A Guy de Maupassant
- Casou? Como assim?
- Casando. Casando como você nunca imaginou fazer, como você jamais ponderou propor; casando com alguém que me dá segurança, certeza, direção, ritmo e carinho.
- Por que você não me falou antes?
- Porque você não se interessou por nada que ocorreu comigo, desatou a falar de você, dos seus projetos, da sua... sei lá o quê.
- O que ele faz?
- Eu realmente preciso ir. Você me telefona e conversaremos depois, amanhã, qualquer dia, qualquer hora.
Abriu a bolsa, pegou um pedaço de papel amarelo e rabiscou um número.
- Ligue neste número.
(O meu amigo Marcelo sabe o quanto eu gosto de música. Eu e ele viajamos para Miami. Deixamos o hotel para descobrir qual seria a nossa cidade. Nos perdemos no bairro cubano, nas centenas de pontes e viadutos, até chegarmos à beira-mar. (Os mapas e as ruas são organizados pelos pontos cardeais, que desconhecemos.) Conseguimos um café, com sabor parecido ao do brasileiro. Andando ao acaso, demos de cara com uma loja com raridades musicais. Eu não conseguia me concentrar em nada. Continuava caminhando por dentro do lugar como se estivesse olhando para o mar, mas com estantes e corredores. Voltei ao mundo quando ele esbarrou em mim, acenando com uma caixa de nove horas de música do meu autor predileto. Olha o que eu achei. Olhei para um objeto distante e colorido se rebolando. Não me apetecia sequer pegá-lo. É o único exemplar, você não quer? Não, Má, obrigado, não quero. O preço é muito barato. No Brasil, você não vai achar. É exemplar de colecionador. Obrigado mesmo. Não quero. Já que é assim. Se você não se importa, vou comprar, tá? E saiu em direção ao caixa. Ao segundo passo, soou um gongo na minha cabeça. Ele vai comprar. Vai ficar nas coisas dele. Acenei com a mão, emiti um som qualquer, corri atrás dele e disse: Má, obrigado, mudei de idéia, tudo bem? Pego a caixa. O pacote está em casa, sem abrir.)
Dormi.
Perdi o interesse pelo que acontece entre os crepúsculos. Depois de três deles, encontrei a disposição para ligar. Ela pediu que fosse buscá-la na agência. Trabalha como diretora de criação em uma agência de publicidade. Estou trabalhando feito louca. Estamos em processo de fusão com uma empresa líder. Loucura geral. Ela sempre foi uma mulher bonita. Agora, mais segura de si, falava com uma entonação diferente. Como se eu fosse um cliente. Sei lá. Vestida com apuro, cobria, com o casaco, o busto e o colo, e as coxas com a saia justa. Deixava de fora pernas, mãos e cabeça. Os pés enfeitados com um sapato de salto finíssimo e uma abertura minúscula para os dedos. Os da mão vestidos com jóias disparando invejas eternas nos olhos femininos. Ela me alertou de que precisaria entregar uma peça em um cliente e depois me convidou para sentarmos em um café.
Na mais movimentada avenida da cidade, encontramos uma ilha do café. Refizemos o passeio do café pelo mundo, desde a Etiópia até o Brasil. Lembramos dele nas moças, rapazes, móveis, em todos os utensílios, exceto nas xícaras, imaculadas, quentes e brancas. Escolhemos, encostei o punho no queixo e ouvi:
Encontrei uma mulher muito diferente das que já conheci. Alguém que trabalha com projetos inteiramente pessoais, independente, faz questão de não revelar nada da sua vida. É um ser humano do sexo feminino, com educação, bom gosto e maluca. Começou a carreira participando de um Big Brother. Montou um personagem adequado às necessidades do programa, passou por todos os testes e foi selecionada. Mesmo sendo eliminada na finalíssima, iniciou sua trajetória. Queria conhecer e fazer amizade com as pessoas do meio, tornar-se uma pessoa conhecida da sociedade em geral. Vender a sua imagem de mulher provocante, filha de imigrantes, ingênua, burra e meiga, entusiasmada como um animal de estimação, intensamente livre e completamente despida de roupas e preconceitos. Ela liberou um vídeo em que aparecia no banco de trás de um Bentley com seu namorado (cantor famoso) e a mostrava num flagrante de um momento íntimo; formando um aro rosado e fulgurante de gliter com a boca, e ele despido da cintura para baixo, e de olhos fechados. E a cena se fecha com um rápido enrugar dos lábios se fechando firmes até formar um beijo para o espectador.
Passei a conhecer as festas de que ela participava. Como ela se comportava. Uma mulher inteiramente submissa aos desejos masculinos. Não sabia oferecer resistência alguma. Aparecia como uma pancada de chuva fresca em um deserto. Percorria todo o ambiente em conversas com os mais diversos tipos de homens. Sempre solícita e atenciosa. Provocante. Ela tem um poder impressionante de ouvir e compreender. Sugerir exatamente o que o interlocutor precisa ouvir. Como se saísse dele o pedido para ela usar aquelas palavras. De concordância, encorajamento e incentivo. Quando a atraída na armadilha era uma mulher, o comportamento era outro. Inofensivo. Uma verdadeira parceira. Que consegue conversar sobre diversos assuntos e interesses, com uma velocidade extraordinária, não oferecendo nenhuma ameaça, apenas mostrando ser outra vítima da tortura que os machos oferecem com a sua indiferença, lirismo, contradições, ausências e abandonos. E, automaticamente, voltava a chover naquelas hortas descuidadas, cheias de ervas daninhas.
Fiquei inteiramente apaixonada por aquele ser. Aprendia o desembaraçar de situações conflituosas, o início, o desenvolvimento e o fim das relações entre as pessoas. Quais são as nossas necessidades. Os significados dos nossos gestos, dos nossos trajes, o que revelava a pele, descoberta ou coberta, de determinada parte do corpo. O significado de uma jóia. Do cabelo, penteado ou despenteado. Curto ou longo. Eu me senti como se fosse, no aquário, um peixe, e fora dele um instrutor. Depois do meu aprendizado, fui apresentada às outras integrantes do clube de amigas. Nada ali era casual. Eu era participante de um projeto dela. Ela me escolheu. Ela escolhia as festas. As recepções e ocasiões em que estaria presente. Ela era o imã. E nós replicávamos o conhecimento aprendido. Éramos seus fenótipos. Ela nos contava a história do pássaro. Como um operário com poucas ferramentas. Não tem a mão do esquilo, nem o dente do castor. O corpo do pássaro é sua ferramenta, é com o peito que ele aperta e comprime os materiais, até torná-los dóceis e sujeitá-los à obra em geral. Nós éramos seus pássaros.
A primeira festa de que participei foi inesquecível. O lançamento mundial de um produto, no Teatro Municipal. Vestimos-nos de forma parecida. Cada uma de nós recebeu uma limusine com motorista e ficávamos aguardando o seu chamado. Ela chegou com o atraso indicado para estas ocasiões. E circulava pelos salões, conversando ora com um, ora com outra. Até encontrar a pessoa indicada. Alguém que a desejava, alguém desiludido, alguém precisando de amor. Aproveitava o momento ou a oportunidade para dizer confidências, ousar comportamentos. Ela se afastava, procurava um lugar discreto ou não, conforme o caso, o assunto se apimentava, e as labaredas apareciam, os rostos se afogueavam, eletrificavam-se as mãos. Até o bater no último ponto suportável. Neste exato momento, ela sussurrava: “Encontro você dentro de quinze minutos, na porta lateral. Estarei em meu carro, no banco de trás, com a porta destrancada.” E se retirava.
Neste instante, ela me ligou, deu o horário, mandou que eu ficasse à espera. Eu instruía o motorista para arrancar tão logo entrasse a pessoa. Eu deveria estar chorando, com um lenço que cobrisse parte do meu rosto. Só depois de alguns instantes eu deveria me mostrar surpresa e aflita. Quando estivéssemos em movimento. Depois que minha cabeça estive repousando no seu ombro. Aos descerrar os olhos, mostrar meu momento de medo, surpresa e simpatia. Contar a minha desilusão. E, ao final das contas, foi ótimo um engano dessa natureza. O acaso nem sempre revela surpresas desagradáveis. Bem, o resto você já sabe, não?
- É uma mulher?
É uma mulher que não anda, flutua.
ResponderExcluirÉ, digamos. Muito bem escrito, fluente e envolvente.
ResponderExcluirDjabal, eu com a minha mania de cinema, li teu texto e criei e me lembrei de imagens de filmes que vi. Sua narrativa me levou para outros lugares, outras atmosferas, imagens, embora seja um texto com personalidade. Autoral, que (me) desperta o cinema, como sempre os melhores textos (me)proporcionam.
ResponderExcluirBelíssimo. E eu adoro a forma como você o encerra.
Lembrei da cena final de 500 dias com ela (aqui o texto da cena: http://www.facebook.com/?ref=logo#!/photo.php?pid=4325846&id=747573926) e a atmosfera e você menciona a palavra é do Ervas Damimhas do Alain Resnais, que eu já tentei fazer um texto sobre, mas ainda não consegui.
Abração
olá
ResponderExcluirgrato. quando você conseguir ler o livro por favor me escreva dizendo o que achou.
um grande abraço.
aguinaldo
guinamedici.blogspot.com
Claro,
ResponderExcluirme mande o teu endereço que eu coloco nos correios.
abraços
aguinaldo
amseverino.ufsm@gmail.com
Como eu dizia, a fila andou. E os detalhes não são importantes.Genero, raça, não importam.
ResponderExcluirImportante e o seu estilo, que prende o leitor.
Abraços
Luiz Ramos
Olá Djabal meu amigo! me permita expor aqui algumas conclusões muito pessoais, ela a vida certamente tem significado e sentidos diferentes à cada um de nós, porém tenho observado alguns pontos que nos permitem ver ou enxergar além do fato ou das palavras, em tuas decifro por conta e risco valores dos quais que alimento e vejo em oportunidades que estão além do que se pode ler, fico muito feliz em poder conviver com você e seus dizeres em sentidos que podem fugir aos mais desatentos, parabéns e obrigado pelo sempre carinho, atenção e competência.
ResponderExcluirAbraço grande e sucesso.
A sua narrativa é envolvente, enquanto lia imaginava as cenas, uma a uma. Como se eu estivesse participando do contexto.
ResponderExcluirBeijocas
"Aparecia como uma pancada de chuva fresca em um deserto."
ResponderExcluirAssim são os textos djabalianos! Dilúvios literários, na aridez dos dias!
1 Bj*
Luísa
Gostoso de ler...envolve. Muito legal!
ResponderExcluirDo amor sabe-se, existência
ResponderExcluirde suas nuances também,
mas Roma em sua aparência
dá-nos noção de sequência
e também das conseqüências
dos movimentos, essências
do que contém ilusão.
Salete Cardozo Cochinsky em 22 de 06 de 2010
Esse texto lembrou-me do texto O MAL-ESTAR NA CULTURA de Freud, o qual recomendo ler. Nesse texto Freud faz uma analogia entre a psiquê e Roma de seu tempo. Refere que para visualizar a psiquê, pode-se, pensar em Roma, cuja a atulidade de sua aparência sobrepunha-se a outros cenários de cidades antigas que foram sendo soterradas.
Sabemos que não é só Roma que é sempre renovada através de novas construções.
A sobreposição é uma realidade em vários sentidos e aspectos na vida do mundo, incluindo a vida do humano em sua singularidade.
Gostei do texto & FAÇO UMA OBSERVAÇÃO, O COMENTÁRIO ESCRITO NO TEXTO ANTERIOR, foi posto equivocado, pois referia-se a GERALDINOS. Acho que foi possível perceber.
Bom trabalho de elaboração literária.
Beijos
Djabal
ResponderExcluirVale sempre a pena fugir para ler Djabal Maat.
Parabéns!!
Rose
Progenitor de todos os casos, seria o acaso tanto bom quanto não, no ponto de vista de quem o vê, ou o se surpreende ao vê-lo, descerrando a casualidade e a causalidade.
ResponderExcluirCaro amigo, felicitações pela mestria. Beijão
Meu Amigo
ResponderExcluirDeixei aqui um comentário sobre o teu texto logo a seguir ao comentário do Eduardo Miguel...tenho a certeza! E agora não está... o que aconteceu??
É de doidos!!
Repito que gostei do que escreveste, do enredo das finalizações...e muito mais que escrevi e que ardeu como um balão de S.joão.
Beijo amigo
Graça
Gostei muito do modo como o diálogo marca o texto e o desdobra e lhe dá ritmo, numa dança envolvente entre o dito e o não-dito, jogo de sombra e luz (chiaro/escuro) que o diálogo mantêm num plano sempre tenso, sempre vivo.
ResponderExcluirgrato pela partilha
Lembrou-me "Coisas Secretas" do Brisseau.
ResponderExcluirObrigada vc pela companhia no corpestranho.
Um Beijo.
Olá amigo Djabal! Mais um sucesso,já esperado, sem dúvida alguma. Seu "Roma" é um rodopio de emoções e surpresas, tais quais a cidade do mesmo nome nos apresenta.
ResponderExcluirNão desgrudei o olho da telinha. Magistralmente elaborado.Parabéns!!!
Um beijo pra você.