sexta-feira, 27 de março de 2015

O silêncio bruscamente. *





Ar da fazenda lembra a saudade do abraço de um grande e lanudo pastor alemão preto e marrom. No campo reina o rústico, o tempo em que as coisas recém concebidas ainda não estavam (como o fio de lã) penteadas pelos hábitos do homem de esconder o disforme e o irregular. Desenhando e regulando linhas retas por todos os cantos; amaciando as rugores, enchendo os buracos com terra tirada das pequenas bossas. Ansiando pelo regular, ajoelhado ao deus que clama pelas rotinas das pequenas coisas. Orando os eufemismos como cobertores multicoloridos no lugar da língua franca, primitiva e sólida. Temendo o silêncio que é a teima deste tempo anterior.

O som de um sino batendo é o chamado do próprio vento e de ninguém mais, não há o ritmo do pulso, há uma vacuidade que se manifesta sem finalidade. A indústria, a certeza, está distante.

Vivemos em meio às cascas, colinas, degraus, cabras, madeiras, seriemas. Terra batida, grama, capim-gordura e pedra mineira todas próximas, rejuntadas ou amontoadas.

Só gigantes calçando sete-léguas conseguem caminhar sem tropeços. Troncos de madeira amarrados nivelam desníveis inacessíveis. Formam rampas para alpinistas da cidade plana. Surgem sorrisos envergonhados, toques de cotovelo, olhares medrosos e a deficiência se alarga, atinge a todos os seres medianos com seus defeitos a serem corrigidos.

 São tempos ancestrais que voltam às origens de tudo que nos cerca na cidade. O leite lembra vaca, não caixa. A amizade lembra o diálogo, não o medo da diferença. Lembra a delicadeza do Buda ao se desdobrar em dezenas para cada um usar os guarda-sóis oferecidos pelos trinta deuses. Mesmo sabendo da ruína futura, o lugar é apenas gente, não afasta nada, tampouco apressa pela violência ou falta de criatividade.

*P. Modiano

terça-feira, 10 de março de 2015

Atalaia

Atalaia

Defronto-me com um mirante. Feito de alvenaria, em formato de cubo, todo varado da luz atravessando suas vigias; sobre ele, um outro, menor, que oferece à vista para todo o vale que se espalha lá embaixo, manso e tocante. Se eu quiser alcançar as miradas, serão dois lances de degraus para vencer, íngremes, de madeira maciça, gasta pelo tempo e pela chuva, com dois pequenas patamares, um para cada "andar". Dizem que foi casa de pombos, sinal da boa fortuna, em tempos antigos.


O mirante é ocre e marrom, cor sobre cor, para oferecer pouco contraste aos olhos, como se o único objetivo fosse me chamar para ficar de atalaia, para tocaiar alguém que se aproxima da fazenda, ou para fazer linha de fuga no horizonte, distante e infinito, e mirar a própria memória ou imaginação.


Ele estava lá, olhando para mim. Sequer precisei do esforço da subida para compreender a causa de sua presença. E soube, por magia, ao perguntar a um hóspede o seu nome. Reconheci o sobrenome, e arrisquei, perguntando se ele conhecia o "seo" Oscar. Ele respondeu : “Conheço; é meu pai”. E a conversa enveredou para o meu passado mais remoto.


Das pessoas que, de maneira desconhecida, contribuíram para a formação do homem que sou hoje, um nome ou outro chama a minha atenção. E o nome do pai do meu interlocutor surgiu em outra conversa banal, de simples apresentação. Trocamos cartões de endereços, perguntamos o que cada um estudou, e ao dizer que fizera o curso noturno da minha faculdade, o sócio do Oscar, cujo nome esqueci, disse-me que aluno de curso noturno jamais teria sucesso na carreira, seria sempre ultrapassado pelos demais. "É impossível estudar, trabalhar e ser eficiente ao mesmo tempo."


Esses dizeres, vindos de um engenheiro mais velho e bem-sucedido, foram um míssil disparado bem no centro da cidadela chamada autoconfiança. Da mesma forma que, não me lembro se antes ou depois, ouvira de outra pessoa que a leitura de obras traduzidas é pura perda de tempo, pois você sempre se distanciará do autor.  Mais uma assertiva surgiu, enquanto estava de vigília, olhando para o velho pombal: a de que estudar em boas escolas era uma inutilidade para o ofício que exercia e que exerço até hoje. E ainda outra, do médico de laboratório de análises: “Como alguém que não é hígido das pernas pode ser corretor?”. Custei a compreender aquele pensamento; estava sendo ofendido pela sinceridade constrangedora e dura daquele homem. Confundi hígido com rígido. Finalmente, passeando pela memória no vale, veio a fala da primeira mulher “honesta” pela qual me apaixonei, assim: "Você nunca vai sair 'disso', dessa sua posição. E eu,  eu quero é mais. Você não me serve”. E bateu o telefone.


Toda essa artilharia foi aos poucos sendo expirada, ou não, e agora perdeu o significado e pouco me importa, tomando como base a minha própria vida, as escolhas que fiz, as circunstâncias que me cercaram e a teimosia burra e inata que habita o meu íntimo. Entretanto, a mirada fraterna do engenheiro Oscar fazendo pouco da afirmativa do seu, então, sócio, sem dizer nada, se condensou num bote redondo, vedado com alcatrão, do meu tamanho exato e  lançado na minha direção. Subi, desci o Tigre ou Eufrates, não sei ao certo, e cheguei aqui, diante do mirante. Ele, que sempre parecia muito sério, angustiado, tenso e nervoso, repentinamente abriu um sorriso aberto, mostrando os dentes ferozes, agora amigos dentes.

Além do gesto, a atalaia, o mirante e os pombos sugeriram que esconder a falha do outro é boa para si mesmo. Afinal,  como se faz para saber o que é falha, como compreender tudo e todos?