terça-feira, 29 de março de 2011

Grafite




Ela é uma condutora: não flui sob a gravidade, mas é conduzida pelo homem. Ora na mão direita, ora na esquerda. Um minério obediente. Brotou do feixe de árvores fundidas pelos raios da tempestade. Surgiram no cenário as primeiras folhas negras paralelas de anéis aromáticos, brandos diamantes jogados pelo filho de Prometeu depois de um dos vários dilúvios.

Negra e lubrificante. Uma voz solitária do carbono, obstinada em obedecer do amo a fantasia; se desfaz em gravuras, hachuras, letras, palavras e sentenças, atrasa o seu desaparecimento agarrada à pedra, nos desenhos das grutas. Como um adolescente faz uso da resina do caucho, e altera ou apaga suas expressões.

Sensível e solitária, metamorfoseia-se ao tocar os dedos em cócegas escuras; assimilada, a madeira do álamo se faz lápis, obtém a cor; misturando-se às argilas coloridas, sai a passear pelo papel feito um pequeno pênis, pênsil, buscando naquela mão o pensamento dos homens, e descreve o itinerário das mentes, a busca irrefreável de emoção e aventura.

*

É, por isso mesmo, eterna associada na loucura e histeria. Pela infatigável busca da exatidão, ela e o amo percebem sua a inutilidade, antes de tornar-se pó: “Pó enamorado”.

Para uma parte dos seres, existir apenas não basta. Cambiam o grafite pela tinta, obtida em untuosas e dóceis quantidades. Vestidas em cores vivas, causando inveja ao sol. Combinam-se ao bismuto, ao enxofre e ao chumbo.  Para encontrar o espírito no azul e no verde, e o primeiro plano no amarelo e no vermelho. De tão vaidosas, imaginaram-se indeléveis e inimitáveis. Desafiaram o tempo e aceleraram sua dissolução.

Grafite é apenas uma coadjuvante da busca, ainda precisa de auxílio, das muletas sob os braços. Dentro do lápis, sua alma é firme e pulsa: mina.  Desfaz sua ponta esvaziando-se em trilhas, nas superfícies, buscando aprofundar o sentido da vida. É pressionada por mãos habilidosas. Sempre vorazes, velozes e precipitadas. Os tocos são incessantemente descascados por lâminas de metal; navalhados ou saltando cones ocos raspados, até redescobrir sua ponta. Os cavacos caem no lixo, a grafite se esvai sem uso.

Diferentes moléculas foram unidas para atender a propriedade: escrever. Tendem a se repetir indefinidamente. O desperdício das florestas e terras e alótropos criou o esqueleto exterior móvel e desgarrado: a lapiseira.  Resinosa, envernizada, desenhada com duas garras de metal, uma a prender-se ao bolso, outra para recolher e soltar grafite.

*

A escravidão não se alterou. Ela não escapa mais, não escorre entre os dedos, não forma mais nuvens escuras sem sentido, não se consome, inútil. Ela se aponta pelo escrever. Sensível à declividade, basta segurar a lapiseira e afiar a ponta enquanto se escreve, inclinar para a direita e para a esquerda, enfatizando o traço, a palavra ganha contornos de desenho para reescrever o Gênesis.
Sabe-se, entretanto, que sempre se encontrarão no mesmo ponto. O encontro entre a obra, definitiva, enquanto ela sempre ardente, lava jamais resfriada. Uma riscando a outra, buscando incessante ao sentido, ao espírito. E se prega ao papel, à gruta ou à madeira. Entretanto, sempre manchas com forma, sem sentido. 

*

Ela é aventureira ancilar, sem apoio não vai a lugar algum. Não desce ou sobe escadas. Brincalhona, de obediência pueril, sem o esqueleto de metal ou sem a muleta de madeira, não se firma em pé. Evita o álcool. Sozinha, não vai a lugar algum. Viaja com o pensamento. Para sempre será lembrada, o instrumento de fixar palavras – inúteis.

Escrito para comemorar o dia de nascimento de Francis Ponge.


sexta-feira, 18 de março de 2011

São Sebastião das Três Orelhas.


 





Eu pergunto à Natureza
                               Segundo em seus filhos vejo
Por que fez o gozo anão
E fez gigante o desejo.
Bartrina.



1.
Depois da separação, nada, aparentemente, havia mudado, exceto o lugar onde morar. Escolheu um flat na cidade, a ex-mulher foi até lá, fez a cama, colocou as roupas nos armários, aprovando a escolha, como se nada houvesse acontecido. Ele esperou que ela saísse e jantou um tomate com um pedaço de queijo ricota, regados com azeite, e foi dormir. Gostava das coisas práticas, comida simples e rápida, sem complicação, cumprindo apenas uma necessidade. Descomplicava o ato de comer, cumpria apenas uma obrigação para com o estômago. Lá fora, o ruído contínuo do tráfego fazia as vezes de um curso de rio.
Assim embalado, dormiu. Sonhou com uma longuíssima escada no aeroporto, aonde chegou após um complicado trajeto no trânsito, com muita lentidão em engarrafamentos, enquanto tentava alcançar o prédio da universidade. Lá, pretendia encontrar a namorada e avisá-la de sua viagem. Já fazia alguns dias que não a via e tampouco conversava com ela, e não queria vê-la preocupada com a sua prolongada ausência. Acabou desistindo do aviso. Estava impaciente demais para enfrentar o trânsito. E tocou para o Aeroporto. Chegou e ficou lá, parado, com suas malas e pertences de mão diante daquele monumento branco, de mármore, corrimão metálico e brilhante. Fascinado. O pedaço de pirâmide do sol urbana estava lá, recém-terminada, esperando por ele. Ainda não tinha sido liberada ao público. Ele atendeu ao convite tácito que ela fez, e pediu a um funcionário que liberasse o seu uso.   Recebeu a autorização e subiu  o seu calvário, puxando malas, ajeitando os pacotes, inseguro, após verificar que o corrimão balançava, estava solto. Quando acabaram os degraus, viu o funcionário se encaminhar em sua direção, dizendo: “Eu fiquei com receio ao vê-lo. Afinal, um homem gordo com aquele monte de coisas e de olhos esbugalhados subindo aquelas escadas, podia muito bem ter se machucado. Felizmente, tudo correu bem. Posso ajudá-lo no seu embarque? Qual a sua companhia?” Acordou banhado em suor, o corpo dolorido. Tomou um banho rápido e foi checar a correspondência, sempre pressionado por suas pendências, atender pedidos de clientes, verificar se não havia esquecido nada.
Conseguiu acertar o seu ingresso no abrigo de animais da cidade de São Sebastião das Três Orelhas. Um lugar suficientemente remoto e calmo, para reabastecer suas energias. Será um assistente e ajudará com os galos de briga. Animais vitoriosos nos combates que, no entanto, tiveram a infelicidade de não morrer na rinha. São inúmeros os combatentes aprisionados pelos institutos de proteção ao meio ambiente, sem lugar adequado para viver. Estavam encostados em um depósito central. A grande maioria está cega, mutilada ou com outras doenças. Fora indicado por um amigo para trabalhar nessa fundação sem fins lucrativos. Assim que percorreu as dependências, alistou-se como ajudante no canil. Foi capturado pelos olhares dos galgos de corrida e de um cão de briga. Aqueles são submetidos a obsessivos treinamentos para atingir o seu potencial máximo na corrida, e por isso têm frequentes hemorragias, acumulando sangue no pulmão pelo esforço da corrida. Com o passar do tempo, claro, eles se desvalorizam. Para não perder dinheiro, alguns proprietários abatem seus animais para receber o seguro; outros não se dão a esse trabalho, ou não conseguem um cadáver equivalente na aparência, e os abandonam. O ex-campeão é recolhido para ser cuidado até o final da sua vida. A sua atenção foi chamada pelo olhar de um cão de briga.  Sobrevivente, sem uma das pernas, cheio de cicatrizes. Ele causa pavor nas pessoas, por sua aparência, pelo possível ou potencial ataque. Ele foi capturado por aquele olhar. Gostou daquele desafio sem palavras.
Estava otimista, livre de qualquer atividade comercial. Deixara os três filhos na cidade com a mãe. Assegurou a educação deles até o final da faculdade. Deu como cumprido o seu dever. Com algum dinheiro que sobrou, comprou uma propriedade e pretendia arrumar as portas, cercas e janelas da pequena e velha casa, cobrir os buracos da estrada para facilitar o acesso, impossível após qualquer chuvinha boba, também queria preparar uma horta, um pomar.  Teve o cuidado de comprar manuais para se preparar. Ele não tinha habilidade manual para qualquer dessas tarefas, deveria antes aprender. Esvaziaria a mente com essa rotina. Seria o seu mantra. Não suportava mais seu estilo de vida. Precisava de paz no espírito.
Fora um homem acostumado a viver em família, mas percebera com o passar do tempo o quanto ela demandava de esforço incessante na entrega. Todas as relações familiares estavam condenadas ao insucesso. As palavras não serviam para o entendimento. Tudo era confusão. Ele não compreendia e não era compreendido. Talvez no futuro distante, quando fosse apenas uma lembrança, prevalecesse uma nuvem de compreensão. Talvez, mas não agora. Ele sabia que, se ocorresse, seria fruto da imaginação. Nos últimos tempos, do nada, ele irrompia entre os seus com uma pergunta: “Diga a palavra que está na sua mente”. “Como assim?” “Qual palavra?” “Para quê?” “Não importa, por favor, apenas diga.” E anotava as palavras. Fazia, assim, o diário do dia. Não permitia que ninguém visse as anotações, para não causar nenhum embaraço. O medo da palavra escrita ainda existia, e provavelmente nublaria o resultado. Para evitar cobranças posteriores. Variavam as situações, os horários e as pessoas.  Nos seus horários de folga, dedicaria seus esforços a decifrar os resultados.

               A relação com a ex-mulher percorreu todo o caminho da degradação, do desmonte. Não, ele não culpava ninguém. Parecia que a familiaridade ocasionava um abrir exagerado de portas, canalizava os ventos nem sempre perfumados de parte a parte. E lentamente aquela construção idealizada, chamada vida em comum, ia se desmanchando, formando duas bolhas sem intersecção. Estivera lendo um texto sobre as diferenças entre o desejo e o gozo. A força de um, comparada com a frustração do outro. Ele, um homem sonhador, sempre deixou sua imaginação voar, aprendeu quase tudo sobre a formação, os tipos e a nomenclatura das nuvens, e, quando estas se transformavam em chuva, levavam tudo consigo na enxurrada. Ele se casara por amor. Passara por aquele sentimento descontrolado, exagerado, que assume o comando do corpo e o direciona em mão única para a intimidade. Ela é que leva ao desmanche. São vários os níveis de intimidade alcançados. Todas as camadas que protegem o âmago são ultrapassadas, desfolhadas até que se encontre o centro inteiramente nu, sem proteção de qualquer espécie. Essa, digamos, nudez exagerada leva ao rompimento fatal.  Ao desenlace. Se, de um lado, provou duas vezes daquilo que se chama de amor, fracassou duas vezes na convivência, nenhuma delas suportou por mais de dez anos. Decorrido o prazo, a convivência emitia alertas seguidos, idênticos. Cada vez em intervalos menores de tempo. Não há mais espaço para o conforto da criação. Acabada a capacidade de reinventar o mundo. Mensagens que queimavam no local onde eram fixadas. Ele ficava sem ar, como se estivesse submerso e precisasse desesperadamente de ar. Precisava da superfície. A realidade é a superficialidade das coisas?
               A aldeia era ideal. A terra daquele lugar não valia grande coisa, comprara um alqueire por uma ninharia, no meio do vale, oco entre as várias montanhas da serra, ao redor. O antigo dono estava de mudança para a Capital, sequer discutiu o valor oferecido, aceitou na hora. Ele, o ex-marido, estava resolvido a não fazer contato com ninguém, evitaria aqueles habitantes com a sua cara feia de costume. A natureza lhe dera uma expressão reticente e feroz. De qualquer maneira, ele também sabia que estava vivendo o momento do antegozo. Sabia que, satisfeito o desejo, a realidade o mandaria para outro lugar depois de algum tempo. Era inevitável. Estava pronto para viver mais dez anos em progressiva perda daquela grande paz interior que o invadira.


2.
Georgete viaja muitas horas para encontrar a pousada, e com ela vem a paz, o descanso e a sensação de objetivo alcançado. Trabalhou os últimos anos como arquiteta de interiores para uma grande companhia de navegação. Passava o tempo decorando cabines, salões de festas, de ginástica e de eventos em grandes transatlânticos. A empresa mantinha diversos deles percorrendo todo o planeta. O departamento de pesquisa e desenvolvimento descobriu que a maioria dos seus clientes comprava pacotes de viagens consecutivos.  Passavam a maior parte do seu tempo de aposentados em cruzeiros em alto-mar, navegando daqui até acolá, satisfeitos em desfrutar da companhia da tripulação e de outras pessoas.
Ela era uma parte minúscula dessa grande cadeia de solidão embutida nas mais variadas dessas caravelas modernas. Tivera que se isolar no norte da Europa, por questões de economia de custos para o estaleiro. Viveu durante muitos meses em um lugarejo frio, com dias curtos e congelantes, onde não havia outra estação a não ser a hibernal. No pequeno verão, não havia nada para se fazer no fim de semana ou ao final do dia de trabalho. Não havia cinema, o comércio fechava e a cidade, com ele. Para encontrar alguma vida, Georgete tinha que viajar na sexta feira. E para viajar, tinha que encontrar um aeroporto, distante seis horas dali. Mais algumas horas de viagem, e o seu sábado já estava corroído pela metade. Restava, então, meio sábado e um terço de domingo como tempo livre. Passava seus dias de folga dentro de aviões.
Tentava conversar com a dona do mercado e o farmacêutico. Nenhum deles, apesar de afáveis, tinha alguma coisa de interessante para dizer ou para ouvir, e a conversa morria ali mesmo. Rasa. Seus colegas se divertiam assistindo às notícias pela tevê. Quando se reuniam, a conversa, depois de algum tempo, fatalmente desembocava nos novos projetos, novas embarcações. E cada um voltava para o seu alojamento e assistia a um filme baixado pela internet.
Ela se considerava bem-sucedida. Era jovem, cabelos loiros alcançando a linha da cintura, olhos azuis, e era mesmo bonita, não fosse o nariz saliente demais. De temperamento paciente, queria encontrar a pessoa certa. E para isso escolhia com muito cuidado os homens com quem ficava. Realizava aproximações sucessivas; a questão principal não era a oferta, essa sempre foi intensiva, ainda que muito precária nas opções. Encontrou em uma exposição, no último passeio, uma tela que chamou a sua atenção. Golconda mostrava uma interminável chuva de homens, todos com o mesmo traje, distantes um do outro o suficiente para trazer à vista uma sequência de casas geminadas, de mesma arquitetura, predominando o tom pastel das cores nas paredes e no telhado. A única nuance de cor era o azul do céu, indicando o nascer ou o pôr-do-sol. O dia querendo se juntar com a noite. Nada prendia a atenção, exceto o inusitado da imagem, e com uma força tal que, de repente, ela se sentiu dentro da tela, tomando aquela chuva de homens iguais em um subúrbio qualquer de casas idênticas, presa naquela armadilha. E se alguém podia pintar aquela representação maluca, quebrando todas as regras da coerência, ela também poderia deixar de seguir esse caminho tão uniforme e despótico. E, também, de repente, decidiu abandonar aquela armação.
Palmira, sua companheira de todas as horas, foi deixada na casa da amiga mais próxima. Sua antecessora fora encontrada morta no hall do apartamento daquele rapaz, a sua última tentativa com o sexo oposto. Não, não poderia chamá-lo de namorado. Ele se aproximara usando o mote do interesse em Palmira. Georgete cultivava uma palmeirinha-azul de estimação. Intrigado com o fato, ele perguntou como é que se cuidava dela, se não ficava entediada com a falta de resposta daquela criatura, enfim, todo aquele papo introdutório (a genitália pulsando) para se aproximar da vítima. Ela concedeu acesso. Este, protegido com tanta prudência, resultou infrutífero. Ele logo perdeu o interesse, e a conversa entre eles passou a ser, predominantemente, por meio de mensagens de texto.
Numa de suas viagens, escrevera ao amigo perguntando se ele poderia cuidar da Palmira. Ele concordou, até escolheu palavras amistosas e entusiasmadas para cumprir a tarefa. Ela logo deduziu o interesse renascido. Regularmente, perguntava pela saúde de Palmira. Ele respondia, dizendo que estava cada vez mais bonita e saudável, notava até os sinais de saudade na sua coroa de folhas. Ao voltar, Georgete escreveu perguntando o dia e hora em que poderiam se encontrar a fim de que ela apanhasse a palmeira. Ele se desculpou dizendo que precisava viajar, mas que ela seria deixada no hall do apartamento, no dia e hora aprazados.
A pousada é rústica, encerrada entre as montanhas a mil e quatrocentos metros acima do nível do mar. O seu quarto tem três paredes de vidro de onde descortina todo o acolhedor verde da mata. Uma parede está colocada exatamente na beirada da margem de um rio, cujo leito de pedras é palco para o desfiar ininterrupto das águas. Elas cantam, às vezes gorgolejam, comemorando a descida. Começa a se entregar à preguiça. O som ritmado das águas age como um apaziguador. Nada interfere no seu ritmo. Ela reage, desfaz a mala, guarda as roupas. Sai em busca de um cavalo. Quer conhecer as trilhas da serra, planeja visitar todos os morros à sua volta.
Em cada um deles encontra casas dos mais diferentes tamanhos, todas com uma simplicidade franciscana, cavalgando pelos terrenos cortados, pelas culturas em quadriláteros, descobrindo o que foi plantado em cada um deles, pela forma, pelo cheiro, por eliminação; recusa, por timidez, os cafés oferecidos, as cadeiras para conversar; tímida, observa as matronas enxugando as mãos calejadas nos aventais surgindo nos umbrais daquelas portas. Atravessa o seu caminho a casa mais miserável de todas, as boas-vindas oferecidas pela caveira de boi, branca e ressecada, encaixada no mourão e atravessada por uma flor fresca. Ela amarra o cavalo, entra.  Observa, em um canto, um guarda-sol amarelo e esmaecido, e sob ele um homem, de pele queimada, barba por fazer, calças usadas, outrora, por um defunto bem mais gordo, cinzelando um toco de madeira. Um pouco mais atrás, uma fileira de homens santos forma uma brigada ligeira. Todos com uma expressão dolorida, uns com mãos postas, outros segurando um cajado, como são Quixotes; senta-se sem ser convidada, apenas observando o trabalho dele. Cada pingar daquele tempo do homem é utilizado para afilar um nariz, arredondar um lóbulo, acertar uma conta do rosário, esculpir uma unha, lixar o manto, até que a figura escapa da mão, resplandecente, e toma um lugar na fila, com sua porção de vida à mostra.
Depois do jantar, ela se recolhe ao quarto, acende a luz, incendiando aquela escuridão murmurante que reina lá fora. Enche a banheira, no centro do cômodo, com água bem quente, e desliza lá para dentro. Depois de algum tempo, ela inspira toda a névoa que se formou e se umedece por dentro. Ouvindo a melodia natural fluindo, se dá conta de que o ritmo era o mesmo de Robert Johnson cantando:  I got a kind hearted woman/ do anything in this world for me/ I got a kind hearted woman/do anything in this world for me/ but these evil-hearted women/ man, they will not let me be. Adormece. Sonha com o Rio Jordão, volumoso, azul, sem pedras. Ela nada a favor da corrente, com muito empenho, as margens longínquas, é ultrapassada por um grupo de homens, invariavelmente loiros, nadando com vigor. Não dá nenhuma importância e segue até reencontrá-los adiante, na margem direita. Curiosa, aproxima-se para ver. Participam de uma cerimônia. Estão com água até os joelhos, com roupas brancas, banham pessoas que esperavam em terra firme, logo atrás.  Ouve a salmodia, não sente o sabor da letra e resolve seguir seu trajeto. Quer aproveitar todo o percurso do rio, mais do que tudo, o irreal volume de água limpa e azul, e aquela abundância das plantações na margem. Foi recepcionada ao final, perto da foz do Mar Morto, por todos aqueles homens loiros como ela.
3.
Na montanha mais alta e ventosa de São Sebastião das Três Orelhas, detrás de uma prancha de madeira, onde se lê, garatujada, a palavra Cantina, surge uma casa com os tijolos à vista, vestidos com uma demão de cal virgem. Uma porta de madeira entreaberta deixa ver a chapa com as letras e números de um velho automóvel, estacionado há muito tempo, denúncia feita pela grossa camada de pó vermelho sobre a lata do porta-malas. Um pequeno caminho de cascalho incentiva que se dê a volta pela esquerda. Alguns guarda-sóis cobrem mesas feitas com tábuas, sobre cavaletes, onde rolhas de cortiças ajustam o equilíbrio entre eles. Círculos escuros daquelas sombras sinalizam que logo adiante existe uma porta tão aberta que incita o viajante a entrar. Antes, entra o sol fazendo um tapete de claridade, com a forma de paralelogramo alongado. Todo o ambiente está em penumbra, em contraste com a luz exterior. Ouve-se uma voz acompanhando a canção italiana que domina o ambiente. Sombras se movem de um lado a outro, o fundo musical é acompanhado pelo som da louça, dos talheres, tachos e tinas. Só depois da vista acostumada é que aparece um homem claro, com olhos azuis, cabelos crespos e curtos, vestido com sandálias, calças de brim azul, camiseta branca, com marcas de suor na altura do peito. Quando fala, a cena se concentra no rosto daquele homem: um rosto marcado, vincado, como se ele tivesse sido despertado subitamente e ainda mostrasse os sinais de uma luta recém-terminada e violenta. Aquele rosto afasta imediatamente o interlocutor, não permite que outros olhos pousem sobre ele. Não importa o que ele fala, importa apenas o jogo dos olhos, que tem a argúcia, a perícia e o domínio da águia. Deles emana uma força correspondente à dos pulmões, que até agora estavam carregando nas cores daquela música. São necessários alguns minutos para que o ambiente se apazigue e as vozes consigam expressar algo audível, compreensível.
O homem da camiseta suada é Roberto, o cozinheiro e responsável pelo lugar. Atende os viajantes famintos que passam por ali. Deixou a sua terra natal, Itália, para viver aqui. Serve comida apenas com os produtos que a terra oferece naquele dia. Não há cardápio disponível, muito menos preço fixado em lugar algum. Ele acorda e colhe, corta, pica, tempera, cozinha, assa ou frita, e serve. “Vocês estão servidos a almoçar?”, pergunta ao casal que acabou de entrar depois de se apresentar. Renê, o ex-marido, e Georgete, a dona da palmeira azul, concordam prontamente, e são levados para uma sala com três ou quatro mesas, separadas entre si por pequenas esteiras de sapé que pendem do teto, causando um efeito acolhedor e estranho. A mesa é posta pelas filhas do chefe, meninas, entre dez e doze anos, hesitantes entre o servir e o brincar. A mãe delas, em seguida, traz uma cesta de pães, um vidro de azeite de oliva e pergunta se querem beber algo. Lembra-se de se apresentar, desculpa-se por não dar as mãos, brancas de farinha.
O casal se acomoda, um de frente para o outro. Estão cansados da caminhada, a música volta a tocar (Andrea Bocelli) com menos volume, um fundo musical agradável. O cheiro é convidativo, trazido por levas de vento. E Renê aproveita a deixa, reafirmando sua opção pela vida natural. Havia esquecido a função dos ventos, na cidade ele espalha germes, vírus e dióxido de carbono, aqui espalha as sementes das árvores; servem como estradas aos pássaros e insetos, polinizam as flores; e nos traz esses odores. Georgete está bastante entusiasmada com a escolha que fez, conta da sua paixão pela fotografia e pelas oportunidades que tem, agora, de registrar todos os cenários e os momentos que está vivendo. Algo impensável algum tempo atrás. E ambos conversam e contam em detalhes os fatos relevantes de suas vidas, as decepções, as esperanças. Tudo regado a vinho.
No local em que estão sentados, logo atrás, há na parede uma reprodução de Georgia O’Keefe. Uma orquídea com as suas pétalas e sépalas como se fossem lábios, na dúvida entre mostrar e esconder o labelo, o grande âmago de beleza daquela flor que atrai os que contêm o pólen até o seu ápice. O centro do centro da flor. A conversa se encaminhou para a descoberta da concordância entre ambos em vários assuntos. Sim, as interpretações que faziam de todos os fenômenos, tanto os exteriores e interiores a cada um, só adquiriam algum sentido se compartilhados.  A certeza não é desse mundo. Apenas é desse mundo a certeza que um tem e passa para o outro. Verdadeira ou falsa. Ela sempre será falsa, pela ciência, mas verdadeira enquanto fator de aproximação. As mãos atuavam como as pétalas, e os silêncios ganhavam espaço. Cada vez mais.  Eles permitiram que os olhos conversassem. Eles atingiram, diziam, lugares íntimos e inéditos. Mostraram parcelas do seu íntimo, separando-se para o olho alheio. Chegaram à conclusão de que aquela flor exibida pela pintora fora a responsável pelo êxtase do momento. Eles conseguiram compreender uma mensagem comum, diante daquela reprodução. Renê, mesmo sendo admirador da palavra escrita, sabia que ela faltava em determinados momentos, sendo substituída por uma imagem. Georgete acrescentava que o mesmo ocorria com a imagem, ela não conseguiria jamais saborear a totalidade que vai pela alma do ser, a não ser quando tornada palavra.
Pareciam viver um momento único de descoberta íntima, quando Renê e Georgete se levantaram simultaneamente para se aproximar do quadro, lado a lado, voltaram suas cabeças e se tocaram. E os lábios se colaram, definitivos. Momentos depois, as sementes espalhadas pelo vento pediam passagem por entre eles para formar uma coluna e receber a língua feita pássaro. A de Renê disparou na direção dela.
E ela desapareceu.