terça-feira, 4 de maio de 2010

Rachel




 


Alguns dias depois, levei o Mantis Carolina a um amigo que vinha mantendo uma fêmea solitária como mascote. Quando colocados no mesmo ambiente, o macho, alarmado, procurou escapar. Em poucos minutos, a fêmea conseguiu agarrá-lo. Primeiro, ela devorou-lhe a tíbia e o fêmur. Em seguida, roeu-lhe o olho esquerdo. Só então o macho pareceu dar-se conta da proximidade de um indivíduo do sexo oposto e pôs-se a fazer vãs tentativas de acasalamento. Em seguida, a fêmea comeu-lhe a perna dianteira direita, decapitou-o, devorando-lhe a cabeça. Só parou para descansar depois de ter comido todo o tórax do macho, exceto um bocado. Durante todo esse tempo, o macho persistira em suas frenéticas e vãs tentativas de ganhar acesso ao duto da fêmea, o que conseguiu apenas quando ela, voluntariamente, se posicionou por sobre ele, ocorrendo então a união. Sobreveio uma paz magnânima; ela, permanecendo quieta durante horas. Já os restos do macho não só apresentaram sinais de vida, mas intenso na corte e vorazes na cópula, durante três horas.  Na manhã seguinte, ela se livrara completamente do cônjuge, e nada havia restado dele, além de suas asas.
João Siqueira foi, durante toda a viagem, o alvo das atenções. Conduzia o maior rebanho do País. De origem humilde, sempre serviu aos poderosos, até que batesse e ultrapassasse o limite de sua dignidade. Perdeu pouco tempo na escola, ao perceber tratar-se de pura perda de tempo, apenas bobagens. Cabulava as aulas e vendia jornais. Comprou uma árvore genealógica que lhe deu nobreza de origem, e acrescentou o holandês ‘Van Der Ley’ ao nome. Homem de uma monocórdia obsessão: colecionar dinheiro. Gosta de comer da picanha só a gordura. E de subir as escadarias de toda Igreja que encontra. Sabe tudo a respeito da carne. Desde o preço, em todos os mercados, à qualidade. A melhor origem e o destino mais lucrativo. Tratava as mulheres com brutalidade e charme, jamais se deixou vencer por uma delas, incluindo a comissária. Para esse passeio, escolheu uma atriz iniciante: Scarlet Starlet. Estava disposto a investir na carreira dela (cheirava, de longe, a bom investimento).  Alta, sueca, cabelos louros nuançados, de seios majestosos e sem aquela bunda chata; estava fadada ao sucesso; adaptada aos dois hemisférios, sabia representar como ninguém.
 “Escolho as minhas namoradas pelo som que emitem durante o sexo. Não tolero mulher silenciosa. Silêncio só de dia, e quando eu falo. De noite, quero ouvir gemidos, gritos, soluços, ou prantos. Há de haver intensidade, loucura, incentivo. Minhas transas e casos são rápidos e famosos. Mulheres, só as de espírito livre, com disposição para serem amarradas, conquistadas, sujeitadas. Dando e recebendo muita dor e muito prazer. Nunca mais quero sexo-baunilha. Chega do tradicional. Exploro o último limite da dor salvadora, aquela que conduz ao orgasmo infinito. Estase. Meu amigo morreu, enquanto se masturbava. Sem ar, sufocado pelos cordões da cortina, num hotel ("Hey, don't knock: masturbation. It's sex with someone I love.") de Jacarta. Ele só escolheu aquele lugar porque lá a pena pela prática é a decapitação.”
O interior foi decorado de maneira a se parecer com uma tenda árabe, com vários ambientes: refeições, anfiteatro e espaço de estar, forrados com tapetes de seda originários das aldeias da Pérsia. A atração é um Ardabil com motivos florais, trevos nos cantos e medalhão de centro, lembrando a mesquita das mulheres (Xeique Lotf Allah) de Isfahan. A sensual escala das cores, desde o original vermelho profundo passando pelo ouro velho e fosco, salpicados de azuis e verdes, preparava para o branco do fim. O desenho do mestre parecia retratar sensações hoje perdidas.
Eu? Eu faço parte da tripulação. Vestido de branco, exceto pelo azul da gravata, em traje de marinheiro, anos trinta (Ginger Rogers & Fred Astaire), calça boca de sino e boina canoa. Trabalhava como dublê, antes de ser contratado. Saltar de um penhasco de trinta e cinco metros até encontrar a água? Pilotar uma Ferrari a duzentos quilômetros por hora e provocar uma explosão? Voar baixo em uma lancha nos canais de Veneza? Pular da barriga do avião? Era o que eu fazia. As mulheres sejam as do elenco ou as curiosas, me adoravam. Vivia rodeado delas. Também escrevo, mas escritor de gaveta. Sou uma pessoa maleável, gosto de ser gentil e agradar aos outros, e sei escutar e impedir meus ímpetos violentos e cruéis. Contrariar uma criança? Jamais.  Devo a minha vaga ao meu diálogo. A capacidade de encontrar palavras harmoniosas, dando um efeito estético a qualquer papo.
Viajar em um zepelim foi idéia da agência de propaganda. Despertar o interesse ao longo das cidades visitadas. Atrair a curiosidade pelo novo lançamento da Kiboi S.A. Um filé de gado negro asiático, para o qual o Japão, através de pesquisas genéticas e cruzamentos planejados, produziu a raça perfeita para o consumo. Alcançou  o máximo em maciez, sabor e preço. Eu fui o encarregado de revisar e preparar o texto de divulgação do produto. De uma forma clara e persuasiva.
O homem levou consigo o gado caminhando para onde nasce o sol, atravessou desertos e um último braço de mar, até chegar a uma ilha em forma de adaga. Lá, plantou arroz para matar a fome e considerou o animal que o auxiliava como parte da família. Em respeito ao Buda, proibiu o consumo da carne dos que tivessem longas pernas. Muitas guerras se travaram até a era Meiji. Quando o próprio imperador posou comendo carne, aconselhado pelos ilustres visitantes, em seus uniformes brancos de galões dourados, vindos do oeste distante. E os japoneses adquiriram esse hábito. O gado passou da tração à carne. E, para tanto, engendraram a raça perfeita para o consumo. O tratamento foi ainda melhor: acupuntura, massagem, maçãs, cerveja e grãos empapados em saquê. A cerveja é a responsável pelos veios brancos no rosa da carne, e também pela população saudável de germes no rume. Não faz esforço desmedido, caminha pelas fazendas familiares onde ainda é criado. Tem físico saudável. Não se distingue a gordura da fibra. Elas estão entrelaçadas. Imagem bela como o mármore. Mundos de prata e mundos de ouro rubro. Uma faz parte da outra. Não se separam mais. Graças ao azeite natural. O primeiro a experimentar o sabor, gostou; jamais se esqueceu, entregou tudo o que tinha para repetir a sensação. Seu sabor é comparável ao “foie gras”; ao mesmo pecado sem nenhuma culpa. Provou desde o sopro vital até o ápice do prazer para os sentidos, com um só bocado. O volátil desapareceu e se transformou na matéria, em carne. Loucura, belos gestos, egoísmo, traição, beleza e altruísmo, gordura, músculos. Graças a ela, construiu-se o Taj Mahal.
 “Seu texto se inicia na página quinhentos de um livro ignorado e termina lá pela página duzentos de outro. É impossível acompanhar ou entender. Um murmúrio igual, monótono. Dá o prazer existente no espetar o pé de uma criança na imbuia do piso e exigir que fique girando incessantemente. Não quero saber a verdade do mundo. Aquele que está cem por cento certo é o maior canalha que pode existir. Você me descreve como se eu fosse um filhodaputa. Não quero seus fatos, sua ironia, quero só ouvir o som da minha própria voz. O fato é o lucro. Essa é a minha lei. E com você eu perco. Encontrei, em Paris, um escritor de sucesso. Ele, sim, é autor que vende livros. Autor que elogia e é elogiado. Não apenas um conversa-mole. Naquele renasceu o espírito daquele que escreveu as aventuras de James Bond.”
O dublê é bom de cama. É o meu gesto para fazer ciúmes ao João, e me aliviar. Além disso, ele é carinhoso e cuidadoso. Permanecemos horas brincando, ele parece ser inesgotável. Dá para saber algo de marionete, distante, depois de algum tempo. Vive  com a cabeça no ar. Ontem, ele me convenceu a apimentarmos a relação, e pediu que usasse roupa de couro e portasse um chicote. Em seguida, tentou me submeter com violência. Fiquei machucada, frustrada e ofendida.

Todo o evento foi um sucesso. Cozinheiros, jornalistas, socialites, todos aprovaram o produto. Aquele cetáceo de prata, sua sombra-ilha projetada no solo, foi o centro das atenções. A Lina prestou queixa contra mim, por agressão. E acionou o João pedindo perdas e danos. Scarlet foi contratada por um grande estúdio. Aluguei (parcos euros mensais) um quarto no apartamento do Sr. Colomb, na Rua Simon-Grubelier, e o ajudo na edição de seus almanaques. O próximo será destinado ao cruzadismo em Latim.




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13 comentários:

  1. Uma viagem enciclopédica.
    Uma viagem inesquecivel; um talento especial, o seu.
    Luiz Ramos

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  2. Reflexão sobre todas as coisas, as naturais e as não-naturais, frutos da voracidade com que se as quer, no gosto, no tato, no trato, numa re-engenharia (genética) sem limites. E há ainda a anorexia - não é o caso da engenhosidade com que escreves.
    Parabéns amigo.
    Beijos

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  3. Djabal,

    Que viagem alucinante!

    Interessantíssimo esse texto.

    Parabéns!

    Beijos.

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  4. Olá Djabal, desembarquei dessa interessante e movimentada viagem, nesse momento, e não estou sofrendo os efeitos do "Mal de debarquemént”. [rs]
    Alguns de seus personagens são ecléticos, não é Djabal? Ora tiranos, ora super liberais.[rs]
    Você não existe!!! Que imaginação, que talento!!! Benza Deus!!
    Bravooooo !!!
    Beijos

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  5. Djabal,

    para se compensar do ritmo estonteante das imagens, sempre imprevisíveis, como se a cada passo dobrássemos a esquina de uma avenida como quem chega ao fim da estante de uma biblioteca campal e começa de percorrer interminavelmente os meandros do conhecimento, o seu texto exige que se releia e se organize um mapa.
    Excelente, como nos habituou.
    Abraço

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  6. Obrigada por sua agradável visita ao meu blog e comentário.
    Beijos de flor pra ti.

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  7. Salve amigo Djabal!
    Uau!! que calor meu deu esse seu texto. Libido e imaginação a flor da pele.
    E adorei a começar a ler o texto com um "Bem-vinos à Rachel"... hehehe

    Parabéns pelo talento!
    Besosssss
    Quel

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  8. Foi alucinante e estou...alucinada!!Mal dobro a esquina...e já estou noutro mundo...passo do boémio para os que se entregam intensa e generosamente á vida, para os infinitamente com graça, encanto e rasgos de coração, para os dotados de um espírito livre, disponível, confiante e tolerante e acabo no autor de todos estes mundos como uma alma que brilha como as estrelas na noite e que fêz um pacto com a imaginação que ouve o desabafo de todas as suas palavras...E eu...estou sem Fôlego!!!!

    Beijocas
    Graça

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  9. Olá Djabal
    Estou registrando minha passagem por aqui para copiar os textos e assim que puder, comentar.
    Um abraço

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  10. Que acasa-lamento! Tive o já esperado prazer de ler mais este post seu, como sempre muito bem escrito.
    Abraço, Djabal

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  11. "Nem só de pão, carne e líquidos, (coisas materias) vive o humano. Ele precisa ainda da linguagem para,(nesse caso a escrita como arte literária) em expressando, simbolizando digerir, metabolizar, entender qual o sentido e o significante de cada coisa que gera movimento.
    Mais um eclético texto bem escrito, para o deleite de seus leitores. Parabéns
    Beijos

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  12. Por muito menos (talento, erudição e jogo de cintura), embora também interessante, fragmentário como esse seu texto, o Pedro Maciel lançou um livro, "Como deixei de ser Deus" (estou lendo-o agorinha) com orelha do Veríssimo, do Antonio Cícero e do Scliar, que está sendo incensado pela mídia: você não se habilita?
    Aquele abraço!

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  13. Um bom fim de semana com muito sol...gostosinho... e muitas histórias deliciosas...(fico á espera)
    Beijão
    Graça

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