Atalaia
Defronto-me com um mirante. Feito de alvenaria, em formato de cubo, todo varado da luz atravessando suas vigias; sobre ele, um outro, menor, que oferece à vista para todo o vale que se espalha lá embaixo, manso e tocante. Se eu quiser alcançar as miradas, serão dois lances de degraus para vencer, íngremes, de madeira maciça, gasta pelo tempo e pela chuva, com dois pequenas patamares, um para cada "andar". Dizem que foi casa de pombos, sinal da boa fortuna, em tempos antigos.
O mirante é ocre e marrom, cor sobre cor, para oferecer pouco contraste aos olhos, como se o único objetivo fosse me chamar para ficar de atalaia, para tocaiar alguém que se aproxima da fazenda, ou para fazer linha de fuga no horizonte, distante e infinito, e mirar a própria memória ou imaginação.
Ele estava lá, olhando para mim. Sequer precisei do esforço da subida para compreender a causa de sua presença. E soube, por magia, ao perguntar a um hóspede o seu nome. Reconheci o sobrenome, e arrisquei, perguntando se ele conhecia o "seo" Oscar. Ele respondeu : “Conheço; é meu pai”. E a conversa enveredou para o meu passado mais remoto.
Das pessoas que, de maneira desconhecida, contribuíram para a formação do homem que sou hoje, um nome ou outro chama a minha atenção. E o nome do pai do meu interlocutor surgiu em outra conversa banal, de simples apresentação. Trocamos cartões de endereços, perguntamos o que cada um estudou, e ao dizer que fizera o curso noturno da minha faculdade, o sócio do Oscar, cujo nome esqueci, disse-me que aluno de curso noturno jamais teria sucesso na carreira, seria sempre ultrapassado pelos demais. "É impossível estudar, trabalhar e ser eficiente ao mesmo tempo."
Esses dizeres, vindos de um engenheiro mais velho e bem-sucedido, foram um míssil disparado bem no centro da cidadela chamada autoconfiança. Da mesma forma que, não me lembro se antes ou depois, ouvira de outra pessoa que a leitura de obras traduzidas é pura perda de tempo, pois você sempre se distanciará do autor. Mais uma assertiva surgiu, enquanto estava de vigília, olhando para o velho pombal: a de que estudar em boas escolas era uma inutilidade para o ofício que exercia e que exerço até hoje. E ainda outra, do médico de laboratório de análises: “Como alguém que não é hígido das pernas pode ser corretor?”. Custei a compreender aquele pensamento; estava sendo ofendido pela sinceridade constrangedora e dura daquele homem. Confundi hígido com rígido. Finalmente, passeando pela memória no vale, veio a fala da primeira mulher “honesta” pela qual me apaixonei, assim: "Você nunca vai sair 'disso', dessa sua posição. E eu, eu quero é mais. Você não me serve”. E bateu o telefone.
Toda essa artilharia foi aos poucos sendo expirada, ou não, e agora perdeu o significado e pouco me importa, tomando como base a minha própria vida, as escolhas que fiz, as circunstâncias que me cercaram e a teimosia burra e inata que habita o meu íntimo. Entretanto, a mirada fraterna do engenheiro Oscar fazendo pouco da afirmativa do seu, então, sócio, sem dizer nada, se condensou num bote redondo, vedado com alcatrão, do meu tamanho exato e lançado na minha direção. Subi, desci o Tigre ou Eufrates, não sei ao certo, e cheguei aqui, diante do mirante. Ele, que sempre parecia muito sério, angustiado, tenso e nervoso, repentinamente abriu um sorriso aberto, mostrando os dentes ferozes, agora amigos dentes.
Além do gesto, a atalaia, o mirante e os pombos sugeriram que esconder a falha do outro é boa para si mesmo. Afinal, como se faz para saber o que é falha, como compreender tudo e todos?