Banal como o cheiro pairado do enxofre. Indagou a razão de só perceber depois esse apocalipse. Será que a raiva estava tão entranhada nele que não conseguia dominá-la? Eliminá-la? Ela saltava de uma fissura, até então invisível, na parede, feito uma serpente, e dava o bote? Haveria muitas? Talvez algum dia conseguisse perceber durante o conflito. Ou será que o seu aquífero fora contaminado? Seria possível ele perceber antes de entrar no clima de pau mandado? Estaria condenado às emoções que se afastam, apenas boiando e agindo as marrentas, emulsionadas por sulfúricos e ácidos infernais, até que se destruísse o inimigo? Seja filho, seja pai, irmão, mulher ou alguém? Enfim, não seria cortar os pelos e tampouco aparar os cabelos que o tornaria humano. O que o faria humano seria abominar todas as formas de violência. Equilibrar-se. Voltar a ser uma névoa. Hoje, tornou-se uma pedra atirada à luz, em busca da escuridão que está além dela, como o instinto fez com a mariposa.